M K Bhadrakumar [*]
Os Estados Unidos pediram o julgamento da Rússia por cometer crimes de guerra na Síria. O secretário de Estado John Kerry disse em Washington na sexta-feira: "A Rússia e o regime (sírio) devem ao mundo mais do que uma explicação... Trata-se de actos que pedem uma investigação adequada de crimes de guerra. E aqueles que os cometem deveriam ser responsabilizados... Também precisamos manter a pressão sobre a Rússia em relação à implementação do acordo de Minsk (sobre a Ucrânia). E.. deixamos claro publicamente que se não pudermos implementar Minsk nos próximos meses ou chegarmos a um plano claro de como exactamente vai ser implementado... então será absolutamente necessário renovar as sanções (contra a Rússia)".
Não há dúvida, a temperatura abaixo de zero nas relações EUA-Rússia reduziu-se mais uns dez graus Celsius. Mesmo na época da Guerra Fria, quando a antiga União Soviética era tratada como um "império do mal", Washington nunca pretendeu que os responsáveis do Kremlin devessem ser julgados por crimes de guerra.
Nem tão pouco a União Soviética. Mesmo depois de matarem centenas de milhares de civis iraquianos, líbios e afegãos e promoverem a destruição injustificável daqueles países na última década, e apesar de os EUA estarem activamente a tomar parte na guerra o Iémen, Moscovo nunca pretendeu que George W. Bush ou Barack Obama – ou mesmo Hillary Clinton – devessem ser processados como criminosos de guerra.
O que influenciou Kerry? Ele parece um homem frustrado que perdeu sua frieza. Percebe que o seu homólogo russo, Sergey Lavrov, foi mais hábil do que ele, apesar de ele se considerar igualmente brilhante.
Os EUA esperavam preservar de alguma forma a Nusra afiliada à al-Qaeda a fim de utilizá-la como ponta de lança em mais um empurrão final para a "mudança de regime" na Síria – se não sob a presidência Obama, pelo menos sob o próximo presidente.
Na verdade, Lavrov percebeu a trama de Kerry – no fundo, Kerry, um político esperto com alguma experiência em diplomacia não podia estar à altura do imensamente experiente diplomata de carreira e intelectual que é Lavrov. Assim, Lavrov actuou com uma cara de jogador de poker e enredou "John" num acordo de paz que o Pentágono nunca aprovaria, o qual tencionava realmente transformar a Nusra em carne moída.
Por outro lado, Kerry sente frustração porque o presidente Barack Obama não desejava abrir um caminho paralelo de intervenção militar na Síria, a qual, pensava ele, teria dado uma muito necessária insolência à sua rota diplomática. Kerry pertence à velha escola dos mediadores de poder em Washington, os quais subscrevem a noção de que os Fuzileiros Navais abrem caminho para diplomatas. (Ele próprio outrora foi um Marine)
Mas Kerry não percebeu que o terreno por baixo dos pés americanos no Médio Oriente se havia deslocado. As relações dos EUA com a Turquia bem como com a Arábia Saudita, as duas potências chave que alimentaram o conflito sírio, são hoje tão amargas que Washington está a actuar isolado no anfiteatro apesar de a orquestra ter abandonado o maestro.
O que me intriga é a razão porque Kerry quer que apenas os líderes russos e sírios sejam julgados por crimes de guerra. Por que não o Líder Supremo do Irão, Ali Khamenei, assim como quem comanda os Corpos da Guarda Revolucionária Islâmica? Mas nesta altura dos acontecimentos Kerry não pode proferir essa palavra de quatro letras – Irão – porque se supõe que o compromisso com aquele país seja o melhor legado da presidência Obama. Mas, se não fosse o Exército da Guarda Revolucionária Islâmica, o qual se sacrificou tão fortemente em sangue e riquezas, o governo sírio nunca poderia prevalecido no combate. ( Times of Israel )
O terceiro aspecto fascinante da observação apocalíptica de Kerry é que ele parece sugerir que os EUA ainda pretendem vencer a guerra na Síria. Afinal de contas, uma constante característica da história é que o vencedor despache o derrotado para o tribunal dos crimes de guerra – seja Slobodan Milosevic ou Saddam Hussein.
Dito de modo diferente, será que Kerry quer dizer que os EUA pretendem derrotar a Rússia numa guerra? Será o seu prognóstico que a III Guerra Mundial está logo ali na esquina? Não compreende ele que a total aniquilação do seu próprio país num confronto nuclear com a Rússia tornaria irrelevante toda a sua conversa acerca de crimes de guerra?
Kerry deve estar a sentir-se frustrado porque o Nobel foi para o presidente colombiano! Que modo de acabar uma carreira distinta na política e na diplomacia sem grande reconhecimento pelo bom trabalho feito! Kerry deixa o palco da diplomacia internacional como um homem amargurado.
É improvável que Lavrov responda. O que pode ele dizer, afinal de contas? Kerry excedeu-se para reverter a maré da história e o resultado era razoavelmente previsível. Não importam suas resolutas tentativas, ele não podia apagar a realidade geopolítica de que os EUA são uma potência em retirada. Não só no Médio Oriente mas também na Ásia-Pacífico.
A visão de uma super-potência a caminhar para o crepúsculo nunca é agradável. Foi o caso com Roma, Bizantinos, Espanha, Portugal, França, Grã-Bretanha. Vejam-se as notícias mais recentes do Mar do Sul da China. ( Wall Street Journal )
08/Outubro/2016
Ver também:
Ash Carter Launches Plan C; Pentagon Begins Low-Intensity, Stealth War in Syria , Mike Whitney, 07/Out/16
The War Against Syria: Both Sides Go to "plan B" , The Saker, 30/Set/16
What the Deployment of Russian S-300 Air Defense Systems to Syria Really Means , Andrei Akulov, 07/Out/16
[*] Ex-diplomata indiano, analista político.
O original encontra-se em blogs.rediff.com/mkbhadrakumar/2016/10/08/kerrys-sorrows-are-unspeakable/
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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