segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Argentina: após quebra e fuga de patrões, jornalistas ocupam meios de comunicação

                                                                     
Raphael Sanz (*) 
  
Há na Argentina um conglomerado midiático que deve anos de encargos sociais, impostos e dívidas trabalhistas, além de dever a bancos e investidores. Tal grupo, prevendo corte de verbas de publicidade oficial com a mudança de governo, literalmente abandonou as atividades desde janeiro. Logo, os trabalhadores tomaram a empresa e empreendem por si próprios a gestão, com direito a amplo destaque à sua luta particular e às lutas sociais em geral. É sobre esse contexto que entrevistamos o jornalista argentino Lucas Laviana, da Rádio América, veículo protagonista da história.

São mais de 14 veículos de comunicação abandonados pelos outrora donos e geridos por trabalhadores sem salários, à espera do bater do martelo do empresariado para seguir as atividades. Enquanto isso, os trabalhadores não têm suas aposentadorias pagas, entre outras dívidas trabalhistas que serviram de pretexto para o abandono patronal. Na última terça-feira, 13 de setembro, o governo argentino declarou a rescisão da concessão de radiofusão da Rádio América AM 1190 e abriu novo processo de licitação para que a rádio volte a funcionar. Mas lá estão os trabalhadores... a trabalhar.

“Nosso conflito é muito complexo porque inclui responsabilidades do governo anterior e do atual. O anterior por não controlar o Grupo23, deixando-o tornar-se uma lavanderia de dinheiro, na qual nunca foram pagos os encargos sociais para aposentadoria, apesar dos milhões que entravam por publicidade oficial. E ainda, um dos donos da empresa, Sérgio Szpolski, foi candidato a prefeito da localidade bonaerense de Tigre nas últimas eleições pela Frente para a Vitória (coalizão liderada por Cristina Kirchner). Por outro lado, tem a irresponsabilidade do governo atual, que nada faz para resguardar e proteger os trabalhadores e ainda por cima nos faz ouvir do presidente Macri que somos “usurpadores”, por recuperar à força um edifício tomado e violentado por capangas armados liderados pelo pseudo-empresário Martinez Rojas”, declarou Lucas Laviana.

O jornalista explica que o movimento de autogerir a Rádio América começou em fevereiro deste ano e que nela foi criada uma dinâmica de trabalho, a fim de viabilizar diversas lutas sociais ao longo da Argentina, inclusive a deles próprios. Deu detalhes das disputas com os empresários que reivindicam os meios de comunicação e em como essa disputa chegou ao nível de conflitos físicos, tomadas e retomadas de edifícios e torres de transmissão; informação e contrainformação.

“No início do ano, falamos com os funcionários públicos despedidos do Estado quando começou o ajuste de Macri. Foi de alguma maneira um cheque em branco para os grupos privados: se o Estado despede, por que não vão fazer o mesmo? Em tal sentido, cobrimos também os conflitos de trabalhadores de outros meios de comunicação, médios, grandes e também pequenos, que se encontravam com dificuldades”.

Leia a entrevista completa a seguir:

Correio da Cidadania: Como houve a quebra da Rádio América do jornal El Tiempo Argentino?

Lucas Laviana: Todos os meios eram financiados principalmente com a pauta publicitária do governo nacional, além de gestões provinciais e municipais. No caso de Nación, o Grupo23 foi o maior beneficiário, com mais de 800 milhões de pesos argentinos entre 2009 e 2015. Quando veio a mudança presidencial de 22 de novembro e Maurício Macri ganhou as eleições, cortaram as verbas publicitárias de todos os meios de comunicação. Aqui, não apenas não pagaram mais os salários dos trabalhadores, salvas exceções pontuais, como não foram pagos os alugueis e serviços dos imóveis. Abandonaram tudo.

Na sequência fecharam vários meios de comunicação e outros foram vendidos a diversas empresas. No caso da Rádio América e do Tiempo Argentino, no final de janeiro. Sérgio Szpolski – a cara visível do Grupo23, composto por vários acionistas – nos comunicou que a companhia M Deluxe, propriedade de um desconhecido empresário chamado Juan Mariano Martinez Rojas, havia comprado ambos veículos.

