quinta-feira, 13 de outubro de 2016

O Mito de uma Europa em paz

                                                                  

 Nadine Rosa-Rosso (*)

No dia seguinte aos atentados de 13 de Novembro em Paris, perante o Congresso, François Hollande afirmou em tom grave: «a França está em guerra». A mesma frase repete-a sem cessar após cada atentado. Esta é a versão da história que se supõe que deveríamos aceitar.
Na realidade, nunca deixámos de estar em guerra. E a França é um bom exemplo do que é um estado de guerra permanente.

No dia seguinte aos atentados de 13 de Novembro em Paris, perante o Congresso, François Hollande afirmou em tom grave: «a França está em guerra». A mesma frase repete-a sem cessar após cada atentado. Depois dos acontecimentos de Niza, acrescentou que a «guerra está fora e dentro da França». A terra sagrada dos direitos humanos, da paz e das Luzes amanheceu em estado de sítio, cobardemente atacada pela barbárie e o obscurantismo.

Esta é a versão da história que se supõe que deveríamos aceitar e assumir, nós, os povos de uma Europa civilizada que temos conseguido viver em paz há setenta anos.
Na realidade, nunca deixámos de estar em guerra. E a França é um bom exemplo do que é um estado de guerra permanente. Impõe-se a necessidade de recordar a história.

Um período de guerras ininterruptas

Mal acabara a II Guerra Mundial, o governo provisório francês surgido, das forças da resistência e tantas vezes representado como exemplo pela esquerda actual, envia ao Vietname (nessa época parte da Indochina francesa) um corpo militar expedicionário para tratar de acabar com a guerra de independência. Sob a presidência de Leon Blum, figura política modelar para a esquerda actual, a intervenção transforma-se numa verdadeira guerra. A França envia cerca de meio milhão de soldados para salvaguardar o seu território colonial: 43,5% dos soldados desse exército provem das outras colónias francesas (Magreb e África negra) A França será derrotada na batalha de Dien Bien Phu, em Maio de 1954.

Nesse mesmo período, em 1947, a França perpetra um massacre em Madagáscar contra a rebelião dos malgaches, houve 11 mil mortos, segundo as versões oficiais francesas e 100 mil mortos segundo os resistentes malgaches. Nessa guerra, uma vez mais, as tropas de repressão francesas eram constituídas na sua maioria por soldados provenientes das colónias africanas e magrebinas.

Essas guerras sangrentas não impediram a participação da França, no mesmo período, na guerra da Coreia, de 25 de Junho de 1950 a 27 de Junho de 1953. Uma coligação de 17 estados (entre eles a Bélgica e a Grã Bretanha), liderados pelos Estados Unidos e sob bandeira da ONU, teve por objectivo exactamente como na Indochina — opor-se às lutas de libertação dirigidas por forças comunistas. Estas duas guerras provocaram mais de dois milhões de mortos. 

A guerra esquecida da Coreia foi uma guerra de destruição maciça. Em termos actuais chama-se a isso genocídio. A capital Pyongyang foi totalmente arrasada. «No início do ataque, a 14 e 15 de Dezembro, a aviação norte americana lançou sobre Pyongyang 700 bombas de 500 libras cada uma. Os aviões de combate Mustang lançaram napalm e 175 bombas de explosão retardada que aterrorizavam com um ruído ensurdecedor e rebentavam depois.

Quando as pessoas tentavam resgatar os corpos dos mortos dos incêndios provocados pelo napalm, as bombas de explosão retardada detonavam. No início do mês de Janeiro o general Ridgway ordenou de novo um ataque contra a capital Pyongyang «procurando destruir a cidade pelo fogo com bombas incendiárias» (objectivo cumprido em duas etapas, a 3 e 5 de Janeiro de 1951)» (1).

A guerra do Vietname, assim como a guerra da Coreia desembocaram na partição dos dois países. O Vietname conseguiu a sua reunificação mediante uma nova e longa guerra de independência, desta vez contra os Estados Unidos em 1975. A Coreia ainda não está reunificada e o território do sul continua ocupado pelos Estados Unidos. É este o tipo de paz que dão as nações autoproclamadas civilizadas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Essas guerras foram rapidamente olvidadas pela população europeia, mas não pelas populações afectadas por essas guerras.

