quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

O levante dos secundaristas em São Paulo: a juventude aponta os rumos da luta popular

                                                                             
Edmilson Costa [*]

A escola é nossa. Não tem arrego . A escola é nossa. Não tem arrego . 
Se fechar, vamos tirar seu sossego. 
Palavra de ordem dos estudantes



O levante vitorioso dos estudantes secundaristas de São Paulo, após a ocupação de mais de 220 escolas e a derrota do governo do PSDB paulista, se inscreve nos marcos do ciclo de lutas sociais que se abriu com as jornadas de junho de 2013 e que vem se mantendo ativo desde aquele período, além de guardar estreita relação com os impactos da crise sistêmica global no Brasil. 

Se observarmos o desenvolvimento das lutas sociais no País desde então poderemos verificar não só o aumento das greves em todos os setores dos trabalhadores (metalúrgicos, petroleiros, metroviário, rodoviários, bancários, professores, servidores públicos), mas especialmente um conjunto de lutas realizadas pela juventude com elevado grau de organização e originalidade, justamente as que conseguiram maiores vitórias concretas contra as políticas neoliberais. 

Como afirmávamos em trabalhos anteriores [1] , as manifestações de junho de 2013 abriram um novo ciclo de lutas sociais que vem questionando de maneira cada vez mais explícita a contradição entre o nível de desenvolvimento econômico do País (sétima economia do mundo) e as precárias condições de vida da população (o Brasil ocupa a 75º posição no ranking do Índice de desenvolvimento Humano da ONU), atrás mesmo de países africanos e latino-americanos. 

O processo que se iniciou em 2013 vai continuar sua trajetória, muito embora de maneira não linear, porque nenhum dos problemas colocados por aquelas manifestações foram resolvidos. Pelo contrário: estão sendo agravados pela política de ajustes neoliberais implementados pelo governo, o que levará com certeza a um acirramento da luta de classes no País. 

Além disso, estamos vivenciando também o fim do ciclo iniciado com as greves do final da década de 70 no ABC e que forjaram os principais instrumentos políticos e sociais no Brasil, como o Partido dos Trabalhadores (PT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Essas organizações cumpriram um papel importante na luta de classe no período e na luta contra a ditadura, mas aos poucos foram se amoldando à ordem até se transformarem em principais instrumentos da própria ordem e se voltarem contra a luta dos trabalhadores. 

Metamorfosearam-se de uma maneira tão rápida que não terão qualquer papel de relevo neste ciclo que se abriu em 2013. Ainda poderão sobreviver como entidades formais, mas sem a garra e o protagonismo que tiveram naquele período, até mesmo porque a luta de classes no Brasil está colocando novas questões e reclamando a constituição de novos instrumentos para conduzir as transformações no País. 

As ocupações realizadas pelos estudantes secundaristas de São Paulo, ao contrário do que ocorreu com as lutas da juventude em 2013, foram marcadas surpreendentemente por elevado nível de organização e originalidade, mesmo levando em conta que esses estudantes eram crianças e adolescentes entre 13 e 18 anos, com quase nenhuma experiência, posto que estavam debutando na luta de classes. Alguns meses atrás, quem previsse que esses jovens seriam capazes de derrotar um governo arrogante e truculento, blindado pela mídia, com apoio das camadas médias conservadoras e que tratava a questão social como caso de policia, seria tachado de louco ou visionário. Mas as lutas sociais sempre surpreendem aqueles que não atentam aos meandros da conjuntura. 

Em termos práticos, os secundaristas conseguiram uma proeza pouco verificada nos últimos anos: uniram um amplo leque de forças políticas e sociais, que envolveu os professores, os pais e mães de alunos, os movimentos sociais, os artistas e vários segmentos da população. Criou-se quase que espontaneamente uma rede solidariedade em torno do movimento, que aumentava à medida que as ocupações se ampliavam e a repressão se intensificava. 

A população levou comida, água e refrigerantes, os sindicatos ofereceram colchões e barracas, os professores deram aulas alternativas, os artistas cantaram e tocaram gratuitamente nas escolas ocupadas e criou-se até uma guarda informal, os Guardiãs das Escolas, uma articulação que mobilizava rapidamente, através das redes sociais, centenas de pessoas na frente das escolas diante de qualquer tentativa de repressão da polícia nas ocupações. 