O novo dono chegou com promessas de fazer importantes investimentos com sócios norte-americanos, mas nunca colocou um tostão. E mais, deu continuidade ao esvaziamento iniciado pela gestão anterior. De fato, a venda dos dois veículos nunca foi creditada com totalidade, sendo que nós trabalhadores denunciamos como uma falsa venda ou pelo menos uma venda fraudulenta.

Há um dado chamativo: nunca ninguém pediu a falência da Rádio América ou do Tiempo Argentino, apesar de haver dívidas milionárias previstas e compromissos não cumpridos com numerosos credores, não apenas com os trabalhadores. Nesse contexto, o El Tiempo se transformou em uma cooperativa e na Rádio América nos encarregamos de levar ao ar as inúmeras violações patronais.

Em maio, Martinez Rojas tomou pela força a antena da rádio, situada em Villa Soldati, e em julho ingressou com um bando de capangas no edifício onde funciona a redação no bairro de Palermo, na capital federal. Junto aos companheiros do Tiempo nós recuperamos Palermo e hoje nos colocamos no ar a partir desse prédio.

Correio da Cidadania: De que forma a mudança do governo nacional e a situação dos trabalhadores Grupo23 dialogam?

Lucas Laviana: Reitero para deixar ainda mais preciso: não houve falência ou quebra dos veículos. O que ocorreu foi que ante a mudança de governo, prevendo que não iriam cobrar a mesma quantidade de dinheiro por publicidade, os empresários decidiram esvaziar os veículos e escapar. Hoje há um processo na Justiça que envolve Szpolski, entre outros, por não pagarem encargos sociais e impostos correspondentes à autoridade fiscal, que na Argentina se chama AFIP (Administración Federal de Ingresos Públicos).

Agora, o atual governo Macri tem responsabilidade porque a licença da Rádio América é propriedade do Estado (como todas as licenças AM), que dá a concessão a determinados grupos privados. Hoje o grupo privado não paga os salários, entra com capangas para destruir tudo e ameaça os trabalhadores, ou seja, o Estado deveria interferir a nosso favor.

O conflito iniciou há mais de oito meses e o governo não só não ajudou economicamente os trabalhadores com as ferramentas que tem no Ministério do Trabalho e no ENACOM (autoridade de aplicação de licença de rádio e TV), mas ainda dilata o conflito, à espera de os trabalhadores se desgastarem e abandonarem o protesto. Nesse marco, produzem ainda mais demissões e apequenamentos de estrutura, em quase todos os meios de comunicação do país, como nunca se viu antes na Argentina.

Na última terça-feira, 13 de setembro, o governo publicou no Boletim Oficial da Nação Argentina a caducidade da concessão da Rádio América AM 1190 e a abertura de licitação de frequência. Até o próximo dia 13 de outubro, podem apresentar ofertas de empresários pela concessão da rádio; quem fizer a oferta que inclua o maior número de trabalhadores, leva. Infelizmente, não temos muitas esperanças que nas ofertas mantenham todos os trabalhadores dentro da empresa.

Correio da Cidadania: E como era o cotidiano na Rádio América e nos outros meios antes do esvaziamento?

Lucas Laviana: Antes do esvaziamento, na Rádio América e na maioria dos meios do Grupo23 os salários eram pagos em dia e quantia, ainda que nunca tenham pago os encargos sociais como a porcentagem para aposentadoria. Isto foi denunciado durante anos e intimamos a empresa para que regularizasse a situação. A resposta do dono foi de que estava inscrito em uma moratória que lhe permitia pagar a prazo. Ou seja, o governo anterior permitia a ele demorar o pagamento desses encargos.

Após o esvaziamento, na Rádio América fizemos autogestão sem nos transformarmos em cooperativa, como houve no El Tiempo, Infonews e El Argentino Zona Norte. Agora temos uma relação muito fluída e de ajuda mútua entre os meios que formavam o Grupo23. O portal Infonews publica nossas novidades e nós difundimos também a luta deles, e o mesmo acontece com El Argentino Zona Norte e com El Tiempo.

Correio da Cidadania: E como organizaram a autogestão e ocupação do ambiente de trabalho?

