quarta-feira, 17 de junho de 2020

Future-se 2.0: os retrocessos na Educação

                                                                  

                      O que muda com o PL que segue para o Congresso

Fábio Bezerra (*)

No último dia 02/06, o Governo Federal encaminhou ao Congresso Nacional, para tramitação, o PL 3076/2020, que institui o Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores- Future-se. Desde que assumiu o Governo, Bolsonaro tem destacado sua cruzada ideológica e política contra a educação pública, em especial as Universidades e Institutos Federais. Nos primeiros meses nomeou para a condução do Ministério da Educação o senhor Ricardo Vellez, pupilo do astrólogo e pseudoprojeto caricatural de um Rasputin à brasileira, o senhor Olavo de Carvalho, relíquia viva dos tempos do macartismo da Guerra Fria e baluarte do conservadorismo mais tacanho e reacionário por essas bandas do hemisfério sul.

Pouco hábil e sem rumo certo, Vellez não durou mais do que três meses, sendo substituído por um cavaleiro errante, ou melhor, um cavaleiro do apocalipse, o senhor Abraham Weintraub, que assumiu o Ministério com o compromisso de travar uma verdadeira cruzada reacionária contra a educação, buscando desenvolver aceleradamente os desígnios e os programas de privatização das Instituições Federais de Ensino (IFEs), que há anos vem sendo destilados por governos subalternos às políticas neoliberais.

O Projeto que traça um modelo empresarial para as IFEs, lançado em julho de 2019, o intitulado Projeto “Future-se”, não é novidade no campo das batalhas de resistência em defesa da educação pública. Esse projeto corresponde a uma sequência lógica de um conjunto de medidas e reformas que, ao longo dos últimos anos, foram sedimentando o caminho para a redução de recursos públicos para a educação superior e técnica-tecnológica, afetando a qualidade do ensino, a pesquisa e o desenvolvimento da extensão, até chegar à completa precarização desses espaços e desmonte das respectivas potencialidades.

Mas, de fato, o “Future-se” foi um passo mais ousado e à frente nessa campanha privatista que há anos vem sendo implementada por governos de todas as matizes, ao sabor das exigências dos organismos financeiros que prescrevem medidas de contenção de gastos públicos associadas à promoção da privatização de bens e serviços estatais, inclusive aqueles tidos como inalienáveis constitucionalmente, como o direito à saúde e à educação. 

Esse processo segue o percurso da expansão destrutiva do capital sobre a educação como política neoliberal através do avanço das tecnologias da informação e comunicação, pelas formas não presenciais de ensino que rendem volumosos recursos em contratos com empresas do ramo, a formatação da organização universitária em agências prestadoras de serviços e mão-de-obra para instituições nacionais e internacionais -como é a orientação da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Em nome da propalada “sociedade do conhecimento”, a mesma OMC e o Banco Mundial estipulam o controle privado do mercado sobre as instituições públicas de ensino, em um claro processo de mercantilização da educação e do conhecimento científico e técnico produzido pelas IFEs. Esse projeto possui uma vertente pedagógica que estimula uma falsa consciência nos estudantes de que, no processo de ensino e aprendizado, mediado pela ideologia do empreendedorismo, o educando deve se tornar uma espécie de empresário de si mesmo, assumindo competências e habilidades direcionadas para lidar com as oscilações do mercado, de modo a empenhar esses postulados ideológicos nos processos de aprendizagem teórica e prática.

A valorização da produtividade e da mercantilização são consideradas as únicas referências possíveis e necessárias ao exercício laboral e ao sentido do desenvolvimento da ciência e da tecnologia. As pesquisas desenvolvidas, os modelos de educação e os projetos de extensão seguem a perspectiva do “Capital Humano”, ideologia produtivista que foca o investimento na capacitação do trabalhador para se adaptar aos efeitos diversos das crises econômicas, entre elas a redução de postos de trabalhos e a flexibilização de direitos e relações trabalhistas. Nesse último aspecto, não há extensão no sentido social e cooperativo, mas prestação de serviços determinados por valores de mercado e com finalidades mercantis e financeiras.

Esse postulado ideológico faz a interface com as necessidades objetivas que o capitalismo, em crise, estabelece como recurso em seu metabolismo crônico, a partir de processos de privatização sobre a formação científica e tecnológica das futuras gerações e o conhecimento produzido pelas instituições públicas, pois corresponde à nova fase de apropriação acelerada do desenvolvimento da ciência e da tecnologia e seus significados econômicos e sociais, constituindo-se em uma “nova” modalidade privada da produção do capital, enquanto fonte de lucro, por meio da inovação de produtos e serviços. Dessa forma é possível garantir uma sobrevida às grandes empresas nacionais e transnacionais em um contexto de crises econômicas constantes e abalos sísmicos frequentes no equilíbrio de forças no mercado capitalista.

