segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Comissão organiza exumação de militante da luta armada executado pela ditadura

                                                                     
João Leonardo (primeiro da esquerda para a direita, agachado) seguiu para o México num avião da FAB, o Hércules 56, que inspirou o documentário. Dirceu esta de pé, mostrando as algemas (segundo da esquerda para a direita)Comissão Nacional da Verdade

João Leonardo da Silva Rocha está enterrado com nome falso no Cemitério Municipal de Palmas de Monte Alto, na Bahia. Ele foi um dos 15 presos trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick, sequestrado em 1969 pela guerrilha. Foi morto em 1975

A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos está preparando a exumação dos restos mortais de João Leonardo da Silva Rocha, ex-militante da luta armada que integrou a ALN (Ação Libertadora Nacional) e o Molipo (Movimento de Libertação Popular), executado em 1975 e enterrado com nomes falso no Cemitério de Palmas de Monte Alto, no Sul da Bahia, a 865 quilômetros de Salvador.

A identificação e localização da sepultura onde João Leonardo está enterrado são considerados assuntos já resolvidos depois de cinco anos de buscas. Assim que a exumação for consumada, a Comissão, que é vinculada à SDH (Secretaria Especial de Direitos Humanos) da Presidência da República, encaminhará os ossos para o laboratório que fará a retirada de DNA e o confronto com dados genéticos de familiares. Um irmão de João Leonardo, Mário Rocha Filho, já forneceu amostras de sangue.

A mobilização de peritos e a escolha do local onde os restos serão depositados - Brasília ou São Paulo - serão providenciados assim que a Comissão conseguir um acordo administrativo com a Prefeitura do município. Caso encontre dificuldades, será requisitada, então, uma ordem judicial para fazer a exumação.

Até chegar à sepultura onde João Leonardo está enterrado, o Coordenador-Geral do Projeto Memória e a Verdade da SDH, Ivan Seixas, jornalista e ex-preso político que se dedica a investigar o paradeiro de desaparecidos políticos nos anos de chumbo, ouviu testemunhas que conviveram com o militante, fez pesquisas em cartórios, arquivos públicos e conseguiu identificar o militante desaparecido e localizar sua cova.

"João Leonardo foi enterrado com nome falso de José Eduardo da Costa Lourenço, por ele adotado para tentar se proteger diante da intensa perseguição a que se tornou alvo", diz Seixas. Dois personagens foram fundamentais para elucidar o caso: o pedreiro Almerindo Porto Lopes, conhecido por Nélio, que ajudou a enterrar o corpo, e o agricultor conhecido por Jerônimo, o único que sabia que João Leonardo pertencia ao Molipo, usava nome falso e, apesar de ter sempre a polícia no seu encalço, tentava organizar a resistência ao regime.

Um advogado da cidade, João Arcanjo Montalvão Filho, também colaborou, fornecendo informações que apurou junto a outras testemunhas que assistiram o tiroteio em que João Leonardo foi morto e, depois, ao sepultamento.

Segundo essas testemunhas, João Leonardo está enterrado debaixo do corpo de outro morador de Palmas de Monte Alto, Natalino Pereira, numa cova contígua onde estariam outros quatro ossadas, todas sepultadas em sobreposição, uma prática no pequeno cemitério de cerca de 100 metros quadrados.

Vala de Perus

Pela fartura de evidências, a identificação plena é prioridade em 2016 e deverá se somar ao esforço para o esclarecimento de pelo menos outros 40 casos de desaparecidos cuja identificação está em fase de investigação. A maioria das ossadas foi retirada de uma vala comum do Cemitério de Perus, em São Paulo.

"Estamos seguindo pista por pista. No caso de João Leonardo, como as evidências são mais claras, temos a esperança de resolver em breve", diz a procuradora da República Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos). "O roteiro das investigações foi deixado pela Comissão Nacional da Verdade", explicou.

Uma ferida aberta, o conflito dos anos de chumbo deixou um passivo difícil de elucidar: além dos 180 militantes da esquerda armada executados e desaparecidos, há ainda camponeses e índios que os órgãos de repressão mataram como queima de arquivo ou em conflitos fundiários que, como herança maldita, foram ocorrendo nos anos seguintes ao período mais violento da ditadura. "Só de indígenas estima-se que o número de mortos gira em torno de cinco mil", diz a procuradora, com base em denúncias do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) da Igreja Católica.

