sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Testemunho pessoal sobre Álvaro Cunhal

                                                  
                                                            
Recordar Álvaro Cunhal no seu centenário significa confirmarmo-nos nas nossas convicções revolucionárias de luta e por um marxismo vivo e criador


Isabel Monal (*)

Álvaro Cunhal, na sua dimensão de figura destacada do movimento revolucionário mundial, surgiu-me com a eclosão da Revolução dos Cravos. Foi um daqueles acontecimentos, para os quais ele tanto contribuiu para desencadear, que evidenciou a sua excepcional dimensão de lutador, de analista incisivo e de preclaro definidor de tácticas e estratégias; um conjunto de mérito que o catapultou para o primeiro plano a nível internacional.

Homem de ideias e político lúcido ancorado em princípios, Cunhal iniciou o seu empenhamento revolucionário desde muito jovem. Através da sua longa trajectória mostrou a inseparável unidade – nas condições da sua terra naqueles anos – entre a oposição ao fascismo e a luta por uma mudança radical mais profunda, ambas essenciais à procura de uma sociedade democrática e socialista. Tratava-se da necessidade da revolução antifascista imbricada com uma revolução democrática libertadora no caminho do socialismo.

Ele e o Partido Comunista sob a sua direcção trabalharam para a união de diversas forças e converteram-se num dos maiores impulsionadores tanto da eclosão da Revolução de Abril como da sua radicalização possível e necessária, particularmente com os oficiais mais avançados daquele movimento.

A sua visão daquela experiência onze anos depois evidenciou, uma vez mais, a sua perspicácia política e lealdade aos princípios. Soube ao longo dos anos que se seguiram a Abril elaborar profundos e equilibrados pensamentos sobre o porvir e os resultados daquele intenso processo revolucionário. 

Não deixou de ver sempre as suas conquistas e êxitos, mas também desvendou – como correspondia e a realidade mostrava – as suas insuficiências e indecisões, os erros de cálculo e as debilidades do processo enquanto tal. Os seus juízos e valorações não deixam de se mover dentro da lógica da análise marxista de classes e das profundas motivações das diferentes tendências, actores e motivações. 

O seu exercício crítico constitui uma prática essencial de revolucionário, aquela que Marx reclamava como própria das revoluções e dos revolucionários, os quais se debruçam sobre as suas acções e sobre os processos para os analisar criticamente e detectar e identificar os seus desacertos e insuficiências.

Numa significativa entrevista em 1987 fez uma escalpelização analítica para observar, com perspicaz visão retrospectiva, o porvir do processo dos Cravos. Tratava-se de não permitir nem as tergiversações interpretativas ou valorativas mas tampouco a equivocada complacência ou o conformismo.

Compreendia que não se podia admitir as deformações dos acontecimentos como aquelas que menosprezaram na sua justa medida as conquistas democráticas alcançadas ou as bases que se conseguiram estabelecer, apesar de essas conquistas ficarem afastadas de muitas aspirações essenciais do processo ou quando este, por fim, se dirigia por caminhos reformistas sob a traição social-democrata; um descaminho que as forças revolucionárias não puderam evitar, dentro das quais ele e o seu Partido actuavam. 

Naquela entrevista, a sua interessante análise era que a Revolução, como tal, na realidade não tinha terminado, isto é, ainda que muitos dos seus objectivos já tivessem sido em grande medida realizados, outros estavam ainda pendentes na agenda transformadora. 

Defendia a ideia que a revolução estava viva porque as conquistas alcançadas estavam também vivas, como era o caso da reforma agrária ou da legislação laboral, que considerava uma das mais progressistas da Europa Ocidental; deste modo destacava nesta lista que se contava com um poder local e democrático e com um movimento operário solidamente organizado. 

Mas, claro, a sua penetrante visão não podia também esquecer aquilo que se perdia; onze anos de política contra-revolucionária estava presente na sua análise, numa chamada de atenção, num alerta aos seus compatriotas para continuarem a lutar. Por isso prevenia que as forças reaccionárias e contra-revolucionárias estavam activas e existia o perigo de a sua acção conduzir à restauração; uma restauração que desembocaria no crescimento do poder económico e político dos monopólios e dos latifundiários, ligados como estavam, além disso, ao imperialismo estrangeiro. 

Este conjunto analítico apresentava, a seu ver, elementos para se convencer da necessidade de manter as bases revolucionárias da organização política, e obrigava também à observação realista da condição do país naquele contexto. Juntamente com muitos outros elementos, esse tipo de reflexões permitia manter os fundamentos revolucionários dos militantes e das massas mais conscientes. Esses exercícios incisivos e multifacetados e a rica utilização dos matizes e contradições dialécticas convertiam-se, assim, em factores chave para o desenvolvimento e aprofundamento da consciência política das massas naquelas circunstâncias e dotavam a organização política de fundamentos mais sólidos e adequados à condução da luta.

Aquela clarividência para entender o mundo em que se vivia – e de que o próprio Portugal fazia parte –juntamente com outros factores interpretativos, contribuíram para que tanto ele como o seu Partido não se deixassem arrastar pela onda do reformismo e do oportunismo que submergiu uma boa parte das esquerdas europeias; permitia-lhes, igualmente, não sucumbir aos falsos cantos de sereia do eurocomunismo. 

