domingo, 18 de setembro de 2011

Três setembros de terror e um jornalismo de medo


Como a mídia – sobretudo a grande mídia comercial - se comportou diante desses momentos de genuíno terror político, econômico e humano? A exemplo do que ocorre na cobertura jornalística da crise econômica mundial, a mídia teve um papel decisivo na construção do imaginário do terror em três setembros distintos. Coberturas grandiosas cuidaram de realimentar a sensação de insegurança e pânico – e não é apenas coincidência que isso se repita agora nas páginas de economia.

  (Texto apresentado no seminário "O mundo depois de uma década de terror", dia 15 de setembro, na PUC-SP.)

Antes de mais nada, eu gostaria de desdobrar o setembro proposto para esse debate em três setembros de terror. Mas sem com isso desvirtuar a pauta. Quem sabe até complementando-a, de modo a facilitar a compreensão de suas dinâmicas e assim enriquecer o debate.

Vamos lá:

O 1º setembro de terror
Faltavam 14 minutos para as 9 horas da manhã de uma límpida terça-feira de céu azul quando um avião atingiu a Torre Norte do World Trade Center , em Nova Iorque. Era 11 de setembro de 2001.

Uma hora e meia depois, 2.996 pessoas haviam morrido.

Dez anos depois outros 250 mil corpos somam-se a essa devastação inicial. Segundo o El País, esse é o saldo das guerras do Afeganistão e a do Iraque - este, invadido em 20 de março de 2003 sob o pretexto de ocultar armas de destruição em massa. Elas nunca foram encontradas.

O 2º setembro de terror


Faltavam poucos segundos para as 12 horas da manhã de uma terça-feira em Santiago, quando dois jatos Hawker Hunter das forças armadas chilenas surgiram sobre o La Moneda, que fica na região central da cidade, como o Teatro Municipal em SP, ou o Copacabana Palace, no Rio.

Era o 11 de setembro de 1973.

Em rasantes precisos, os caças Hawker Hunters lançaram as primeiras bombas de 50 quilos sobre o palácio presidencial.

Segundos depois, com a mesma precisão acrobática, seguiram-se uma segunda, uma terceira, uma quarta e uma quinta ofensiva.

Bombas de 50 quilos despejadas sobre a sede do governo incendiaram então o edifício símbolo da democracia chilena tida até então como a mais sólida da América Latina. Tudo isso, repito, no centro de Santiago.
Mais de três mil pessoas foram assassinadas pelo golpe militar que derrubou o governo democraticamente eleito do médico socialista Salvador Allende.

Trinta e oito anos depois, estima-se que 40 mil pessoas morreram, foram perseguidas e torturadas pelo regime, segundo as avaliações mais recentes das autoridades chilenas. Não estão computados nestes números as demais vítimas da extensa lista de golpes e massacres perpetrados na América Latina e no Caribe , a partir da espoleta deflagrada pela direita chilena. Tampouco estão computados os empregos, os indicadores de miséria e desigualdade disseminados por toda a economia latinoamericana a partir desse laboratório avant à lettre do neoliberalismo, orientado diretamente por Milton Friedman e seus melhores alunos de Chicago.

O acerto de contas com esse pioneirismo está sendo discutido nas ruas de Santiago hoje pelos estudantes que sacudiram o país com a bandeira da educação pública, gratuita e de qualidade.

O 3º setembro de terror: 15 de setembro de 2008


Foi também num 15 de setembro como hoje, que estourou a notícia da quebra do quarto maior banco dos EUA.

Era o 15 de setembro de 2008.

O colapso do Lehman Brothers tornou-se o símbolo oficial de uma crise econômica que já dura três anos. Este dia funcionou para a crise como uma espécie de terceira torre do World Trade Center. Com a diferença que o seu efeito dominó ainda não cessou.

