terça-feira, 21 de novembro de 2017

"O Jovem Karl Marx",uma "crítica da crítica crítica", como diria Jenny Marx

                                                                         
                                                                                      
Marcelo Dias Carcanholo

 Resenha que o prof. Marcelo Dias Carcanholo (UFF) escreveu sobre o filme "O Jovem Karl Marx", de Raoul Peck.


O filme O Jovem Marx, do diretor haitiano Raoul Peck, já seria controverso, independente do resultado a que chegasse, pelo simples fato de tratar de um dos teóricos mais importantes dos últimos séculos e, principalmente, por discutir explicitamente a constituição histórica da teoria social que, desde o século XIX, mais influencia os movimentos revolucionários contrários ao capitalismo, o marxismo. 

E isto no atual momento de explicitação da luta de classes em todas as regiões do planeta.
O objetivo central do filme parece ser a genealogia (pessoal, no caso de Marx e Engels, e teórica) da principal arma teórica que embasa os processos revolucionários, a teoria social marxista. Logo no início nos é prometida a construção do chamado socialismo científico, em contraposição a todas as variantes de socialismo utópico, com base idealista, anarquismo e tantas outras variantes do movimento revolucionário anti-capitalista. 

Não foram poucos, portanto, que se perguntaram por que o filme termina justamente quando se publica o Manifesto do Partido Comunista, em 1848, ainda antes da teoria crítica de Marx sobre o capitalismo estar consolidada, algo que só irá acontecer, pelo menos, uma década depois. Parece-nos que há uma boa razão para isso.

O filme apresenta algumas inconsistências históricas. Por exemplo, Engels só publica A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra em 1845, e Marx já conhecia o Esboço de uma Crítica da Economia Política de Engels, publicada nos Anais Franco-alemães em 1844, mas escrito em fins de 1843. É amplamente conhecido o elogio de Marx a esse texto de Engels, deixando claro que foi a partir dele que Marx sedimentou a necessidade de partir da crítica da economia política para a crítica radical e revolucionária da sociedade capitalista. 

Portanto, o assunto da segunda conversa entre os dois, retratada no filme, não pode ter sido A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, e sim os artigos que ambos publicaram nos Anais Franco-alemães de 1844.

Essas inconsistências, entretanto, não desmerecem as qualidades do filme. O objetivo central é muito bem apresentado pela descoberta teórico-prática do sujeito revolucionário, a classe trabalhadora, tanto por Marx, como por Engels. E esta descoberta nos é apresentada a partir do ponto de vista do encontro pessoal (teórico e político) dos dois.

O filme começa com o contexto de perseguição ao jornal Gazeta Renana, patrocinado pela burguesia liberal renana, mas de postura crítica ao poder de Frederico Guilherme IV - em muito explicitando a posição mais radical de sua maior referência, o próprio Marx. Esse contexto permite ao espectador tomar ciência de dois elementos fundamentais na formação do pensamento de Marx. 

Por um lado, a necessidade de tratar de assuntos práticos (a discussão sobre o roubo de madeira, por exemplo) mostra ao autor que a realidade concreta é o ponto de partida para o entendimento e transformação da sociedade capitalista. Ou seja, o materialismo como base filosófica necessária. Por outro lado, em relação com o anterior, Marx começa a se dar conta dos limites e contradições da crítica, por mais radical que seja, dentro da ordem, isto é, das posições radicais democráticas.

Não é por outras razões que nesse momento do filme explicita-se, ao mesmo tempo, o rompimento com os neohegelianos (Stirner, Bauer), o idealismo, e com as posturas políticas que se limitam à democracia radical.

No final de 1843 os Marx (Karl se casa com Jenny Von Westphalen meses antes) deixam a Alemanha em direção a Paris, onde eles ficarão até o início de 1845, onde Karl trabalhará nos Anais Franco-alemães, e após esse período serão expulsos, primeiro, para Bruxelas, e depois para Londres. Esse breve período em Paris, no entanto, é crucial para a formação desse individuo revolucionário. Ali ele toma contato, na prática, com o que constitui o sujeito revolucionário, a classe trabalhadora. 

