sexta-feira, 12 de maio de 2017

Marx e o trabalho - algumas notas a pensar no presente

                                                                       
Manuel Gusmão

No centro da ofensiva capitalista, económica, social e política, na sua orientação dominante que é a do neoliberalismo, está uma profunda depreciação do trabalho.

Embora esta depreciação se articule com outras práticas e objectivos da política neoliberal, ela assume características e produz efeitos de tal modo nocivos e perigosos que talvez justifique um tratamento relativamente autónomo. A que chamamos depreciação do trabalho?

- À continuada baixa dos salários reais ou à tendência para a baixa da parte da remuneração do trabalho na distribuição da riqueza socialmente produzida em favor do aumento da parte que dela vem a caber ao capital;

- à tendência para o real aumento do desemprego independentemente de mínimas flutuações estatísticas, aliás manipuladas;

- ao aumento do trabalho precário nas suas diversas formas: trabalho a prazo, a recibos verdes, trabalho intermitente, etc.;

- à facilitação por diversas vias dos despedimentos sem justa causa.

Desde cedo o movimento operário se apercebeu que o desemprego (a criação de um exército de reserva de mão-de-obra disponível) era um dos meios que o capital usava para pressionar a baixa do valor dos salários dos trabalhadores empregados e que a ameaça de despedimento era, para além de todas a justificações circunstanciais invocadas, uma outra forma de condicionar o valor da força de trabalho e de tentar obter o consentimento dos trabalhadores nessa depreciação do seu trabalho.

De que maneira Marx, nascido a 18 de Maio de 1818, pode ainda hoje ajudar-nos a compreender e a lutar contra esta situação? São inúmeros os textos em que Marx foi construindo um modelo de análise do trabalho, da oposição antagónica entre o trabalho e o capital, da contradição entre o carácter social da produção e a apropriação privada dos meios de produção e dos lucros, entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção, base material da luta de classes na nossa era.

Marx apresenta no Capital um modelo de compreensão do trabalho que é preciosamente operativo (No cap. 5 do Tomo I do Livro Primeiro). Marx considera então que «os elementos simples do processo de trabalho são [1] a actividade conforme ao objectivo, ou o próprio trabalho, [2] o seu objecto e [3] o seu meio» (206). Elementos simples de um processo complexo, eles encontram-se entre si em relação de transformação, de interdependência ou interdeterminação.

[1] A «actividade conforme ao objectivo» é o conjunto de operações, gestos e movimentos através dos quais o operário transforma um determinado objecto, usando certos meios e de acordo com uma prévia representação mental do que pretende obter, como resultado da sua actividade.
[2] O objecto de trabalho é aquilo que o trabalho, usando determinados meios, transforma num produto.

[3] «O meio de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas que o operário interpõe entre si e o objecto de trabalho e que lhe serve de guia da sua actividade sobre este objecto» (207). Os meios são assim não só instrumentos de modificação do objecto, mas «todas as condições objectivas que são afinal requeridas para que o processo se efective. Elas não entram directamente nele, mas ele sem elas não pode de modo algum ou pode apenas imperfeitamente processar-se» (209). E Marx adianta uma observação importantíssima: «O que distingue as épocas económicas não é o que é feito, mas como, com que meios de trabalho é feito. Os meios de trabalho são não apenas medidores do grau de desenvolvimento da força de trabalho humana, mas também indicadores das relações sociais em que se trabalha» (208).

Marx é actual

O processo de trabalho é essencialmente uma modificação do objecto de trabalho, operada pela actividade humana através do uso de meios de trabalho. O processo extingue-se no produto. O seu produto é um valor de uso, uma matéria da Natureza apropriada às necessidades humanas por modificação de forma.

Se considerarmos todo o processo do ponto de vista do seu resultado, do produto, então ambos – meios de trabalho e objecto de trabalho – aparecem como meios de produção e o próprio trabalho como trabalho produtivo. Entretanto esta determinação de trabalho produtivo, tal como resulta do ponto de vista do processo de trabalho simples, não basta de modo algum para compreender o processo de produção capitalista.

Assim, quando se diz que a produtividade dos portugueses é baixa está a escamotear-se o peso dos factores de produção na produtividade, e escondendo a dimensão incontornavelmente colectiva e social que ele acha inscrita na natureza universal do trabalho – ninguém trabalha sozinho, mesmo quando aparentemente isso acontece; todos nós trabalhamos no todo ou em parte com objectos e meios de trabalho produzidos por outros, todos nós executamos uma actividade que comporta procedimentos, gestos técnicos socialmente produzidos e validados, adquiridos pela experiência, ou aprendidos e ensinados.

Entretanto, Marx admite que uma parte fundamental do trabalho humano é a própria manutenção em vida e acção da humanidade dos humanos.

Como é que é possível admitir que o pensamento de Marx continue actual, quer na sua dimensão crítica, quer como projecto? Marx é actual porque continuamos a viver não só numa sociedade de classes, mas numa sociedade em que o capitalismo se mantém como o modo de produção e de reprodução social dominante, embora em configurações concretas que Marx não conheceu.

*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2267, 11.05.2017

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