Além disso, as ocupações demonstraram que o mito de bom moço construído pela mídia em torno do governador Geraldo Alckmin, do PSDB, partido que está há mais de 20 anos no poder em São Paulo, foi por água a baixo. A mídia corporativa sempre procurou apresentar o governador como homem trabalhador, propenso ao diálogo, preocupado com os problemas da população, mas a própria mídia foi obrigada a veicular imagens de truculência da Polícia Militar contra crianças e adolescentes dentro das escolas, mesmo com a justiça tendo proibido a polícia de entrar nestes estabelecimentos de ensino, e também as barbaridades repressivas nas ruas, com espancamento e prisões de menores. 

A imagem de bom moço foi-se deteriorando e a prova maior disso pode ser refletida em uma pesquisa do Instituto Data Folha, que mostrou a queda brusca da popularidade do governador. Preocupado com as futuras eleições presidenciais, onde é um dos pretendentes, Alckmin jogou a toalha e revogou o decreto de reorganização das escolas, que foi a causa das mobilizações estudantis e das ocupações. Mesmo assim, o governo ainda tentou cinicamente esconder a derrotar ao aparecer na imprensa dizendo que a revogação do processo de reorganização ocorreu em respeito à mensagem dos estudantes, familiares e da comunidade. É risível, mas cada um tem o direito de esconder seus fracassos da maneira que melhor lhe convém. 

A reorganização e os objetivos do governo 

Sem consultar os alunos, nem os professores, nem a sociedade, o governador anunciou um decreto que iniciava um processo de reorganização da rede estadual de ensino, através do qual haveria um grande remanejamento de alunos e escolas, de forma a que a rede escolar fosse estruturada por ciclos. Os alunos de cada ciclo (fundamental I, fundamental II e ensino médio) seriam agrupados em unidades específicas, de acordo com cada ciclo. 

O secretário de Educação dizia que a reorganização visava não só racionalizar o ensino, mas também melhorar a qualidade da educação. Junto ao pacote, também era anunciado sorrateiramente o fechamento de 94 escolas e cerca de 311 mil alunos deveriam ser remanejados e centenas de professores perderiam seu emprego. O governo também divulgou que as mudanças estavam baseadas em estudo de uma consultora especializada, mas espertamente se recusou a divulgar os fundamentos nos quais o estudo estava baseado. Foi necessário que um órgão de imprensa apelasse para a Lei de Acesso à Informação a fim de obter a íntegra do estudo. 

Tão logo se tomou conhecimento do estudo, começou um intenso processo de discussão, especialmente porque, quando o documento ficou conhecido na íntegra, pôde-se verificar a inconsistência de seus fundamentos. Todas as Faculdades de Educação do Estado (USP, Unicamp, Unesp, Unifesp, Federal do ABC, UFSCAR), justamente as instituições que formam a maior parte dos professores da rede pública do Estado, lançaram documentos criticando a medida e buscando revelar os verdadeiros motivos que levavam o governo a realizar a chamada reorganização. Esses motivos eram o corte de gastos com a educação e o início do processo de privatização do ensino público no Estado, através das terceirizações e concessões, como já vem ocorrendo em outro Estado, Goiás, onde o PSDB também detém o governo estadual. 

Para os professores dessas Faculdades, o estudo encomendado pela Secretaria de Educação do Estado não apresentava elementos científicos que fundamentassem o processo de reorganização da rede escolar. Tratava-se de um documento frágil, mal elaborado, de péssima qualidade técnica, que visava apenas dar uma satisfação à sociedade. Por isso mesmo, o governo não divulgou o documento. Os professores também condenaram o fato de que uma medida desta natureza, que vai envolver centenas de milhares de estudantes, pais e mães de alunos, além de professores, não tenha sido debatida com os interessados antes de ser anunciada. 

