Miguel Urbano Rodrigues
Nesta terrível crise civilizacional, quando um sistema de poder monstruoso aspira ao domínio universal e perpétuo sobre a Terra, quando a simples ideia de revolta é criminalizada, quando a resistência à opressão é qualificada de terrorismo – a felicidade é também atingível. Jean Salem (foto) sugere que a encontremos nos caminhos da luta, «na luta por uma causa justa que nos ultrapassa, e que sabemos ser justa».
Jean Salem é um humanista que ascendeu aos patamares daquele género raríssimo de cultura, a integrada, o que lhe permite contemplar e interpretar o mundo, tentar compreender a aventura humana e lutar pela transformação da vida.
Filósofo marxista, economista, professor de Historia da Filosofia Grega, dirige na Sorbonne desde 2005 um Seminário sobre Marx no século XXI, acompanhado por meios de difusão electrónica por mais de 30.000 pessoas.
No seu novo livro, agora lançado em Paris*, encontramos a síntese do seu pensamento e o retrato do pensador, do combatente comunista e do homem.
Sagesses pour un monde disloqué é uma fascinante coletânea de ensaios, entrevistas, comunicações, conferências, de um filósofo revolucionário que, através da procura serena do encontro consigo mesmo, desce às raízes do sentido da vida.
Há épocas, lembra, em que se despreza a política porque ela se tornou desprezível. A nossa é uma dessas épocas. As engrenagens do sistema de poder do capitalismo que formatam grande parte da humanidade produziram uma geração de políticos repugnantes. Mas é sempre possível remar contra a maré.
Jean Salem conta-nos como nos últimos anos rompeu com a erudição académica e percorreu o mundo e, com alegria e proveito, tomou contacto com gente muito diferente em conferências e Encontros na Europa, na Ásia, na Oceânia, na África, nos EUA, e na América Latina.
Consciente de que se assiste hoje à subida de uma onda de irracionalismo, seja ele religioso ou não, recorda que na História não surgiu praticamente uma ideia importante que não tenha tido na origem um grego.
É compreensível portanto que a primeira parte do seu livro seja uma demonstração dessa evidência, esquecida ou ignorada.
Especialista no materialismo grego, tema por ele tratado durante anos em ensaios e cursos na Sorbonne, retoma a reflexão sobre a vida introduzindo o leitor na mundividência de Demócrito e Epicuro e do seu discípulo romano Lucrécio.
Sendo a busca da felicidade a suprema aspiração do homem, Salem recorda-nos que os materialistas gregos foram pioneiros na defesa de um hedonismo que privilegiava o prazer como inseparável da alegria de uma vida breve.
Esses materialistas da Antiguidade tiveram a coragem e a lucidez de afirmar a sem razão do terror da morte, porque não há sofrimento para além dela.
As igrejas, sobretudo as cristãs, tudo fizeram para satanizar o prazer, insistindo em que a felicidade humana somente era possível no reino dos céus após a morte.
Na sua denúncia do obscurantismo religioso, Leibniz, Schopenhauer e Feuerbach, sublinha Salem, muito devem a Epicuro e Lucrécio.
Estes sabiam aliás estabelecer uma fronteira muito nítida entre o prazer sadio, principio e fim de uma vida feliz, e a depravação, a luxúria, os vícios que destroem o homem.
A segunda parte de Sagesses pour un temps Disloqué trata o tema da felicidade sob uma perspetiva política.
Para Salem, a felicidade – o soberano bem dos epicuristas gregos – é possível mesmo num contexto de grandes crises, de calamidades que atingem a humanidade.
Nesta terrível crise civilizacional, quando um sistema de poder monstruoso aspira ao domínio universal e perpétuo sobre a Terra, quando a simples ideia de revolta é criminalizada, quando a resistência à opressão é qualificada de terrorismo – a felicidade é também atingível. Salem sugere que a encontremos nos caminhos da luta, «na luta por uma causa justa que nos ultrapassa, e que sabemos ser justa».
Interrogado numa entrevista sobre que figura, antiga ou contemporânea, encarna, na sua opinião, o sábio epicurista, cita, entre outros, o seu pai, o escritor Henri Alleg, herói da Argélia e da França. Barbaramente torturado, resistiu à tortura e denunciou-a num livro inesquecível, La Question. Nesse revolucionário firme e sereno, identifica «a figura do resistente, daquele que considerando inaceitável o desvio da sua linha, daquele que é imune a desejos mesquinhos, ao impulso de agredir, eis – respondeu – a figura do sábio antigo».
Sofrendo, mantendo a coerência e a fidelidade a um ideário, é também possível – por absurdo que pareça – atingir um estado de bem-estar interior.
Um dos capítulos mais belos do livro é dedicado a Georges Labica, um gigante da filosofia, revolucionário e comunista exemplar.
Jean Salem viu nele um combatente para o qual a harmonia entre as palavras e os atos era perfeita. Evoca intervenções suas em Encontros Internacionais em que falou com a dureza, o brilho e o estoicismo de Sócrates. Labica foi um internacionalista que «deixou o Partido – segundo afirmou – para continuar a ser comunista».
Não exagera ao esboçar o perfil do autor de Théorie de la Violence, um ensaio maravilhoso em que transparece o intelectual revolucionário com uma prodigiosa cultura integrada aberta a todos os azimutes.
É um ato de justiça recordar a autenticidade, a pureza revolucionária de Georges Labica. Tive também o privilégio de ser seu amigo. Correndo pelo mundo, ele deu força de evidência à conclusão de que, sendo hoje a cultura dominante a da violência, o capitalismo a utiliza como alavanca e cimento da opressão social.
Não é possível num texto como este transmitir a riqueza conceptual e o significado da reflexão de Jean Salem sobre as grandes lutas do nosso tempo em capítulos da terceira parte das Sagesses.
Ele consegue lançar uma ponte difícil entre a sabedoria dos materialistas gregos e os grandes desafios revolucionários que surgem como resposta dos povos a grandes crises.
As páginas sobre a Revolução Russa de Outubro, a utilidade de reler Lénine para preparar o futuro, os capítulos sobre o marxismo em França e a atualidade de Marx são uma fonte caudalosa de preciosos ensinamentos para as novas gerações.
Tal como os materialistas gregos, que o inspiram, Jean Salem vive com intensidade e alegria em busca da felicidade possível. A revolução é para ele um objetivo e um infinito.
Prepara agora um trabalho monumental sobre O Estado do Mundo, que define como «um livro extenso no qual tentará somar às lições que extraiu de um combate politico muito atual” as mil ideias ou informações que pôde assimilar ao longo do seu itinerário «no estudo da história, da economia, das ciências politicas e, bem entendido, da filosofia».
As últimas linhas do seu comovente livro encerram uma mensagem de confiança na humanidade. Convida-nos a não esquecer que uma época «maldita, equívoca, acaba sempre, como todas as outras, por findar. No tocante à nossa época isso não deve, aliás, tardar».
Vila Nova de Gaia, 2 de Novembro de 2012
*Jean Salem, Sagesses pour un monde disloqué, Editions Delga, Paris 2013, 313 pgs
** Existem duas traduções portuguesas de obras de Jean Salem:
Lenine e a Revolução, Editora Avante, 2007, Lisboa
A Felicidade ou a arte de ser feliz quando os tempos vão maus, Editora Cooperativa Cultural Alentejana, 2012, Beja
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