Lucas Laviana: Quando ocupamos a Rádio América no final de fevereiro, dividimos o ar em três espaços de programas: manhã, tarde e noite, cada um com duas horas, que ainda hoje se mantém. Esses espaços são de luta, ou seja, fala do conflito e fazemos notas jornalísticas sobre o tema, como também cobrimos lutas além da nossa, inclusive pautas que estão na agenda midiática hegemônica. Por exemplo, no início do ano, falamos com os funcionários públicos despedidos do Estado quando começou o ajuste de Macri.

Foi de alguma maneira um cheque em branco para os grupos privados: se o Estado despede, por que não vão fazer o mesmo? Em tal sentido, cobrimos também os conflitos de trabalhadores de outros meios de comunicação médios e grandes, também pequenos, que se encontravam com dificuldade. As TVs cooperativas Antena Negra ou Barricada TV, mas também as demoras no pagamento dos salários na Rádio Del Plata. Coberturas feitas tanto nas ondas do rádio quanto “viralizando” notícias na internet pelas redes sociais, sobretudo no Twitter.

Nossas reivindicações foram em dois sentidos: contra a patronal e contra o Estado. No primeiro caso, para pagarem os salários atrasados e encargos sociais e para que assumissem sua responsabilidade com a emissora. Não pode ser que nós trabalhadores tenhamos garantido o funcionamento, inclusive pagando conta de luz, água, internet etc.. E justamente por todos esses não cumprimentos, está também o reclame ao Estado, que deveria proteger as fontes laborais.

Correio da Cidadania: Como se deu processo de perseguição a vocês? As invasões de capangas que você citou acima e outros casos podem ser contados com mais detalhes ou caracterizadas como perseguições políticas?

Lucas Laviana: Creio que não se caracteriza como uma perseguição política pontualmente dirigida a nós. Nosso conflito é muito complexo porque inclui responsabilidades do governo anterior e do atual.

O anterior por não controlar o Grupo23, deixando-o tornar-se uma lavanderia de dinheiro, na qual nunca foram pagos os encargos sociais para aposentadoria, apesar dos milhões que entravam por publicidade oficial. Ainda por cima, um dos donos da empresa, Sérgio Szpolski, foi candidato a prefeito da localidade bonaerense de Tigre nas últimas eleições pela Frente para a Vitória. Ou seja, enquanto se consumava o esvaziamento em finais de 2015, o Governo financiava a campanha de Szpolski.

Por outro lado, temos a irresponsabilidade do governo atual, que nada faz para resguardar e proteger os trabalhadores e ainda por cima nos faz ouvir do presidente Macri que somos “usurpadores” – por recuperar à força um edifício tomado e violentado por capangas armados liderados pelo pseudo-empresário Martinez Rojas.

Em relação à invasão, as pessoas que se meteram naquela madrugada de 4 de julho no prédio da Rádio América, entre 20 e 30 pessoas, eram um bando liderado por Martinez Rojas, que entrou com a conivência da Polícia Federal, que lhes abriu a porta. Enganaram o porteiro, dizendo que acompanhavam o dono. Nesse momento, abrem a porta e arrancam na porrada o nosso companheiro do El Tiempo Argentino que estava cuidando do edifício. Havia três pessoas próximas da escada que também foram agredidas pelos capangas, mesmo com a presença da polícia ali.

Fomos chamando todos os companheiros, nos juntando e agindo de forma que a noite terminou com a recuperação do edifício, após enfrentamento com esses capangas. No final, os capangas correram. Saíram correndo pelas ruas e Martinez Rojas foi embora escoltado pela polícia e depois imputado e investigado pela usurpação dele e por seus capangas de terem ingressado na Rádio América e no jornal e destruído objetos elementares para o trabalho jornalístico.

Por isso teve de se apresentar diante da Justiça Contravencional da Cidade de Buenos Aires. Nossos advogados pediram que este caso passasse a Justiça Federal, porque não se tratava de uma simples contravenção, mas envolvia direitos mais importantes, entre outros a liberdade de expressão e a difusão de um meio de comunicação, entre outras questões.