Desde então, mais 30 milhões de pessoas ficaram desempregadas no mundo. O total de famintos ultrapassou a marca de um bilhão de pessoas. O PIB mundial perdeu mais de 5 pontos de crescimento. Milhares de empresas quebraram. Dezenas de milhares de famílias sofreram o desmonte típico dos períodos de desmanche econômico, psíquico e social.

Como a mídia se comportou nestes episódios

Creio que esses três episódios históricos se entrelaçam numa mesma pergunta que poderia ancorar uma parte dos nossos debates nesse encontro:

Como a mídia – sobretudo a grande mídia comercial - se comportou diante desses momentos de genuíno terror político, econômico e humano?

Não pretendo responder a pergunta nessa breve intervenção, mas apenas arrolar elementos para que possamos discuti-la posteriormente, se os senhores acharem isso relevante.

Uma primeira opinião interessante que gostaria de expor é a do jornalista Luis Hernández Navarro, correspondente da Carta Maior na Cidade do México

No artigo Os dois 11 de setembro, publicado na Carta Maior, ele estabelece nexos entre dois desses setembros de terror: o do Chile e o do WTC.

No entender de Navarro eles se complementam na formação do arcabouço de um novo ciclo de hegemonia e de acumulação de capital norte-americano. Peço a licença de vocês para ler um trecho:

“O golpe do Chile serviu para retardar a progressão das forças de esquerda e de recorte nacional-popular no Cone Sul (...) No segundo caso –o da tragédia do World Trade Center-- permitiu que a Casa Branca, sob o pretexto de combater o fundamentalismo religioso (promovesse um) avanço no controle dos recursos petrolíferos no Oriente Médio, parte do ciclo de expansão e consolidação da globalização neoliberal.”

O advogado constitucionalista Michael Ratner, presidente do Centro para Direitos Constitucionais (CCR), dos EUA, reconhecido internacionalmente por enfrentar casos de violações de direitos humanos e de liberdades civis, corrobora esse entendimento. Mas vai além nos seus desdobramentos.

Ratner afirma que o caráter da sociedade norte-americana foi modificado nesse processo que ele batiza como: uma gigantesca Operação Condor dos EUA.

Trago também um pequeno trecho de sua entrevista ao La Jornada, republicada por CM:

“O próprio caráter da sociedade norte-americana mudou —a partir daí-- com as pessoas comuns aceitando as violações de suas liberdades pelo governo, as violações do direito internacional e da nossa própria Constituição. (...) o atentado seria tratado como um ato de guerra, com o que o governo assumiria poderes muito maiores ...É essencialmente o que fez Pinochet, mas de um modo muito mais amplo, capturando pessoas em qualquer esquina do mundo sem ordem ou processo judicial para colocá-las em centros de detenção clandestinos, não somente em Guantánamo ( ...e), depois de mantê-las incomunicáveis, sob Bush, torturá-las, encarcerá-las por tempo indefinido (e, se levadas a julgamento fazê-lo) diante de um tribunal militar...”

E, especificamente no que diz respeito ao tratamento midiático desses episódios, gostaria de destacar uma observação feita pelo professor Reginaldo Nasser, também em artigo publicado na Carta Maior, intitulado “Ditos e desditos: ainda o 11 de setembro”.

O tema é: até onde a mídia foi na apuração dos atentados de 11 de setembro. há algumas zonas cinzentas onde ninguém entra. O professor Nasser escreve:

"É verdade que há uma série de teorias conspiratórias estapafúrdias, mas que são constantemente utilizadas justamente para desacreditar todo e qualquer e desvio da “História Oficial”. Convenhamos, entretanto, que não se pode incluir nessa série dois dos principais representantes da imprensa conservadora nos EUA: William Safire e Robert Novak. A história de uma possível infiltração dentro da Casa Branca é um dos grandes mistérios não resolvidos de 11/09.