Não raro, ao longo dos últimos anos, diversos gestores têm sido seduzidos por esse mecanismo ideológico, promovendo e adaptando alterações organizacionais no âmbito das IFEs. Esse processo facilita mudanças estruturais que se ajustam à participação de empresas privadas, como cogestoras e investidoras via Fundações de Apoio, a projetos diversos que condicionam um determinado modelo empresarial e utilitarista sobre as dependências universitárias e dos institutos federais, assim como sobre a própria autonomia dos órgãos administrativos. Em Minas Gerais, por exemplo, a influência política e econômica de mineradoras nas IFEs, tais como a Vale e da Samarco, envolvidas em crimes humanitários com o rompimento de barragens, é um caso emblemático!

O fiasco da adesão ao “Future-se”, rejeitado pela maior parte da comunidade acadêmica, rechaçado nas ruas por servidores e estudantes, criticado por especialistas em educação e denunciado e combatido por entidades de classe, não fez retroceder o intento privatista de Bolsonaro e seu real cavaleiro do apocalipse. 

Ao contrário, em tempos de “passar um boi, passar uma boiada”, com as atenções da opinião pública voltadas para o avanço progressivo do COVID-19 entre nós, Bolsonaro encaminhou, meio escondidinho entre tantos projetos de lei, a priori sem muita importância, o PL 3076/2020, que institui à fórceps o Programa “Future-se” (em seu formato 2.0), a oportunidade tão desejada de selar de vez o futuro das IFEs, jogando a criança com a água e a bacia no colo do setor produtivo.

O Projeto de Lei encaminhado ao Congresso e reformulado pelo MEC, subdivide-se em três grandes eixos:

a) Contrato de Resultados
b) Empreendedorismo
c) Internacionalização

Em uma leitura mais cirúrgica do PL, podemos destacar os seguintes pontos que não nos deixam nenhuma sombra de dúvidas sobre as ameaças e o sentido desse descalabro à educação pública e ao povo brasileiro!

No Capítulo I, artigo 1º inciso III, a proposta visa “fomentar a cultura empreendedora em projetos e programas destinados ao ensino superior”, ou seja, subordinar os projetos de pesquisa, ensino e extensão e toda a potencialidade do conhecimento acadêmico à dinâmica e aos valores da lógica do mercado. A questão aqui não é deixar de dialogar com o mercado, como alguns arautos da moralidade liberal bradam aos quatro cantos quando esse tipo de ação é contestada, até porque hoje em dia, a maioria das IFEs já promovem parcerias pontuais com instituições privadas e o setor produtivo.

A questão fundamental é tecer uma necessária reflexão crítica ao processo de privatização acelerado e a subordinação dos programas e projetos de ensino, pesquisa e extensão à dinâmica do capital, confluindo com um projeto de sociedade que aumenta as disparidades sociais, a subjugação política e econômica do país e a restrição e apropriação do patrimônio público pelo consórcio do mercado privado em detrimento da função social das Universidades Públicas, Institutos Federais e Cefets.

O artigo 3º, inciso I, do Capítulo I estabelece a figura do contrato de resultados. Mas o que seria isso? Esse contrato é um instrumento jurídico celebrado entre as IFEs e a União através do MEC, que estabelece, entre outros procedimentos, “indicadores de resultados” para a contratada, ou seja, as IFEs, em relação à contratante (União), para a “contrapartida da concessão de benefícios por resultado”!!!! O referido artigo estabelece uma relação direta de contrato entre as IFEs e a União para que haja o repasse de adicionais por resultados de desempenho advindos dos recursos do Fundo Público à educação! O mesmo Fundo Público que há anos tem sido assaltado por uma lógica perversa de sustentação do sistema financeiro internacional.

A lógica aqui é a mesma já utilizada na indústria há décadas. Através de Programas de Metas de Produtividade, estipulam-se determinadas níveis e objetivos de produção, que aumentam a exploração de mais-valia sobre as(os) trabalhadoras(os) no processo produtivo, sem levar em conta outros condicionantes que podem interferir no cumprimento das metas e assim justificar o não cumprimento do acordo contratado. Por si só, tratar o funcionamento acadêmico em um plano de metas e resultados já é um absurdo funcional e, além de inverter todo o sentido do funcionamento científico e educacional, cria uma relação de chantagem e subordinação cretina entre o Poder Público e as IFEs, com recursos que por lei deveriam ser destinados ao bom funcionamento dessas instituições. Os “indicadores de resultados” funcionarão como um torniquete financeiro e político sobre toda a vida institucional.