O argumento de que a reorganização por ciclo iria melhorar a qualidade de ensino é de uma pobreza franciscana, pois nas escolas privadas de ensino médio, tidas como de excelência e as que aprovam o maior número de alunos nos vestibulares das universidades públicas, os estudantes dos diversos ciclos frequentam o mesmo prédio, como acontece atualmente no ensino público. Ou seja, a segregação é empobrecedora na formação dos jovens. 
                                                               
Se o governo estivesse preocupado realmente com a qualidade do ensino, deveria fazer o inverso do que anunciou, ou seja, reduziria o número de alunos por sala, que hoje estão superlotadas; melhoraria as condições físicas das escolas, cujas instalações são precárias; modernizaria as bibliotecas, compraria laboratórios e equipamentos audiovisuais e contrataria os professores que passaram no último concurso e até hoje não foram chamados e aumentaria os vergonhosos salários pagos aos docentes. Melhorar a qualidade do ensino fechando escolas é uma aberração. 

Vale lembrar que um dos governos do PSDB, o de Mario Covas, em 1995, também realizou um processo de reorganização da rede estadual de ensino, com o fechamento de 150 escolas e cerca de 10 mil salas de aulas, tudo com o mesmo argumento da necessidade de melhoria da qualidade da educação. Mas se avaliarmos 20 anos depois o resultado dessa medida, poderemos observar que se constituiu num verdadeiro fracasso: a qualidade do ensino continuou precária e muitas das escolas fechadas viraram depósitos para vários órgãos da administração pública. Ou seja, a reorganização era apenas um pretexto para cortar gastos com a educação. 

Na verdade, o objetivo dessa pretensa reorganização era a implantação de um modelo de gestão educacional empresarial, tudo dentro do figurino elaborado pelo Banco Mundial, para o qual a educação é um bem e por isso deve ser paga. Como ressalta o documento dos professores, o objetivo final é fazer com que cada escola seja gerida como se fosse uma pequena empresa, com metas, produtividade, bonificações por desempenho, redução permanente de gastos e flexibilidade para demitir professores, afinal a estabilidade no emprego dos professores é uma heresia para o dogma neoliberal. Todo esse conjunto de metas teria por objetivo, como nas empresas privadas, alcançar maior eficiência possível e as escolas que não se enquadrarem nesse modelo deveriam ser fechadas. 

O processo de reorganização de São Paulo era também um balão de ensaio para uma contrarreforma profunda na já precária educação pública do Estado, como já acontece em Goiás, onde as escolas estão sendo geridas pelas organizações sociais. O plano era o seguinte: primeiro, reorganizava-se as escolas por ciclos e fechavam-se as 94 escolas; em seguida, reduzia-se o ensino noturno e a Educação Para Jovens e Adultos. 

Depois, terceirizava-se a gestão para ONGs, OCIPs (as chamadas organizações sociais), desviando dinheiro da educação para mãos privadas. Posteriormente, implantavam-se os chamados sistemas de ensino, no qual as disciplinas seriam apostiladas (padronizadas ideologicamente), como já ocorre em vários colégios privados. As organizações sociais deixariam de fazer concursos para professores e passariam a contratá-los pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), eliminando a estabilidade no emprego. Assim, seria bem mais fácil demitir aqueles que contestassem a nova ordem ou os grevistas. 

Essas etapas do que deveria ser o processo de privatização do ensino em São Paulo não significa nenhum exercício de criatividade ou futurismo. Como enfatiza o documento dos docentes, a política educacional de São Paulo é orientada por um grupo de empresários neoliberais, com apoio de instituições privadas. Em outras palavras, o passo final seria a privatização das escolas, com a concessão de vouchers para os alunos mais carentes, como aconteceu no Chile de Pinochet, onde praticamente toda a estrutura educacional do País foi privatizada. 

A resistência dos estudantes 

Do alto de sua arrogância, Alckmin imaginava que essa medida iria ser implantada tranquilamente, com apenas pequenos protestos de alunos e professores, mas no final tudo seria implantado conforme o figurino, como aconteceu com outras medidas antipopulares que foram implementadas no Estado. Ao longo dos mais de 20 anos de poder do PSDB na principal unidade da Federação do País, o governo sempre tratou as lutas sociais como caso de polícia, as greves como coisa baderneiros e agitadores, buscando desqualificar, criminalizar e derrotar os trabalhadores em luta. 