Como é que os terroristas adquiriram conhecimentos para enviar uma ameaça diretamente ao Serviço Secreto - e por que eles revelam suas capacidades desta forma? Por que a surpreendente revelação de Safire não provocou uma investigação do Congresso? Por que nem mesmo blogs de todos os perfis ideológicos, think thanks, jornais, tratam dessas informações? Por que há um silêncio sepulcral sobre esses dois artigos?


Voltaremos a esse tema no final dessa apresentação.

No caso do terceiro setembro, o de 2008, quando quebrou o banco Lehman Brothers, é dispensável demonstrar que o seu efeito dominó ainda não se esgotou. Vivemos hoje o que muitos economistas qualificam como o segundo mergulho recessivo, iniciado a partir da explosão da bolha imobiliária nos EUA em 2007.

Se é o segundo ou mero prolongamento do primeiro, importa menos do que constatar que sob esse divisor opaco instalou-se igualmente uma longa noite de pânico e terror. O armamento neste caso é de natureza econômica, mas também psíquica fomentado pela incerteza e a insegurança que nos cercam por todos os lados.

Creio que os números neste caso são dispensáveis para efeito deste debate, ademais de sobejamente conhecidos. Eu citaria apenas uma frase da professora Maria da Conceição Tavares que melhor que ninguém resumiu a natureza do terror embutido na dinâmica dos dias que correm.
Em entrevista recente à Carta Maior, a professora Conceição resumiu com sua verve muito própria e afiada:

“Vivemos o colapso do neoliberalismo, mas sob o tacão dos ultra neoliberais: isso é a treva!”

A professora referia-se ao arrocho fiscal imposto pelo Tea Party nos EUA.
Mas sua apreciação poderia ser estendida ao suicídio da social-democracia européia. O que vemos hoje no desmanche da União Européia é um conjunto indistinto de administradores de mercados, e não de Nações, que dobrou a aposta no neoliberalismo com novos cortes em políticas públicas em plena crise.

Tenta-se, assim, tratar a doença com suas próprias causas. É a treva, como diz Conceição.

Populações asfixiadas pela terapia -- que aprofunda 30 anos de disseminação da desigualdade urbi et orbi-- acodem às ruas nesse momento em várias partes do mundo. Anulada no seu relevo institucional por chefes de Estado e partidos majoritariamente ortodoxos e tíbios, a democracia representativa também se apequena.

O sentido transformador da política passa a ser jogado nas ruas. Mas o terrorismo econômico, em vôos rasantes de incerteza, desemprego e ameaças sombrias, prossegue o seu bombardeio incessante.

Como no World Trade Center. Como no La Moneda.

A mídia, sobretudo aquela especializada em economia, vocaliza, amplifica e, pior, assume o papel de ordenança da doutrina do terror econômico. Uma frase do insuspeito ex-ministro Delfim Neto condensa o desconcerto de muitos de nós diante de uma coalizão midiática-conservadora que criticou o recente corte na taxa de juro brasileira, a mais alta do mundo.

Disse Delfim em sua coluna no jornal Valor Econômico:

“O mundo está literalmente vindo abaixo e sugere-se que o Copom deveria repetir o dramático erro de 2008: "Esperar para ver"!

Apenas adicionaríamos ao espanto de Delfim uma síntese:

‘Isso é terror econômico’

Quantas vítimas ele já produziu? Quantas ainda produzirá antes de ser vencido?

A exemplo do que ocorre no jornalismo da crise, ao ponto de desconcertar até ilustres conservadores como o ex-ministro da ditadura, a mídia teve papel decisivo na construção do imaginário do terror nos dois outros setembros que mencionamos.

No caso chileno, justificando-o, oferecendo ao método sanguinário o escopo de uma legitimação que constrangeu o mundo. No caso da tragédia do World Trade Center, instrumentalizando a demência bestial de um radicalismo cego, para colocá-la a serviço de outra bestialidade bélica, com fins estratégicos indisfarçáveis: a tomada e o controle dos poços petrolíferos no Oriente Médio.