Ainda no mesmo sentido da cretinice desse governo, o inciso II do PL estabelece o “benefício por resultados”, que possui a função de facilitar a obtenção de resultados previstos no “Future-se”, ou seja, uma espécie de bonificação à medida que as IFEs forem progredindo no seu martírio, em relação aos subordináveis ajustes necessários para o cumprimento dos objetivos do “Future-se”.

Os incisos seguintes prescrevem as condicionantes básicas para o empenho de recursos entre a contratante e a contratada. São eles: 1 – Pesquisa e Desenvolvimento para a composição de um estoque de conhecimento para aplicações futuras; 2 – Incentivo à inovação em produtos e serviços e ao empreendedorismo; 3 – Internacionalização através de convênios firmados com instituições internacionais.

No ponto referente à concessão de recursos por produtividade caberá ao Ministério da Educação e ao Ministério da Ciência e Tecnologia, Inovação e Comunicações estabelecer “(…) os indicadores para a mensuração do desempenho”, conforme exposto no artigo 7º, com os propósitos de incrementos de eficiência e economicidade. Isso evidencia que um dos principais objetivos desse PL não é apenas o condicionamento produtivista e mercadológico das Instituições Federais de Ensino, mas também e sobretudo, a redução dos recursos do Fundo Público para a educação de acordo com os parâmetros dos organismos financeiros internacionais: OMC, Banco Mundial e FMI.

Dessa forma, esse processo reduz as potencialidades e as possibilidades de pesquisas e projetos de extensão como políticas públicas de combate às desigualdades diversas presentes na sociedade brasileira. Esses indicadores criam uma camisa de forças que direcionará departamentos e toda a estrutura acadêmica aos objetivos prescritos acima. Entre esses indicadores do contrato de resultados destacam-se:

a) Prazos para execução;
b) obrigações em relação aos indicadores;
c) avaliação de resultados;
d) prazo de vigência que não poderá ser inferior a um ano.

No Comitê Gestor tripartite, previsto no artigo 9º, que deverá acompanhar e avaliar o cumprimento das metas acordadas, o Governo terá sempre maioria, pois contará com representantes do MEC e do Ministério de Ciência e Tecnologia, enquanto as IFEs terão apenas uma representação. Se já não bastasse o torniquete financeiro, a feitoria administrativa e fiscalizadora se garantirá pela maioria governamental, nesse modelo “petité comitê”.

O papel das Fundações fica estabelecido a partir do artigo 15. Nesse quesito, o PL resolveu uma das pendências iniciais do Programa “Future-se” quando anunciado em julho de 2019 e que estabelecia, para as Organizações Sociais externas, a função de intermediar os contratos entre as IFEs e empresas interessadas em contratar serviços. Isso causou intensa resistência nas universidades, mas não pelos princípios e finalidades do “Future-se”, mas sim pelo fato de as Fundações de Apoio já existentes estarem perdendo espaço e até mesmo serem anuladas com a concorrência de Organizações Sociais que poderiam ser criadas pelas empresas contratantes com total independência.

Nesses meses que se passaram – creio ser importante ressaltar isso – o Governo teve tempo de ajustar o Programa Privatista e, nesse PL encaminhado ao Congresso, as Fundações passam a ter destaque nessa intermediação entre as IFEs e a iniciativa privada, acalentando assim os mais nobres sentimentos monetaristas. Caberá às Fundações, segundo os artigos 15 e 16, “(…) a contratação de serviços, a execução de obras e a aquisição de materiais, equipamentos e outros insumos relacionados às atividades de ensino, inovação e pesquisa científica e tecnológica”, firmados através de instrumentos jurídicos específicos, abrangendo “(…) projetos de produção, fornecimento e comercialização de insumos, produtos e serviços, relacionados às universidades ou aos institutos federais”. Essa comercialização abrange inclusive o excedente da produção resultante das atividades executadas.

Dessa forma, as Fundações de Apoio, em curto espaço de tempo, terão mais influência e poder político do que os Conselhos Superiores, pois, além de serem as intermediadoras nas negociações entre as IFEs e a iniciativa privada, garantindo as condições para o cumprimento do plano de metas do “Future-se”, serão também as responsáveis diretas pela administração de todos os insumos e aquisição de materiais e serviços pertinentes ao funcionamento das instituições de ensino. Essas Fundações de Apoio também terão autonomia para comercializar excedentes e administrar uma espécie de “fundo de conhecimento” que poderá ter ativos em Bolsa de Valores. Tornar-se-ão o coração e o cérebro das universidades, institutos federais e Cefets.