E não foram só os povos asiáticos os afectados por essas guerras. A vitória dos vietnamitas em 1954 contra a metrópole francesa deu um forte impulso a outras lutas de libertação em toda a África.
Longe de aprender com a sua derrota humilhante no Vietname, a França continuou com o seu programa colonial. «Entre 1960 e 1968, houve 60 intervenções militares francesas na África subsahariana, 23 foram empreendidas para «manter a ordem» ao serviço de um regime amigo e as outras 14 para derrotar governos que não se submetiam às ordens dos dirigentes franceses». (2)

A guerra mais conhecida, no que respeita à França, é, supostamente, a guerra da Argélia. Só quero insistir em alguns aspectos. Primeiro sobre a posição do Partido Comunista Francês, aureolado desde a Libertação — e aos olhos dos nacionalistas argelinos, pela sua heróica resistência perante o ocupante nazi. (em Maio de 1945, uma marcha nacionalista em Setif foi reprimida sangrentamente e a revolta que se seguiu, será também liquidada com uma violência inaudita. Nesse caso também variam as cifras entre um milhão e 80 mil vitimas segundo o ponto de vista do historiador.

Como explica Mohammed Harbi, em França as forças políticas provenientes da Resistência deixam-se manejar pelo partido colonialista. «Procura-se a paz há 10 anos, se a França não fizer nada, tudo voltará à situação anterior mas pior e provavelmente sem remédio» alertou o general Duval, mestre da obra da repressão. O Partido Comunista Francês PCF que qualificou os líderes nacionalistas como «provocadores ao serviço de Hitler» e que pediu que esses dirigentes fossem passados pelas armas» (fuzilados) — será considerado apesar da mudança de opinião posterior e o seu combate pela amnistia, como partidário da colonização» (3)

O inimigo interno

Outro aspecto que quero sublinhar é a criação do «inimigo interno» na politica e na ideologia francesa e que tomou corpo durante a guerra da Argélia. «A 17 de Outubro de 1961, Paris foi cenário de um dos maiores massacres de civis da história contemporânea da Europa ocidental. Nesse dia dezenas de milhares de argelinos manifestavam-se pacificamente contra o toque de recolher que lhes havia sido imposto doze dias antes e a repressão desencadeada contra eles pelo perfeito da polícia do Sena, Maurice Papon. 

A intervenção da polícia foi brutal e sanguinária. Dezenas de argelinos provavelmente entre 150 e 200, foram assassinados. Alguns corpos foram encontrados no Sena. Durante decénios, a memória deste episódio maior da guerra da Argélia foi silenciado» (4)

Segundo Mathieu Rigouste (5) o conceito de inimigo interno data dessa época e está vinculado à presença de uma emigração importante surgida da colonização. «A história do controle da emigração no pensamento militar francês permite analisar, estudando a reconstrução de um inimigo interno socio-étnico, a recriação e depois a generalização no tempo e espaço de uma tecnologia concebida para efectuar um controle excepcional de populações consideradas inferiores».

Como reacção ao atentado de Niza (França) de Julho de 2016, Georges Fenech, presidente da comissão de investigação parlamentar sobre os atentados de 2015 pediu a criação de um «Guantanamo à francesa». Propôs reunir todos os jiadistas que voltavam da Síria no centro penitenciário da ilha de Re.

Essa ideia que provocou muita polémica, funde as suas raízes na guerra da Argélia durante a qual o governo francês desenvolveu campos de reagrupamento» destinados aos resistentes da FNL para impedi-los de receber qualquer tipo de apoio por parte da população argelina. Só falta introduzir oficialmente a tortura na França para completar o regresso ao passado. Por outro lado, este debate delirante já se dá no seio da Frente Nacional: reintroduzir a tortura ou aplicar a pena de morte para Salam Abdesiam, tudo pode acontecer.

Assassinatos políticos em grande escala

A história «pacífica» da França não se limita às guerras. A pátria autoproclamada dos direitos humanos também desenrolou uma tradição importante de assassinatos políticos exterminando dirigentes nacionalistas da África e do Magreb. No livro «Devolvam as espingardas» Jean Ziegler dedica um capítulo às campanhas de assassinatos políticos organizados pelos serviços secretos europeus e analisa o caso dos Camarões. 

Todos os dirigentes nacionalistas, sem excepção, foram assassinados uns atrás dos outros. Ruben UmNyobe, já em 1955, e depois os seus sucessores Isaac Nyobe Pandjok, David Milton, Tankeu Noé (6). Zigler documenta o assassinato do jovem médico Félix Roland Mounie, dirigente da União das Populações dos Camarões (UPC) que foi convidado por um «jornalista» francês para um almoço. Félix-Roland Mounie morreu em Genebra envenenado na noite seguinte. 

Esse jornalista, era na realidade, o coronel William Betchel, oficial francês do SDEXCE (Serviço de Documentação Exterior e a sua inteligência) e que nunca foi condenado por esse crime. E há muitos outros casos.

