terça-feira, 18 de junho de 2013

“Até Amanhã, Camaradas”, uma lição política habitada por humanos

                                                               
O odiario.info prossegue a publicação de testemunhos acerca da figura de Álvaro Cunhal no ano do seu centenário. Num belo artigo, John Catalinotto aborda o romance que é a mais notável realização literária de Álvaro Cunhal/Manuel Tiago. E que é também, seguramente, uma das grandes narrativas da literatura universal sobre a acção revolucionária do proletariado.

Com o meu português rudimentar, acabara, com grande esforço, os últimos capítulos de Até Amanhã, Camaradas* nesse fim-de-semana de Junho há oito anos, quando soube da morte do autor deste poderoso romance.

Ouvi falar de Álvaro Cunhal pela primeira vez depois da Revolução Portuguesa de 1974. E de Manuel Tiago, o seu alter-ego literário, passados mais de 30 anos. Em 2004 eu aceitara uma oportunidade de contribuir com artigos políticos dos EUA para o Avante!. Pensei que ler os romances de Cunhal / Tiago seria uma boa forma de aprender português, bem como de obter algum conhecimento acerca do Partido Comunista Português.

Nada melhor para este conhecimento do que este romance clássico sobre a preparação de uma greve geral na província do Ribatejo, a noroeste de Lisboa, em 1944, e sobre os seres humanos que a organizaram e levaram a cabo. Fizeram-no sob condições de ilegalidade impostas por uma ditadura fascista. Era fácil aceitar que Cunhal conhecia o modo como os seus camaradas desempenhavam as suas tarefas. Seria possível que alguém que era secretário-geral de um dos maiores e mais eficientes partidos comunistas da Europa tivesse de alguma forma encontrado o tempo e energia para escrever um romance credível habitado por humanos?

Apenas poderemos assumir que durante os mais de quinze anos que Cunhal passou em isolamento na prisão (quando não podia fazer o que os líderes partidários fazem todos os dias), Tiago imaginou como iria escrever os seus romances. Que tarefa sublime têm que desempenhar aqueles que constroem um partido comunista: começar com seres humanos com todas as suas forças e fraquezas, o medo e a coragem, as suas faltas e talentos, para chegar a uma realização capaz de lutar contra a classe dirigente opressora com séculos de domínio por trás de si. O desafio é ligar estes indivíduos de modo a que o seu conjunto resulte mais forte do que a mera soma das suas partes.

Somos apresentados primeiro aos indivíduos. Um dirigente totalmente abnegado e dedicado que, contudo, não é capaz de se ligar emocionalmente aos seus camaradas e de compreender de que modo há-de obter o melhor do seu potencial. Um jovem e dedicado organizador, a começar a vida clandestina, que conta uma mentira muito sorrateira à mulher estipulada para trabalhar com ele porque está apaixonado por ela. Um camarada totalmente desprovido de disciplina partidária (absolutamente necessária para o trabalho no partido) que, no entanto, recusa denunciar ao inimigo sob tortura. 

Trabalhadores rurais sem grande educação formal, ou mesmo na política do partido, mas que ganharam a confiança dos seus colegas e estão destinados a conduzi-los na luta. Um pequeno-burguês verdadeiramente enervante, um advogado, que, apesar das suas fraquezas e receios presta importantes contribuições materiais. Uma mulher que age de forma um pouco demente de modo a desviar a polícia política fascista (a PIDE) da captura de um dirigente dos trabalhadores agrícolas.

No curso do planeamento de uma greve geral na região, vemos como estes indivíduos trabalham juntos, onde se encontram, em que discordam, e como o PCP se implanta naquela região de Portugal. Não vou tentar contar esta história, a não ser para a relacionar com um episódio que permanece na minha memória, e reflectir sobre uma conclusão da última parte do romance. Acredito que estas lições são importantes para quem quer que permaneça activo hoje, num momento em que a classe dirigente foi bem-sucedida em diabolizar a própria ideia de um partido político com trabalhadores disciplinados.

Num momento em que o apelo à greve é divulgado pela primeira vez, dois trabalhadores da região perguntam a dois dos organizadores, ambos membros do PCP, quem está por trás da greve. “É o PCP que está a organizar a greve?”, perguntam. Os membros são cautelosos, preocupados com a possibilidade de assustar os trabalhadores e afastá-los se admitirem a verdade. Tentam evitar a questão, mas não conseguem. Finalmente admitem que o PCP está por trás do apelo. Os trabalhadores mostram-se aliviados, agora que sabem que a greve será a sério e organizada para ter a máxima força. É essa a reputação do PCP.

A greve é bem-sucedida e consegue mobilizar a grande maioria dos trabalhadores na região. No entanto, a polícia fascista consegue esmagá-la pela força. Muitos dos seus líderes são capturados, aprisionados, torturados. Alguns são assassinados, incluindo o camarada que é talvez o melhor dirigente político. Outros têm que fugir ou esconder-se. A organização regional parece ter caído por terra. Neste tempo anterior aos telemóveis e à Internet, não há contacto com a direcção do PCP em Lisboa.
Meses depois de a greve ser travada, os dirigentes do Partido em Lisboa conseguem finalmente retomar contacto. Contam ter de enviar novos dirigentes, para reconstruir a organização. Mas o impacto da greve e da repressão não é o que esperavam. Apesar do terror da polícia, as massas de trabalhadores têm mais confiança na sua própria força. Também ganharam mais confiança na dedicação e seriedade do Partido. Os restantes dirigentes uniram-se e restabeleceram a organização. Promovem heróicos dirigentes junto das bases para serem líderes da estrutura regional do Partido. O Partido sofreu pesadas baixas… Mas está mais forte que anteriormente. Não foi no facto de terem conseguido evitar baixas, mas no reforço da luta, que os trabalhadores e o seu partido ganharam força.
Para além disso, uma camarada, frustrada pelo seu papel como coadjuvante e encarregada da casa clandestina, que sofrera uma tragédia pessoal digna de qualquer história de amor não correspondido ou impossível, é reconhecida pelo partido como dirigente. É destacada noutra região para treino e direcção política. Talvez isto assinale o proveito mais relevante da greve, o reconhecimento do contributo das mulheres e a duplicação do número de potenciais dirigentes políticos.
Cunhal poderia ter escrito estas lições num panfleto. O romance de Tiago torna-as ainda mais credíveis.

* Há muitas outras avaliações que podem ser feitas da vida de Álvaro Cunhal. Preferi limitar este artigo de memória a trazer ao conhecimento das pessoas, em todo o mundo, um contributo diferente, deste dirigente comunista. Para os leitores de língua inglesa, existe em vídeo a série, falada em português, com opção de subtítulos em inglês, que consiste na adaptação do livro e apresenta a história de Até Amanhã, Camaradas(título em inglês: UntilTomorrow, Comrades).

Nova Iorque
13 de Junho de 2013

Tradução: André Rodrigues P. Silva

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