E lustros depois e até ao final da sua vida também se não deixou encantar pelas «novas» fórmulas dos recentes reformismos, algumas das quais chegaram até ao abandono puro e simples do marxismo e de toda a ideia de transformação da sociedade capitalista; uma tendência que cresceu e se aprofundou, particularmente, com a queda do socialismo do leste europeu e a desintegração da URSS. 

Cunhal não abandonou o marxismo nem o leninismo, não claudicou nem como tantos outros caiu no oportunismo sob o pernicioso argumento de, supostamente, modernizar a esquerda, isto é, não enfrentar o imperialismo e não se opor ao capitalismo. Pelo contrário, perante a queda daquela experiência socialista compreendeu que a questão era tirar as lições oportunas e redefinir o fosse preciso, mas sempre dentro dos princípios e da lealdade revolucionários.

Num outro sentido, essa lealdade aos princípios também não foi inibidora da necessidade de análise crítica da experiência soviética e das causas profundas da sua debacle. A isto estava ligada a tese de que o socialismo soviético não era o único possível para o exercício de dominação do proletariado, nem tampouco constituiu a única e obrigatória forma para um Estado socialista.

Consequentemente, na sua orientação para Portugal, não se tratava em momento algum de copiar nem os soviéticos nem as chamadas democracias populares. Estas reflexões encadeiam-se com a temática do Estado e a tomada do poder político, questão central para o marxismo; uma temática a que Cunhal dedicou estudos, reflexões e esforços de análise, entrelaçando a indagação teórica com o estudo das condições históricas e concretas do seu país e do contexto europeu onde esta se desenrolava. 

E era lógico este interesse que, como sabemos, foi uma temática central de Marx e Engels, e mais tarde de Lenine; na verdade, o proletariado não podia simplesmente agir e exercer o seu domínio através de formas e tipos políticos próprios da burguesia e do capitalismo; mas a grande questão que se desenhava perante os acontecimentos históricos que vivia era precisamente chegar a conceber esse novo tipo de Estado e de dominação política. 

Portugal teria, sem dúvida, que ser também criador a partir da sua própria história e condições, sem deixar de ter em conta os ensinamentos pertinentes de outras experiências, particularmente europeias. Neste caso, era um cacho de problemáticas que se entrelaçava. Pensar e esquadrinhar a natureza do Estado e da democracia, chegar à compreensão profunda do carácter do Estado burguês, tanto pela sua natureza como pela política que aplica, eis uma das grandes tarefas que se impôs.

Indubitavelmente, a questão do Estado e a conquista do poder eram centrais para a revolução, e a teoria e a praxis estavam obrigadas a enfrentá-las como tal. O marxismo tinha de manter-se como uma teoria viva, não como um conjunto de teorias estáticas e fixadas no tempo. 

Só vista dessa maneira é que a concepção de Marx podia manter-se como o instrumento de análise e de acção transformadora da realidade social e, por sua vez, enriquecer constantemente a teoria e adaptá-la às novas situações e circunstâncias. Na teoria, como sabemos, não são apenas importantes as respostas mas são-no também as perguntas, as questões que se colocam.

Por isso, estas temáticas, com o seu conjunto de problemáticas, são um indício significativo do trabalho e da elaboração teórica de Cunhal, porque significam um índice da compreensão do histórico-social, de como funcionam e entretecem os factores, de como se expressam e se mobilizam as classes sociais, etc..

Mas quando Álvaro Cunhal me surgiu naquela nova dimensão com a Revolução dos Cravos, fê-lo também na sua projecção de internacionalista, de homem profundamente irmanado com todas as causas justas da humanidade e dos oprimidos. E naquele momento brilhou, juntamente com outras figuras revolucionárias de Abril, como anticolonialista e consequentemente anti-imperialista. 

Então pôde desenvolver na praxis, com força maior, o modo de conjugar numa só frente unitária a luta do seu povo contra o fascismo e o capitalismo com os afãs anticoloniais e de libertação nacional dos países africanos que ficavam ainda como possessões do colonialismo português. 

Conhecia muito bem, e tinha-o incorporado até ao tutano, aquele ensinamento de Engels – que Marx rectificou e Lenine levou a um grau mais completo de desenvolvimento – de que um povo que oprime outro povo não pode ele mesmo ser livre. Foi assim que mostrou a sua profunda e lúcida compreensão da dialéctica entre a luta e a mudança social e libertação nacional. No seu caso, precisamente, desde as mesmas entranhas da Metrópole. 

A história recente das antigas colónias e, em particular a de Angola, não podia compreender-se sem a acção dos oficiais revolucionários e das forças e dirigentes políticos que contribuíram para que, pelo menos naqueles primeiros momentos, as antigas colónias passassem para as mãos das forças mais radicais, que vinham desde há anos a lutar, e impediram que fossem as forças pró-imperialistas e neocolonialistas as que se assenhorearam do poder naquelas circunstâncias.

Recordar hoje Álvaro Cunhal no seu centenário, por tudo isto, significa confirmarmo-nos nas nossas convicções revolucionárias de luta e por um marxismo vivo e criador.

(*) Isabel Monal é filósofa e professora universitária cubana, amiga de odiario.info, é directora da revista “Marxismo Agora”.

Tradução de José Paulo Gascão (com odiario.info)

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