Agora é moda no Ocidente a denúncia da corrupção (evidente) de muitos chefes dos estados africanos, mas seria melhor lembrar que os nossos governos e seus sicários assassinaram quase todos os dirigentes nacionalistas íntegros que queriam devolver a independência, a dignidade e a justiça aos países africanos. 

Sendo belga, não posso deixar de lembrar Patrice Lumumba, herói africano ferozmente assassinado pelo comandante belga Weber a 17 de Janeiro de 1961, e cujo corpo foi depois dissolvido em ácido. Os seus filhos lutam até hoje sem qualquer resultado, para que os culpados e o Estado belga sejam condenados. Como lembra Jean Ziegler. «Estes crimes de Estado foram implacáveis: era imperativo acabar com os autênticos líderes nacionalistas para instalar no poder as elites autóctones, amestradas, influenciadas e controladas pelo colonizador» (7) Matar Lumumba para instalar o títere Mobutu, por exemplo.

Guerras, torturas e assassinatos políticos, esses são os verdadeiros rostos desta França que se apresenta como portadora das luzes quando age para defender o seu império colonial e os interesses das suas multinacionais, Elf, Total, Areva, Bollore, Eramet, Technip, Bouygues, Orange, Geocoton, Rougier, etc. (8). E não se trata de uma história do passado, mas sim da vida quotidiana de milhões de africanos.

O que é realmente novo hoje, é que a guerra, ou pelo menos uma mínima parte dessa guerra, chegou até nós, em solo francês ou em solo belga. Vítimas civis inocentes que morrem, e com isso se mergulham famílias inteiras no horror. Por termos fechado os olhos perante tantas vítimas inocentes no terceiro mundo, vítimas das nossas guerras coloniais? Porque continuamos a apoiar governos e partidos políticos que perpetuam essa mesma política?

Se o discurso dos recrutadores da jihad atrai tantos jovens é porque a maioria das vezes usa uma retórica anti imperialista e porque qualquer outra forma de protesto seu contra as nossas sociedades foi reprimida (9). Em vez de concentrar todo o debate no aspecto religioso do fenómeno, seria mais produtivo analisar o aspecto político e fazer um balanço correcto a propósito das «nossas» políticas coloniais e neocoloniais impregnadas de massacres e de guerras. Embora os chefes do Daesh nada tenham que ver com os dirigentes nacionalistas do século passado, bem podem ocupar o lugar vazio deixado pelo nosso silêncio ensurdecedor sobre 70 anos de política colonial feita de guerras e massacres.

Mas para quebrar esse silêncio nada podemos esperar nem dos partidos no poder nem dos partidos na oposição, porque para eles pôr em dúvida o colonialismo só lhes serviria para perder votos eleitorais. Mas, como diz Jean Ziegler, «cada um deve escolher o seu campo», o de quem, apesar da repressão e os massacres continua a resistir, e embora sejam aqui muito poucos, existem apesar de tudo os Henry Alleg (autor do importante livro «A questão» denunciando a tortura e escrito sendo prisioneiro dos franceses na Argélia), os membros da Rede Jeanson (rede de apoio a FLN), os carregadores de maletas anónimas (pessoas que transportam dinheiro e documentos falsos para a FLN, que fazem com que continuemos a amar a França.

Setembro de 2016-10-11

(*) Nadine Rosa-Rosso é uma jornalista belga

Notas:

(1) http://chaoscontrole.canablog
(2) Francis Azalier, Colonialismo e imperialismo: «a excepção francesa» ou o «mito humanista», numa má descolonização, a França: do império aos levantamentos dos bairros populares. O tempo das cerejas, Pantin, 2007, p. 36-37.
(3) Mohammed Harbi, Faces ocultas da segunda guerra mundial. A guerra da Argélia começou em Setif. O Mundo diplomático, Maio de 2005, pag. 21; http://www.monde-diplomatique
(4) http://www.lemonde.fr/societe/
(5) Mathieu Rigouste, o inimigo interno, da guerra colonial ao controle securitário https//conflits.revues.org/31
(6) Jean Ziegler, Devolvam as armas. Escolher o seu campo. Edições do Seuil, Paris, 2014, pp 199-200
(7) Idem, p. 198
(8) http://www.afrique-demain.org/
(9) Ver o meu artigo anterior: 26 anos depois da revolta dos jovens em Forest: primeira, segunda, terceira geração, sempre a repressão….
http://nadinerosarosso.blospot

(Com odiario.info)

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