Há ainda, segundo ela, centenas de camponeses desaparecidos nas regiões em que a esquerda armada tentou estabelecer bases. O caso mais conhecido é a Guerrilha do Araguaia onde, além dos 67 militantes do PCdoB exterminados, as entidades de direitos humanos já ouviram relatos de que há um grande número de camponeses desaparecidos.

Assombrando direita e esquerda

Como os demais desaparecidos políticos, João Leonardo é um personagem emblemático, daqueles que, de tempos em tempos, "ressuscita" para assombrar assassinos e torturadores acobertados pelas Forças Armadas, mas também os setores da esquerda que se desviaram dos compromissos ideológicos, da ética na política e, sem resistência, se deixaram corromper ao alcançar o poder.

Ao lado do ex-ministro José Dirceu, condenado como chefe do mensalão e, segundo as investigações da Lava-Jato, um dos idealizadores do esquema de propina na Petrobras, João Leonardo foi um dos 15 presos que, trocados pela vida do embaixador americano Charles Elbrick, sequestrado em 1969 por um grupo misto da ALN e MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro) foram banidos para o México. Dias depois, a convite de Fidel Castro, foram viver em Cuba com outros 26 militantes que lá fundaram o Molipo.

João Leonardo e Dirceu eram muito ligados um ao outro: saíram juntos, treinaram juntos em Cuba, voltaram juntos, em 1971, para organizar as bases rurais do Molipo, mas tomaram rumos diferentes: um foi para o Sul e o outro, para o Nordeste. 

João Leonardo (primeiro da esquerda para a direita, agachado) seguiu para o México num avião da FAB, o Hércules 56, que inspirou o documetário. Dirceu esta de pé, mostrando as algemas (segundo da esquerda para a direita)Comissão Nacional da Verdade

Os órgãos de repressão registram que antes de ser preso, em 1969, João Leonardo participou de várias ações armadas. Uma delas foi o assalto ao trem pagador da estrada de ferro Santos-Jundiaí (SP), ação em que teria participado sob o comando do líder e fundador da ALN, Carlos Marighella, e do motorista deste à época, por ironia do destino, o hoje senador Aluísio Nunes Ferreira (PSDB), na guerrilha conhecido por Mateus.

A outra, mais pesada, foi o assassinato do capitão americano Charles Chandler, uma equivocada operação posta em curso para "vingar" a morte do revolucionário Chê Guevara, morto no dia 9 de outubro 1967, na Bolívia. Mas não era só isso: ao ser banido, treinar guerrilha em Cuba e voltar ao Brasil para continuar a luta armada, informações que já eram de pleno conhecimento dos órgãos de inteligência, João Leonardo e os demais 27 militantes do Molipo entravam definitivamente na lista dos homens marcados para morrer.

Os integrantes do Molipo foram sendo executados um a um assim que botavam o pé no Brasil. Há duas exceções: Dirceu e a socióloga Ana Corbisier, que era da ALN, fugiu do país em 1969, ingressou no Molipo em Cuba, voltou ao Brasil para atuar na Bahia. Ela chegou a marcar encontros entre Dirceu e João Leonardo. Com o cerco da repressão, mergulharia na clandestinidade e só reapareceria a Anistia, em 1979. João Leonardo foi um dos poucos do grupo a assumir um papel ativo ao retornar, mas suas pegadas haviam sido levantadas pelo regime e pelas polícias estaduais, que funcionavam como um apêndice dos órgãos de repressão da ditadura.

Ele calculava os riscos, mas não sabia que sua verdadeira identidade já havia sido descoberta. No dia 4 de novembro de 1975, época em que já não havia resistência armada ao regime militar e todas as organizações de esquerda tinham sido eliminadas, João Leonardo foi cercado por um grupamento da Polícia Militar baiana num casarão de um sítio em Caraibas, zona rural de Palmas de Monte Alto.

O militante não se entregaria. Sabia que o cerco se destinava à sua execução. Seguiu-se, então, intensa troca de tiros. Ele matou um tenente, Oscar Pereira da Silva, e feriu um soldado. Acabou atingido por dois balaços de carabina nas pernas, um dos quais estourou a veia femoral. Entrincheirado e sem socorro, esvaiu-se em sangue. 

Para justificar a execução, a polícia montou uma versão fantasiosa, segundo a qual, o militante do Molipo seria um pistoleiro envolvido com invasões e grilagem de terras. Descoberta a farsa quatro décadas depois, João Leonardo terá sua história recontada e seus restos serão devolvidos à família, que deverá sepultá-lo em Salvador, onde nasceu.

(Com a Comissão da Verdade em Minas Gerais)

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