Isso pudemos demonstrar, pois fizemos uma demonstração acompanhada por uma manifestação política na porta, uma “Rádio Aberta”, como chamamos, no meio de julho. Fizemos esta Rádio Aberta em frente à Justiça Contravencional, que pôde passar o caso à Justiça Federal. Hoje a causa está nas mãos do juiz Martinez di Giorgi e esperamos que as causas se unifiquem, tanto da tomada da torre transmissora quanto na tentativa de tomar o prédio em Palermo. Em ambas aparece o mesmo protagonista, Martinez Rojas, que diz ser o dono da rádio. Esses dois casos têm juízes federais distintos e é importante ver se ao final conseguiremos unificar esses casos na justiça.

Um detalhe interessante sobre o bando de capangas é que lá está um sujeito que se chama Juan Carlos Blander, conhecido no ambiente do rock por aparecer em shows nos últimos 20 anos. Faz poucos dias o vimos fazendo a segurança do show da banda Megadeath, o que prova que o tipo goza de total impunidade. Apenas três dias depois do ataque em Palermo o governo da cidade renovou a habilitação de sua empresa de segurança particular para shows e espetáculos. Empresa do mesmo sujeito contratado por Rojas que entrou na Rádio e destruiu tudo.

Correio da Cidadania: O que comenta da postura dos outros meios de comunicação em relação à situação que vocês vivem?

Lucas Laviana: Isso depende do meio de comunicação e do jornalista em si. Recebemos alguns editorais de Jorge Lanata do Clarín, onde nos estigmatiza totalmente e fala de jornalistas que eram “funcionários do governo anterior”, quase como se merecêssemos isto. E ainda desconhecendo que uma coisa é a linha editorial e outra coisa são os trabalhadores.

Fizemos o enfrentamento e o resultado ficou refletido no último 7 de julho, na marcha unitária e histórica pelo dia do jornalista, de que não há brigas entre os trabalhadores e estamos todos juntos. E com trabalhadores do Diário La Nación, do Clarín, deixando claro que somos todos trabalhadores de distintas empresas e que a briga não está aí, mas, sim, entre trabalhadores e empresários.

Obviamente, os meios de comunicação cuidam dos seus interesses e cuidam dos interesses dos seus pares. Nesse sentido, Sérgio Szpolski está blindado pela maioria dos meios. Claro que há notas tanto no La Nación, como no Clarín, dois meios importantes, de maiores tiragens. Há notas críticas sobre Szpolski, mas que não têm posições de destaque. Outros foram muito solidárias conosco, sobretudo nos meios cooperativos e os outros meios que fizeram parte do Grupo23 e todos os que nos retroalimentamos na cobertura e na tarefa de manter o assunto em pauta.

Correio da Cidadania: Para terminar, o que podemos esperar deste quadro para o futuro próximo?

Lucas Laviana: Realmente, é muito difícil esperar que haja uma resolução aceitável. O Estado interveio através da ENACOM. E a verdade é que começou o período que eles chamam de “normalização” (em 14 de julho), que deveria durar um mês, até 14 de agosto. Deveriam aplicar subsídios e ajuda econômica aos trabalhadores através do Ministério do Trabalho, o que não acontece. O que vemos são situações completamente disformes neste conflito, como, por exemplo, termos feito um pedido à prefeitura, por segurança, para que Martinez Rojas não se aproxime do lugar. A prefeitura está aí e nós estamos cuidando do edifício e de nós mesmos.

A deformidade é própria de um conflito que se agrava porque o Estado não interfere como deveria intervir. Esperamos que façam as licitações necessárias, que paguem os trabalhadores e garantam as fontes de trabalho. Até agora, o Estado não nos deu um tostão para essas garantias e estamos fazendo um esforço enorme para, por exemplo, economizar luz, já que a conta sai do bolso dos trabalhadores.

Esperamos também que deem a licença da rádio com os trabalhadores dentro da empresa, e não que o façam sem ninguém dentro. Existe esse perigo, de simplesmente todos estarem fora quando finalmente o poder público afastar Martinez Rojas e sua sociedade anônima, de modo que nós trabalhadores ficaríamos sem nada. Portanto, essa é outra reivindicação: quando novamente licenciarem a rádio, que se faça garantindo os atuais trabalhadores dentro dela. Isso não é nem mais e nem menos do que corresponde ao trabalho do poder público, sobretudo do Ministério do Trabalho.

Enquanto isso, seguimos no ar com o espírito de luta intacto, mas com dificuldades concretas para poder realmente seguir tendo a rádio no ar e garantir esse ar para todos os ouvintes.


Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

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