Dos eixos básicos apresentados acima, o Capítulo IV, que trata da Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação, é um exemplo do condicionamento das pesquisas acadêmicas e do desenvolvimento tecnológico à racionalidade instrumental. O condicionamento à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico será norteado pela política de inovação de cada IFE. Essa política de inovação deverá seguir os seguintes parâmetros:

I – Facilitar meios de creditação de infraestruturas de pesquisa para o estabelecimento de parcerias ou para a prestação de serviços técnicos especializados com empresas;
II – promover a cultura de estímulo à pesquisa tecnológica, à inovação, ao empreendedorismo e à proteção à propriedade intelectual;
III – promover a capacitação da comunidade acadêmica para atuar no núcleo de inovação tecnológica, na gestão de processos de inovação, na prospecção de projetos de pesquisa e inovação;
IV – estabelecer conteúdos de propriedade intelectual, empreendedorismo e inovação de forma transversal nas matrizes curriculares nos diferentes níveis de formação acadêmica;
V – proporcionar a criação e a gestão de redes e centros de laboratórios institucionais com o objetivo de atender a demandas de empresas, instituições científicas, tecnológicas e de inovação.

Esses parâmetros deixam claro que todo o desenvolvimento da pesquisa deve estar direcionado prioritariamente a atender as demandas do mercado produtivo e estimular uma lógica empresarial de prestação de serviços, em detrimento da função social que as pesquisas devem possuir em instituições públicas, ou seja, identificar e apresentar soluções para as mais variadas mazelas e contradições que atingem a população brasileira através das diversas áreas de conhecimento.

Sobre o empreendedorismo, tratado no Capítulo V, os pontos mais gritantes e contraditórios podem ser assim resumidos a partir do artigo 19:

Inciso I – “(…) consolidação de ambientes que promovam inovação, com foco no estabelecimento de parcerias com o setor empresarial, incluídos os parques e pólos tecnológicos, as incubadoras e as startups(…)”;
II – “(…) aprimorar o modelo de negócios”;
III – “(…) aperfeiçoar a gestão patrimonial de universidades e institutos federais, por meio de cessão de uso, concessão, comodato, fundos de investimentos imobiliários, entre outros mecanismos (…)”;
V – “(…) apoiar a criação e a organização das associações denominadas empresas juniores(…)”;
VI – “promover e disseminar a educação empreendedora por meio da inclusão de conteúdos e atividades de empreendedorismo nas matrizes curriculares dos cursos técnicos, de graduação e de pós-graduação (…)”;
VII – “fomentar startups que atendam às necessidades do mercado e da sociedade e
VIII – promover ações de empregabilidade e empreendedorismo para os discentes das universidades e dos institutos federais.

No ponto que trata da internacionalização, no Capítulo VI, artigo 22, chamam atenção os seguintes pontos:

VIII – estabelecimento de parcerias para oferta de programas de graduação ou de pós-graduação stricto sensu em regime de dupla titulação, cotutela ou orientação conjunta e de titulação conjunta com instituições estrangeiras de excelência acadêmica;
XXIII – facilitação de acreditação de disciplinas cursadas em plataformas ofertadas por instituições de excelência no exterior, conforme disposto em regulamento.

Art. 23. “As fundações de apoio poderão contratar, por prazo determinado, pesquisadores e professores estrangeiros para atuar em projetos e programas de ensino, pesquisa e extensão internacionais do Programa Future-se(…)”.

Isso significa que as IFEs terão, como uma das condicionantes para o aporte de recursos advindo do Future-se, convencionar necessariamente a celebração de acordos internacionais com outras instituições públicas ou privadas. Parte do currículo estudado poderá ser feito em plataformas de ensino à distância por essas instituições estrangeiras, sendo assim validadas as disciplinas cursadas e computadas para a validação do curso. Isso certamente irá implicar na redução de docentes e técnicos administrativos por Departamento de Ensino, podendo abrir um precedente para o custeio público dessas parcerias envolvendo o ensino à distância com instituições privadas!