Ao mesmo tempo, se aproxima em definitivo de outro individuo revolucionário, que já havia conhecido, mas inicia ali, a partir da publicação de seus respectivos artigos nos Anais Franco-alemães, a construção não apenas de uma sólida amizade, mas do que viria a ser a arma teórica mais importante dos processos revolucionários. Esse encontro, ainda na juventude, de Marx com Engels é o objeto de O Jovem Marx.

Em paralelo à trajetória do jovem Marx, o filme nos apresenta a formação e tomada de consciência revolucionária do jovem Engels. Explicitamente é apresentada a contradição que o constitui como individuo, revolucionário. Por um lado, sua vida burguesa, com os privilégios que a acompanham, em função dele ser filho de um capitalista, um dos donos da Ermen and Engels.

Por outro lado, sua aproximação com a classe trabalhadora, em função até das condições de trabalho enfrentadas por esta classe na fábrica da qual era herdeiro, circunstância explicitamente tratada no início do filme. Essa contradição, que termina sendo vivenciada posteriormente pelo próprio Marx, é explorada em outros momentos do filme, até como forma de evidenciar a radical contraposição ideológica desses indivíduos com a sociedade burguesa.

A maneira como essa contradição é apresentada no filme ainda nos permite tratar de outro aspecto importante. Logo no início, Mary Burns, uma trabalhadora da Ermen and Engels é demitida pelo fato de ser uma das líderes dos protestos frente às condições desumanas de trabalho. Trata-se da primeira companheira do jovem Engels. ]

O filme aproveita esse gancho para, explicitamente, mostrar o papel central das companheiras de Engels e Marx no processo de constituição dos indivíduos e, mais importante para nós, da teoria revolucionária que se gestava.

Mary Burns, além de iniciar o jovem Engels no contato com a classe trabalhadora e, dada a especificidade concreta, com a chamada questão irlandesa, é mostrada como a responsável pela introdução dos dois jovens revolucionários na Liga dos Justos. Esta última, de um sentido original de “justiça social”, fraternidade e harmonia entre os seres humanos, é, pela atividade prática dos dois jovens revolucionários, transformada em Liga dos comunistas.

Jenny Marx, por sua vez, não bastassem suas sacadas geniais e ácidas nos diálogos críticos de seu companheiro com Proudhon e Grün, por exemplo, é apresentada como a responsável pelo excelente subtítulo (Crítica da crítica crítica) para A Sagrada Família, subtítulo que, diga-se de passagem, diz muito mais sobre a obra do que o título. 

Ela é apresentada como uma autêntica rebelde, revolucionária, com decisões e opiniões firmes em todos os aspectos, inclusive nos concernentes à vida cotidiana dos Marx. A impressão que o filme passa é que ela, e em certa medida a própria Mary Burns, já são revolucionárias formadas, mesmo antes de seus “jovens” companheiros. Não se trata de que ao lado de dois grandes homens há duas grandes mulheres. Em muitos momentos, elas estão bem à frente dos dois jovens.

Terminamos de volta ao começo! Por que o filme termina com a publicação de O Manifesto do Partido Comunista, em 1848? Por que não tratar da constituição efetiva da Associação Internacional dos Trabalhadores, ou da maturação da teoria crítica do valor (e do capitalismo), arma teórica mais robusta do processo revolucionário? A resposta agora se mostra mais simples.

Porque a ideia é mostrar a formação (pessoal, política e teórica) dos dois indivíduos revolucionários responsáveis pela escrita do Manifesto. E até nesse processo de redação o papel ativo de Jenny Marx e Mary Burns é explicitamente mostrado pelo filme. Uma construção diretamente coletiva pelas pessoas que o constituem, sem hierarquias e/ou mediações, como as revoluções, de fato, devem ser. Só por isso o filme já seria justificado.

O final é uma ode à esperança. Imagens de rebeliões e protestos contemporâneos, ao som de Like a Rolling Stone, na versão original de Bob Dylan. Em um contexto (estético) como esse, é possível um indivíduo não se tornar revolucionário?

(Com o Diário Liberdade)

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