Para encerrar esse breve vôo sobre setembros separados no tempo, mas unidos na essência histórica, gostaria de me permitir mais uma observação de ordem acadêmica.

As interrelações entre terror e mídia, aqui descritas em pinceladas fugazes, são ao mesmo tempo ideológicas e congênitas. E isso deveria obrigar a uma postura crítica não registrada não reiterativa, ao contrário do que vimos acontecer. Para Marshall McLuhan:

“Sem comunicação não haveria terrorismo”.

O professor Venício Lima, da UNB, no artigo A estratégia do medo, assim discorreu sobre esse intercurso:

“(...) existe certo consenso de que a divulgação dos atos de terror por meio da grande mídia constitui uma condição básica para a existência do fenômeno. A violência terrorista tem como um de seus principais objetivos a transmissão de uma mensagem. Os executores da ação atribuem um papel instrumental à violência, já que a intenção é que ela se constitua de significações por parte do público. A principal delas é o medo generalizado...”

A cobertura jornalística do terrorismo após o 11 de setembro de 2001 atendeu a essa endogamia perversa. Repito, sem opor uma filtragem crítica, mas assumindo como norma editorial uma deformação intrínseca que é o jornalismo embedded (embarcado).

Coberturas grandiosas cuidaram de realimentar a sensação de insegurança e pânico –e não é apenas coincidência que isso se repita agora nas páginas de economia. Aqui também temos o jornalismo embedded a pontificar interesses nas entranhas do mercado financeiro. O desdobramento dessa sinergia entre a mídia e os três setembros aqui relatados converge para um mesmo ponto: transformar a opinião pública em objeto passivo da ação qualificada e autônoma, nunca argüível, sempre contundente de esferas e engrenagens acima da sociedade, e, sobretudo, à margem de seu escrutínio.

À mída cabe reiterá-las como as únicas capazes de preservar a saúde econômica e a integridade social da nação. Sejam elas, bancos centrais independentes; exércitos de ocupação; tropas de assalto ou grandes corporações comandadas por sábios sem rosto.

Dias antes da falência da Enron, em dezembro de 2001, pouco mais de dois meses após o 11 de setembro, sábios sem rosto dessa cepa incontrastável auditavam a contabilidade viciosa da gigante da energia norte-americana e davam seu veredicto: ‘excelente’.

Durante três décadas, essa mesma sapiência obsequiosamente reiterada pela mídia, colocou de joelhos governos e nações . Vergou-os ate a aceitação inquestionável dos princípios doutrinários conhecidos como o Consenso de Wahsington A saber: desregulação dos controles do Estado e da democracia sobre os mercados financeiros; livre circulação de capitais especulativos; privatizações, desinvestimento e desmonte de estruturas e de políticas públicas até definhar os Estados à expressão mínima de guardiões do capital; isenções fiscais máximas aos ricos e financiamento regressivo dos serviços essenciais demandados pelos segmentos mais pobres.

Em sua mais impactante mea-culpa, o Fundo Monetário Internacional (FMI), um dos ícones do sacerdócio midiático mercadista, admitiu , em fevereiro deste ano:

“que subestimou os sinais da crise financeira de 2008 por causa de sua "governança débil", de sua oposição ao "pensamento crítico" e sua crença "excessiva na solidez das grandes instituições financeiras".

Um dos desafios a decifrar esta noite, talvez, é entender por que o aparelho midiático que serviu a esses propósitos de forma canina, continua a funcionar no Brasil à margem de uma auto-crítica que até os interesses que ele vocaliza estão sendo obrigados a assumir.

Encerro com um convite à reflexão democrática:

Será talvez a deformação congênita de uma estrutura quase monopólico das comunicações, que impede o arejamento do jornalismo brasileiro por um leque mais amplo de interesses, que inclua também o interesse público do conjunto da Nação?

(*) Diretor-presidente da Carta Maior.

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