Portanto, para o governo, as ocupações realizadas pelos adolescentes parecia brincadeira de criança e logo seriam derrotadas. O vício da impunidade impediu o governo de entender a conjuntura, afinal esse mesmo governo tinha recentemente derrotado a mais longa greve dos professores do Estado, que durou 95 dias. Mas por ironia, de onde menos se esperava, surgiu o movimento que levou o governo a uma derrota acachapante, até mesmo humilhante, colocando um basta a mais de duas décadas de truculências no Estado. 

Antes das ocupações, as manifestações contra a reorganização já demonstravam que algo de novo estava acontecendo. Os manifestantes não eram apenas militantes que comumente estão nas ruas contra o governo: aquelas manifestações contavam com a presença de pais e mães de alunos, coletivos dos mais diversos tipos e militantes em geral, mas com algo inovador – professores com os alunos de suas escolas, a maioria deles entre 13 e 18 anos, quase todos participando pela primeira vez de uma manifestação de rua. Essas passeatas eram realizadas quase todas as semanas e envolviam milhares de pessoas. Foi um aprendizado importante que depois se materializou na organização das ocupações. 

Cansados de tanto protestar e não serem ouvidos, os estudantes decidiram realizar um enfrentamento mais direto contra o projeto de reorganização do governo. No dia 9 de novembro ocuparam a primeira escola, na cidade de Diadema, na Grande São Paulo. Essa foi a chama que imediatamente se espalhou por todo o Estado, especialmente na capital. Nos outros dias as ocupações foram sendo realizadas em proporções geométricas, tanto que vinte dias depois mais de 200 escolas já estavam ocupadas no Estado, o que demonstra que a revolta juvenil estava latente e que o aprendizado das manifestações cumpriu um papel fundamental. A grande maioria das ocupações foi realizada de forma espontânea, mas também houve participação de coletivos autônomos, de professores, movimentos sociais e organizações políticas. 

O processo de ocupação era relativamente simples: os estudantes entravam nas escolas munidos de correntes e cadeados escondidos nas mochilas e, no momento combinado, anunciavam a ocupação, colocavam cadeados novos no portão e a partir daí passavam dirigir todas as atividades da escola. Na maioria das escolas só poderiam permanecer na parte de dentro os estudantes da própria escola, medida que era fundamental para evitar que o governador do Estado, como várias vezes tentou fazer, acusasse o movimento de ser dirigido por partidos políticos de oposição.

De posse da escola, realizavam as assembleias e organizavam as comissões de gestão da ocupação: limpeza, cozinha e alimentação, segurança, eventos, sempre enfatizando que todas as principais decisões seriam tiradas em assembleia. Logo os alunos perceberam uma série de irregularidades, como montanhas de livros que não eram distribuídos, bibliotecas mal cuidadas, escola com infraestrutura precária. Com a ocupação, todas as escolas se tornaram mais organizadas, mais limpas e com uma vida cultural muito mais rica. 

Com a massificação das ocupações, o governo utilizou o mesmo padrão repressivo, intercalando medidas judiciais, administrativas e repressão direta. A Secretaria de Educação pressionou os diretores a fazer com que os alunos desocupassem as escolas. Como não conseguiram, então montou-se uma equipe que ligava diretamente para os pais e mães dos alunos dizendo que era perigoso os adolescentes ficarem nas ocupações, pois lá estavam consumindo drogas e as meninas poderiam ser estupradas. Esse método também não obteve resultados satisfatórios. A polícia se postava diariamente na frente das escolas com provocações e prisões de apoiadores, que acampavam em frente dos estabelecimentos de ensino. Posteriormente, o governo entrou na Justiça com um pedido de reintegração de posse, que era a senha para a invasão policial e desarticulação do movimento. No entanto, a justiça também negou o pedido de reintegração. 

