sexta-feira, 24 de julho de 2020

Ode à ignorância


                                                                     


Marina Amaral (*)

Para além do baile que tomou o governo na votação do Fundeb, a proposta rejeitada por um acordo forçado pela Câmara dos Deputados deixa claro o que oferece o governo à população brasileira: a destruição de políticas públicas que desenham um futuro mais justo para o país em troca de um novo mandato para Jair Bolsonaro. Não há outra forma de interpretar a tentativa de desviar o dinheiro da Educação básica para o tal programa Renda Brasil. 

Na proposta nascida no ministério da Economia, chama atenção ainda a intenção de aproveitar o fato de os recursos do Fundeb não estarem sujeitos ao teto de gastos, exatamente por sua função primordial para a sociedade. Isso, em um momento de extrema fragilidade para educadores e alunos com as aulas interrompidas pela pandemia. 

Os recursos do Fundeb, criado em 2007, financiam principalmente o pagamento dos professores das escolas infantis ao ensino médio em todos os municípios e Estados brasileiros. O fundo é também instrumento de correção de injustiças, dedicando uma verba percentualmente maior aos municípios e Estados mais pobres. 

Um de seus grandes feitos, de acordo com especialistas da educação (aconselho a ouvir Ricardo Henriques na edição de 22/07 do podcast da jornalista Renata Lo Prete), foi substituir as professoras “generalistas”, que, nos municípios pobres, davam aulas de todas as matérias e para diversas turmas (não raro na mesma classe), por professores formados em todas as escolas do Brasil. 

A importância dos recursos do Fundeb também pode ser medida pela sua falta: em 2012, uma série de reportagens da agência Pública mostrou a correlação entre baixos níveis de qualidade da educação na Amazônia e a corrupção municipal na gestão de recursos, a partir do cruzamento dos dados do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Brasileira) com o resultados das auditorias da CGU (Corregedoria Geral da União). 

As quatro cidades que não conseguiram evolução nos índices do Ideb naquele ano eram as mesmas que acumulavam maior número de improbidades na prestação de contas. No Marajó, por exemplo, uma das regiões mais deficitárias em educação, lanchas para o transporte público dos alunos, compradas com o dinheiro do Fundeb, foram desviadas para o lazer de autoridades municipais, impedindo a frequência escolar de crianças de diversas comunidades. 

Ou seja, quando o dinheiro federal não chega nas escolas não há como a educação, cuja prioridade é quase unânime entre brasileiros de diversas posições política, evoluir. Principalmente quando está em frangalhos, não apenas por causa da pandemia, mas pelos efeitos da dobradinha Veléz-Weintraub no ministério da Educação. Problemas crônicos como a evasão escolar, principalmente no Ensino Médio, prometem se agravar em nível exponencial. 

E a perversidade só aumenta quando se olha para o outro lado, o do obscuro programa de renda que o governo pretende implantar, provavelmente substituindo também o Bolsa Família. Embora diversas vezes o candidato Bolsonaro tenha qualificado na campanha o programa criados nas gestões petistas de “esmola”, o Bolsa Família se destina às mulheres com filhos em idade escolar, condicionando o recebimento do recurso à presença das crianças na escola, entre outros pontos, como a carteira de vacinação em dia. 

Com a ajuda emergencial, que tanto relutou em dar, o governo descobriu que pode compensar parte da perda de votos causada por seu comportamento na pandemia com a distribuição de dinheiro para os que estão à míngua. Aproveita-se da ignorância que semeia transformando em “presente” a distribuição de recursos públicos, em um momento de extrema necessidade, à custa de direitos, igualmente fundamentais, sem os quais se condena à pobreza mais de uma geração.

(*)  Marina Amaral é codiretora da Agência Pública.

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