sexta-feira, 15 de abril de 2016

Belo Monte e a democracia

                                                        

 Rodolfo Salm (*)

Enquanto o país ferve com manifestações a favor e contra o impeachment, aqui em Altamira não acontece quase nada. Nosso período de manifestações já passou. Quando saímos às ruas em defesa do meio ambiente e denunciando a corrupção da obra que estava ainda por ser iniciada, o país nos ignorou. 

Se o resto do país tivesse prestado mais atenção ao nosso apelo talvez não tivéssemos chegado ao ponto em que chegamos. Em junho de 2010, por ocasião da visita do então presidente Lula a Altamira, os manifestantes contrários à usina foram fortemente reprimidos pela polícia. Os que conseguiram furar o bloqueio foram ridicularizados pelo presidente que, com promessas de desenvolvimento, taxou-nos de irracionais (ver o vídeo).

Foram várias as manifestações em que sofremos forte repressão policial e que tudo o que pedíamos era o respeito à Constituição, atropelada em todas as etapas do processo de construção da maldita usina. Por isso que acho graça quando vejo os protestos “a favor da democracia” e em defesa desse governo. 

Que democracia é essa? Aquela que leva adiante um antigo projeto da ditadura, atropela índios e ribeirinhos, devasta a Amazônia como queriam os militares? Um projeto articulado diretamente pelo próprio Delfim Netto, que segundo delação de um executivo da Andrade Gutierrez teria recebido 15 milhões de reais para ajudar a montar os consórcios que disputariam a obra?

A cidade de Altamira está arrasada. As vias públicas estão arrebentadas, os serviços de saúde, segurança e educação entraram em colapso. Nenhuma das mais de 50 condicionantes impostas para o início das obras foi desenvolvida a contento. A rede de esgoto, a principal delas, não funciona. 

Parece que era tudo mentira. Isso porque muito além da corrupção Federal, ligada à equipe de campanha e ao gabinete da presidente Dilma, houve as corrupções estadual, municipal e local, que terminaram por consumir todo e qualquer recurso que pudesse vir a ser usado para a alguma melhoria na cidade.

Além da degradação do modo de vida dos povos indígenas e da prostituição infantil, por exemplo, que são faces menos visíveis da tragédia, as mais escancaradas são os atropelamentos e os inúmeros acidentes fatais de um trânsito marcado por caminhões trafegando alucinadamente em altíssima velocidade pelas ruas de uma cidade até bem pouco tempo atrás pacata.

Para mim, o mais triste é a transformação do rio em frente à cidade de Altamira. Aqui, o magnífico Xingu já não é mais o mesmo. Sua coloração original, um verde translúcido e profundo, tornou-se barrenta. As águas, de fortes correntezas visíveis de longe e múltiplos rodamoinhos por toda parte, agora são paradas. 

Tão paradas que montes de capim conseguem crescer para fora d’água ao longo das margens e na desembocadura dos igarapés. Não há mais muita graça em nadar nesse rio, que na verdade nem pode mais ser assim denominado. É um lago, por definição. Mas que nos recusamos de chamar de Lago de Belo Monte, pois esse nome nos é repulsivo.

Os pescadores já notaram que os peixes quase sumiram e se perguntam onde estarão. Como estarão vivendo, acostumados que são às águas rápidas, agora nesse lago parado? A cidade, que apesar de pequena tinha no rio sua maior atração, perdeu a graça completamente. Para colocar as coisas em perspectiva, é bom que se destaque que não se trata de um riozinho qualquer pelo qual tenho uma afeição especial por algum motivo pessoal. Estamos nos referindo a um dos maiores e mais magníficos rios da maior floresta tropical do planeta, em um momento em que a humanidade já tem consciência da crise global de biodiversidade que pode levar à sua extinção.

Aprendemos algo com Belo Monte? Possivelmente não. Em um artigo sobre a decadência das atividades econômicas na região decorrente da aproximação do fim das obras da barragem, publicado na edição de 2 de abril em O Estado de S. Paulo (“Altamira enfrenta a ressaca de Belo Monte”), o presidente da Associação Comercial local, Milton Elias Fisher, cita a crise imobiliária, com o colapso dos preços dos imóveis e dos aluguéis, e a crise que afeta o comércio. E se consola dizendo que “Altamira é a cidade polo da região... 

Além disso, depois teremos o projeto Belo Sun”. Belo Sun é um projeto de mineração aurífera a céu aberto de uma empresa canadense que produziria um rejeito, com cianeto e arsênico, tão tóxico que faria a lama de Mariana parecer uma sujeirinha inocente. Ou seja, sua lógica, e de muitos outros aqui em Altamira, é de resolver a crise deixada por uma devastação, com uma devastação potencialmente ainda maior. E o Governo Federal? Deixa o processo correr... A Belo Sun já está estabelecendo escritórios pela cidade.

Faz alguns anos, quando se discutia a construção da hidrelétrica de Belo Monte, recebemos aqui na UFPA de Altamira uns estudantes da FGV (Fundação Getúlio Vargas) de São Paulo para falar das consequências de construção da barragem. Além das inúmeras consequências ecológicas e sociais da obra gigantesca, lembro-me de ter dito que as ilegalidades relacionadas à obra eram tantas que punham em risco a própria democracia. Vários dos alunos me olharam com espanto e por algum tempo eu me perguntei se eu não havia exagerado.

Agora, em retrospectiva, me parece que não. Investigações recentes confirmaram o que há muito já se sabia, que a propina de Belo Monte financiou as campanhas do PT nas duas últimas eleições presidenciais e aparentemente comprou até pesquisas eleitorais. Ou seja, influiu de forma decisiva nos resultados das eleições.

E pior, na decisão de se construir esse monstro na Amazônia. Se, por um lado, os críticos do impeachment enfatizam o risco dessa manobra para a manutenção das instituições democráticas, por outro lado eu acredito que a falta de uma punição à altura do crime relacionado a Belo Monte representa um risco ainda maior: da confirmação de que as negociatas e a corrupção são definitivamente uma forma legítima de se fazer política.

Além de punir legal e politicamente todos os responsáveis por este crime ambiental para minimizar seus danos, além de cancelar todos os projetos hidrelétricos na Amazônia, o certo seria destruir essa barragem e recuperar as áreas devastadas para a sua construção. Querendo ou não, frequentemente me pego pensando em como eu gostaria de poder explodi-la para que o rio pudesse novamente correr livremente. 

Permitindo aos peixes migratórios subir e descer o Xingu como sempre fizeram; liberando a passagem da areia vinda do centro do Brasil para as praias do Baixo Xingu, permitindo a reprodução das tartarugas-do-Amazonas; varrendo o sedimento fino das corredeiras da Volta Grande do Xingu, salvando os acaris-zebra da extinção; trazendo a vida e a alegria de volta às aldeias indígenas da região e à cidade de Altamira.

Parece um delírio infantil, mas nos Estados Unidos já há um movimento relevante de desmonte de barragens hidrelétricas para a recuperação de rios. Por que esperar a situação ecológica na Amazônia se degradar mais para começar a fazê-lo? O prejuízo acumulado para se desmontar o que já foi feito é pequeno se comparado às perdas futuras, apenas em termos climáticos, com a degradação em curso da Floresta Amazônica.


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(*) Rodolfo Salm é PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia (Reino Unido), formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará, por onde desenvolve o projeto Ecologia e Aproveitamento Econômico de Palmeiras.

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(Com o Correio da Cidadania)

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