No início de dezembro, com o movimento plenamente consolidado e com apoio social e sem que a Justiça atendesse à solicitação do Executivo, o governo resolveu partir para o tudo ou nada. O chefe de gabinete da Secretaria reuniu secretamente os diretores de ensino para traçar uma estratégia de desocupação das escolas. 

Disse que a partir daquele momento seria iniciada uma guerra contra as ocupações e anunciou a tática que deveria ser executada em cada unidade de ensino ocupada. Mas a conversa do chefe de gabinete foi gravada por alguém e vazou para a imprensa, através dos Jornalistas Livres, uma articulação da mídia alternativa que teve um papel importante na contrainformação à mídia corporativa. O vazamento quebrou o efeito surpresa da ofensiva governamental, mas mesmo assim eles tentaram implementar o seu plano. 

O governo escolheu para a desocupação uma escola símbolo, a Maria José, no centro de São Paulo, pois lá estava o presidente da União Municipal dos Estudantes Secundaristas. Logo cedo o chefe de gabinete da Secretaria de Educação veio à escola, acompanhado de um grupo de pessoas que se diziam “pais de alunos” (depois verificou-se que eram funcionários da secretaria) que queriam a escola de volta. A polícia quebrou os cadeados, invadiu a escola junto com os “pais” e começou o espancamento dos alunos, que resistiram bravamente.

Imediatamente começou a funcionar o esquema de proteção das escolas ocupadas, através dos Guardiãs das Escolas, e dezenas de pessoas foram para a frente da escola em solidariedade aos estudantes. Como os alunos resistiram e muitos dos “pais” não suportaram o gás de pimenta lançado pela polícia, a invasão fracassou e os alunos reocuparam a escola, para a alegria e comemoração de todos. Ocorreram tentativas de desocupação em outras escolas, mas foram derrotadas [2] . 

A essa altura os alunos resolveram mudar de tática também e passaram a ocupar as ruas e avenidas na hora do rush para chamar a atenção da população, além de realizar aulas públicas. Essas manifestações foram brutalmente reprimidas pela polícia. Cenas de espancamento de crianças e adolescentes se tornaram comuns em São Paulo, mas a batalha da opinião pública o governo já estava perdendo. Além de todas as faculdades de educação, agora também a Justiça estava contra a maneira como foi implementada a reorganização, além de artistas, movimentos culturais e professores e a maioria da população. 

Até as torcidas de futebol se manifestaram contra a medida do governo. A brutalidade da polícia fez o governo perder a opinião pública e até mesmo a mídia corporativa já não podia mais esconder a repressão. Para complicar ainda mais a situação do governo, o Instituto Data Folha divulgou uma pesquisa na qual 61% da população apoiavam o movimento, bem como a popularidade do governo tinha caído aos níveis mais baixos. Sem escolha, o governo suspendeu a reorganização e o Secretário de Educação pediu demissão. Estava selada a vitória do movimento. 

As redes de solidariedade 

Um dos momentos mais ricos dessa jornada de lutas dos secundaristas foi a ampla rede de solidariedade espontânea que se articulou para apoiar o movimento. Tão logo se iniciaram as ocupações, as pessoas começaram a acampar em frente das escolas para evitar a repressão policial e provocações dos agentes policiais infiltrados. Os pais, mães e amigos dos alunos levavam comida, água, colchões e barracas para garantir a ocupação, além de se revezarem em frente das escolas. Como as ocupações duraram cerca de um mês, não é difícil imaginar a dificuldade que os estudantes tiveram para manter a logística de revezamento no interior das escolas, dormindo em condições precárias, cozinhando o próprio alimento, limpando e cuidando da escola. E também a dificuldade que os apoiadores tiveram para se manter noite e dia em frente das escolas. Mas o sacrifício valeu a pena, pois todos saíram vitoriosos nessa jornada de lutas. 

Os estudantes também conseguiram organizar um cadastro de Guardiãs das Escolas, via redes sociais, no qual estavam inscritos milhares de pessoas voluntárias, dispostas a defender as escolas. Toda vez que uma unidade escolar estava ameaçada os Guardiãs eram acionados e rapidamente dezenas de pessoas compareciam à frente da escola para defendê-la e evitar repressão, arbitrariedades e prisões de estudantes. Este esquema funcionou razoavelmente bem e cumpriu um papel importante na vitória do movimento porque quanto mais pessoas se postavam em frente das escolas, mais difícil se tornava a repressão. 

