António Santos
Abraham Lincoln definiu a democracia como: «o governo do povo, pelo povo e para o povo». Mas uma análise séria do exercício do poder nos EUA indica que se trata de um governo «dos ricos, pelos ricos e para os ricos». E isso não se chama democracia, mas «plutocracia».
Responda rápido. Sim ou não? O que é que não entende? Ou é uma democracia não é! Não compreende? Então deixe-me explicar-lhe a origem etimológica do termo: democracia é o «poder do povo». Simples não é? Ou todo o povo pode escolher os seus líderes em condições de igualdade e liberdade, ou não pode. Sim, é verdade que nos EUA mais de 12 milhões de pessoas estão privados desse direito por serem imigrantes ilegais, mas os cidadãos podem votar.
Claro que o resultado dessas eleições depende de campanhas de centenas de milhões de dólares doados directamente pelos homens mais ricos do país… mas no fim ganha quem tiver mais votos. Não necessariamente, é certo, porque, como já aconteceu na corrida entre Bush e Gore, o Supremo Tribunal pode dar a presidência ao candidato menos votado, mesmo que meio milhão de votos o separem do vencedor. Mas pelo menos os cidadãos não são violentamente reprimidos pelo Estado, excepto, evidentemente, se esses cidadãos forem afro-americanos.
Quiçá um estudo, publicado em 2014 pela Universidade de Princeton, nos EUA, possa contribuir para o debate: durante vinte anos, os prestigiados professores Martin Gilens e Benjamin Page procuraram saber se o regime dos EUA respeita o conceito de democracia. No âmbito deste estudo, os académicos levaram a cabo uma curiosa experiência social: perguntaram a duas mil pessoas de diferentes extractos sociais se concordavam com um conjunto de propostas políticas em debate na sociedade estado-unidense.
E eis a conclusão: só as propostas políticas que agradaram aos entrevistados mais ricos é que foram executadas pelo governo. Pelo contrário, apenas 18 por cento das propostas preferidas dos entrevistados de classe trabalhadora é que se transformaram em políticas públicas. Segundo os dois estudiosos, «as políticas públicas estão dominadas por poderosas organizações empresariais e por um pequeno número de magnatas americanos, pelo que a ideia de a América ser uma sociedade democrática está seriamente comprometida».
As conclusões dos investigadores permitem, pelo menos, demonstrar que os EUA não se enquadram na definição democrática de Abraham Lincoln: «o governo do povo, pelo povo e para o povo». Não só mais de metade dos congressistas são milionários como estes representantes dependem dos 0,4 por cento mais ricos da população, que financiam o grosso das campanhas eleitorais no âmbito de actividades legais de lobby.
Democracias e plutocracias
Como Lincoln, Jean-Jacques Rousseau, outro fundador do conceito moderno de democracia, tampouco definiu exclusivamente democracia como o cumprimento de formalidades eleitorais. Inversamente, Rousseau defendia que o regime democrático não é compatível com sociedades em que uma minoria seja muito rica e uma ampla maioria viva na pobreza.
Escrevendo sobre o parlamentarismo inglês do séc. XVIII, Rousseau acusa: «Os ingleses acham-se livres porque votam de xis em xis anos para eleger os seus representantes, mas esquecem-se de que no dia seguinte a terem votado, são tão escravos como no dia anterior à votação». Para Rousseau, não é possível delegar a soberania e a representatividade numa sociedade de classes antagónicas. Ou seja, um patrão não pode representar os interesses de um trabalhador como o opressor não pode representar o oprimido. Para o filósofo francês, a democracia seria irrealizável até à construção de uma sociedade sem classes sociais.
Neste sentido todas as sociedades modernas representam ditaduras de uma classe social sobre outra classe social, pelo que a democraticidade não é nunca absoluta e só pode ser apreciada na medida relativa das suas limitações.
Regressando aos EUA, devemo-nos portanto questionar quão democrático é o acesso à cultura, à habitação, à saúde e à educação naquele país? E, mais ainda, quão democrática é a economia ou o funcionamento das empresas?
Mas não fujamos à questão: saber se os EUA é ou não uma democracia. Lénine faz uma pergunta bem mais premente: democracia para quem? Isto porque um governo «dos ricos, pelos ricos e para os ricos» não se chama democracia, mas «plutocracia».
Então? Democracia ou ditadura? Ainda não sabe? Recuemos a Péricles, porventura o autor da mais antiga das definições de democracia: para o filósofo grego, para uma democracia ser verdadeira deve cumprir três critérios: em primeiro lugar, o regime democrático deve ser autóctone, não podendo ser importado ou copiado; em segundo lugar, a democracia deve servir sempre os interesses económicos da maioria da população; finalmente, a democracia deve obedecer a leis justas e iguais para todos.
E contudo, na Grécia Antiga os escravos, os escravos libertados e as mulheres não tinham quaisquer direitos políticos, confinando a democracia a 20 por cento da população. Agora diga-me: a Grécia Antiga era uma democracia? Sim ou não? Responda rápido.
Acabou o tempo.
Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2198, 14.01.2016. (Com o diario.info)
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