Cena do filme "Carandiru", de Hector Babenco / Marlene Bergamo/Divulgação
Militantes e familiares farão um ato em memória às vítimas do Massacre do Carandiru na próxima quinta-feira (6). Com concentração no Metrô Tiradentes, região central da cidade de São Paulo, a homenagem marca os 24 anos da chacina que vitimou 111 pessoas, completados neste domingo (2).
No sábado (1), o grupo organizou uma série de apresentações artísticas na Praça Roosevelt para arrecadar fundos para o ato.
As manifestações ocorrem na semana seguinte em que a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) decidiu anular os julgamentos que condenaram 74 policiais militares acusados pelas mortes dos 111 presos. O massacre aconteceu na Casa de Detenção de São Paulo no dia 2 de outubro de 1992, após uma rebelião no pavilhão 9 da penitenciária.
Na terça-feira (27), o desembargador Ivan Sartori votou pela anulação e absolvição dos réus, acatando a tese dos advogados dos policiais militares que alegaram que os réus haviam agido em "legítima defesa".
Já o revisor do processo, Camilo Léllis, e o desembargador Edison Brandão, votaram pela anulação de todos os julgamentos, por considerarem que não há provas que demonstrem quais foram os crimes cometidos pelos agentes. A decisão do trio contraria cinco júris em primeira instância realizados entre 2013 e 2014.
Do ponto de vista político, a decisão do TJ-SP representa uma tentativa de se reescrever a história do Massacre do Carandiru. A avaliação é do assessor jurídico nacional da Pastoral Carcerária, Paulo Malvezzi. "Isso [argumento da legítima defesa] significa dizer que o culpado da situação, as vítimas são seus próprios algozes.
Em tese, o que se tentou construir ali foi que eles tentaram tirar a vida dos policiais e eles estavam apenas se defendendo, o que é um absoluto absurdo já que nenhum policial foi ferido à bala ou morto", argumentou.
Já pela perspectiva jurídica, sustenta Malvezzi, o veredicto evidencia a existência de uma seletividade na forma como o tribunal aplica a lei. "Esse tribunal e essa câmara específica é conhecida por não ser, em absoluto, garantista [de direitos]. Ao contrário, o judiciário paulista é extremamente conservador e condena pessoas com pouquíssimas provas. Em caso de drogas, por exemplo, é comum que elas sejam condenadas apenas com a palavra do policial", disse.
Em julho, Sartori negou a apelação da Defensoria Pública e condenou um homem acusado de furtar cinco salames de um supermercado em Poá, na Grande São Paulo. Na ocasião, o desembargador chegou a afirmar que o acusado, que já tinha passagens anteriores pelo mesmo crime, seria “um infrator contumaz, que faz do crime meio de vida”.
Para Malvezzi, o ocorrido explicita um tribunal "hipócrita" e que aplica as leis penais de forma "tirânica" para esses setores pobres, periféricos e marginalizados da sociedade, mas quando os réus são agentes públicos, aplica de maneira garantista. "Ainda que a condenação destes policiais tivessem sido confirmadas pelo tribunal, a gente não poderia, em absoluto, falar em justiça enquanto todas as famílias não forem devidamente indenizadas, enquanto o Estado não reconhecer seu papel no massacre", ponderou.
Justiça
É o que espera Fernanda Vicentinho, 32 anos. Ela é filha de Antônio Quirino da Silva, assassinado no 3º pavimento, no 2º andar do Carandiru. Ele tinha 29 anos e foi morto com 4 tiros.
Fernanda tinha apenas 7 anos na época. Ela relembra que era dia de visita, mas sua tia, com quem morava na época, foi orientada que não havia visita por causa da rebelião. Elas viram a movimentação de repórteres no presídio, mas souberam apenas quando chegaram em casa pela televisão.
Como daquela vez, Fernanda soube por terceiros da decisão de Sartori nesta semana. O advogado que cuida do processo de indenização desde 2014 lhe contou da decisão. Para ela, a decisão do trio da 4ª Câmara Criminal foi injusta. "Acho que os policiais deveriam pagar pelo que fizeram com meu pai e os outros presos".
Fernanda está hoje desempregada e vive em Diadema. Ela afirma que, ainda que poucas, guarda boas lembranças do pai, das visitas que ela fazia. "Acho que se ele estivesse vivo, ele estaria aqui nos apoiando, trabalhando. O erro foi deles de ter tirado a vida do meu pai".
Contexto
Mais de duas décadas após o massacre, a população encarcerada no Brasil cresceu vertiginosamente. Em 1992, ano do massacre, haviam aproximadamente 100 mil pessoas presas no país, contra as mais de 600 mil atuais. Esses números representam um aumento de mais de 500%. Além disso, as condições dos presídios que propiciaram a ocorrência do Massacre do Carandiru na época, continuam "absolutamente vigentes", segundo Malvezzi.
"Essa população continua presa em condições de absoluta degradação, de violência sistemática por parte do agentes do Estado, de privação dos serviços básicos, em um ambiente de completa superlotação. Foi justamente esse o fermento do massacre do Carandiru", ponderou o advogado.
Segundo Malvezzi, é preciso adotar medidas radicais de desencarceramento e desmilitarização das polícias da gestão pública. Caso contrário, "a gente teme que esse fato volte a se repetir".
Histórico
A rebelião que culminou no massacre foi originada de uma briga entre alguns presos. Cerca de 300 policiais militares da Tropa de Choque, comandada pelo Coronel Ubiratan Guimarães, invadiram a casa de detenção do presídio e exterminaram 111 homens desarmados e rendidos. Cerca de 90% deles contavam com marcas de tiros no pescoço e na cabeça; pelo menos 74 aguardavam por julgamento.
Embora tenham sido condenados a penas que variavam de 48 a 624 anos de reclusão (totalizando mais de 21.000 anos de prisão), os policiais militares nunca foram presos e aguardavam a análise do recurso da defesa em liberdade.
Inaugurado em 1920, o Carandiru era reconhecido como o maior presídio da América Latina e chegou a conter mais de 8 mil presos. Quando encerrou as atividades, tinha população semelhante ou superior a de 259 dos 645 municípios paulistas.
(Com o jornal Brasil de Fato)
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