Outro papel importante foi o dos Advogados Ativistas, uma articulação de jovens advogados voluntários que estavam à disposição a qualquer hora do dia e da noite para comparecer não só nas escolas onde estivessem ocorrendo arbitrariedades, mas principalmente no acompanhamento das passeatas (a presença de advogados muitas vezes reduz a fúria repressiva), e na ida às delegacias de polícia soltar os garotos presos e evitar espancamentos. 

Também foi importante nesse processo a presença dos Jornalistas Livres, uma organização de jornalistas independentes que buscava de todas as formas, especialmente nas redes sociais, documentar a repressão, denunciar as arbitrariedades e divulgar tudo o mais rapidamente pelas redes sociais. Foram os Jornalistas Livres que vazaram o áudio com a estratégia da Secretaria de Educação para desocupar as escolas e, com isso, contribuíram para a derrota da estratégia repressiva do governo. 

Os artistas, escritores e professores também tiveram um papel fundamental na solidariedade ao movimento dos secundaristas. Todo dia nas escolas tinha aulas alternativas sob os mais variados assuntos. Para tanto, também foi realizado um cadastro de professores voluntários dispostos a doar aulas nas ocupações, o que funcionou de maneira muito satisfatória. Os saraus eram realizados quase que diariamente. Os cantores e músicos em geral, os artistas de teatro faziam shows e apresentavam peças teatrais gratuitas nas escolas ocupadas. No auge do movimento ocorreu até uma Virada Cultural com a participação de artistas famosos como Chico César, Titãs, Maria Gadu, entre outros. Até mesmo Chico Buarque de Holanda e vários artistas do Rio de Janeiro gravaram um clip de apoio ao movimento. 

As escolas ocupadas se tornaram um ambiente vivo, criativo, com diversidade cultural, os mais variados debates, com democracia participativa, com uma relação mais estreita com a comunidade, muito diferente do período normal de aula. Além disso, as ocupações demonstraram que as escolas geridas pelos estudantes funcionaram melhor do que quando administradas pelo governo. Essa experiência das ocupações de São Paulo de certa forma aponta para a necessidade de construção de uma nova escola, fora dos padrões burocratizados e repetitivos da escola tradicional, uma escola crítica. que proporcione os mais avançados conhecimentos específicos para os estudantes, mas que também forme um cidadão com capacidade de entender o mundo. 

A luta dos estudantes secundaristas de São Paulo, comandada por adolescentes, significou uma grande vitória para o movimento social, porque pela primeira vez um movimento derrota de maneira clara a truculência de um governo neoliberal. Os jovens também derrotaram o governo em 2013, mas essa foi uma luta nacional, que envolveu cerca de 600 cidades. A luta dos secundaristas foi uma queda de braço entre um governo arbitrário e os estudantes, na qual eles venceram com galhardia. Essa jornada aponta também o rumo da luta popular no País, pois demonstrou que a organização, a combatividade e a luta, em aliança com a população, é o único caminho para se conquistar as reivindicações populares. Os estudantes saíram dessa luta de cabeça erguida, com moral alta, e logo mais estarão nas ruas engrossando as lutas populares.

[1] Brasil: extraordinárias jornadas de lutas   e   A explosão social bate às portas do Brasil 
[2] O autor desse texto, um dos Guardiãs das Escolas, esteve presente na Escola Maria José no dia em que os alunos derrotaram a estratégia do governo do Estado. Um relato dessa experiência foi postada no facebook (Relato sobre a reocupação da E.E. Maria Jose, no Bexiga, pelos estudantes secundaristas). 

[*] Doutorado em economia pela Unicamp, com pós-doutoramento no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma instituição. É autor, entre outros, de A globalização e o capitalismo contemporâneo (Expressão Popular) e A crise econômica mundial, a globalização e o Brasil (Edições ICP), diretor do Instituto Caio Prado Junior e um dos editores da revista Novos Temas. 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
13/Jan/16

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