O artigo 23 é ainda mais explícito nessa intervenção estrangeira sobre as IFEs, pois, a pretexto de acordos de pesquisa e extensão empreendedora com instituições privadas, docentes e pesquisadores estrangeiros, poderão ser contratados pelas Fundações para a promoção de projetos diversos, entre eles até mesmo o de ensino, terceirizando dessa forma , o quadro docente nos Departamentos de Ensino. A estrutura organizacional e curricular das IFEs devem priorizar a transformação do ambiente acadêmico em uma espécie de extensão para o mercado privado, através de empresas contratantes, que poderão, entre outras formas de intervenção privada, sublocar laboratórios, salas e outras dependências das IFEs, alugar espaços para a promoção de propagandas de produtos, alterar o currículo acadêmico para direcionar determinados cursos à formação de mão de obra específica para determinadas funções ou atender a demandas de empresas parceiras ou para o condicionamento da produção intelectual e técnica, a fim de atender a determinados projetos e serviços estipulados pelas empresas financiadoras via mercado de investimentos.

Essa interferência nos currículos enquanto objeto de contrato firmado com empresas fere a liberdade de cátedra, a autonomia departamental para definir os parâmetros curriculares mais adequados à formação docente e fere, sobretudo, a possibilidade da formação humanista, crítica e pautada por princípios epistemológicos e éticos que possibilitem uma abordagem mais ampla sobre a diversidade conjuntural brasileira. Nesse aspecto fica evidenciada não apenas a instrumentalização perigosa de todo o potencial acadêmico. Falo aqui em termos de razão instrumental e tecnociência, mas o direcionamento à privatização dos recursos que a ciência e a tecnologia podem desenvolver, restringindo grande parcela da população ao acesso desses recursos que as pesquisas com finalidades sociais e os projetos de extensão poderiam possibilitar.

O envio do PL 3076/2020 sela uma trajetória de investidas do Governo Bolsonaro e do mercado contra as IFEs. Os objetivos não são o de modernização das estruturas e das finalidades dessas instituições, mas sim o de reduzir a presença do Estado e de recursos públicos para o custeio das universidades e institutos federais. Além disso, concede à iniciativa privada a administração de laboratórios e departamentos de ensino que serão transformados, em curto espaço de tempo, em células produtivas e de prestação de serviços apropriadas pelo mercado.

Mesmo que os defensores do “Future-se” argumentem que os recursos orçamentários das universidades e institutos federais estejam garantidos pela Constituição Federal, sabemos que essa é uma argumentação falaciosa. Esses recursos, por sua vez, vêm sofrendo reduções sistemáticas para a promoção do superávit primário nas contas públicas, quando não são contingenciados criminosamente como ocorreu em maio de 2019, colocando em crise o funcionamento das instituições de ensino.

Além disso, após a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que estabeleceu o teto de gastos até 2036, a diminuição progressiva do orçamento das IFEs terá um efeito de asfixia financeira sobre o funcionamento dessas instituições, pois as demandas e necessidades não ficaram congeladas por esse período e dessa forma cria-se um cenário favorável ao avanço do discurso e de práticas administrativas que endossam o empreendedorismo acadêmico, a cessão de espaços à iniciativa privada, a constituição de startups empresariais e a formação de um “fundo do conhecimento” que terá papéis negociados em Bolsa de Valores, administrado pelas Fundações.

Enfim, se há cerca de um ano, quando foi apresentada a primeira proposta do “Future-se”, houve um intenso debate no ambiente acadêmico, envolvendo as entidades de classe, estudantes, técnicos-administrativos e professores, manifestações nos órgãos dirigentes e nas ruas, agora, em tempos de isolamento social causado pelo avanço da pandemia no Brasil, o projeto tramita no Congresso com o caráter de Projeto de Lei, o que significa que, sendo aprovado e sancionado, torna-se imediatamente o modelo vigente de relação entre o Ministério da Educação e as IFEs, não sendo mais necessário um longo processo de discussão nos órgãos superiores das instituições de ensino. Nesse aspecto, o pouco que ainda restava de autonomia universitária se escoa pelo ralo do neoliberalismo.

É importante compreendermos o grande desafio que se ergue perante todas(os) aquelas(es) que defendem a educação pública, democrática, laica e de qualidade e que possa ser um espaço para a justa e necessária disputa pela educação popular. Um desafio que nos coloca em estado de alerta e resistência dobrada para combater mais esse ataque ao patrimônio público, que agora está presente em um campo pantanoso e desfavorável pela sua formação social. Isso não significa que o Governo terá vida fácil com a tramitação do PL do “Future-se”, mesmo em um recinto permeado pela promiscuidade de interesses políticos e financeiros que se manifestam em lobbies e acordos institucionais com o mercado acima dos interesses públicos.

O Governo Bolsonaro passa por um grande desgaste devido à forma como vem desqualificando a questão da pandemia do Covid-19 no Brasil, que já assumiu o segundo lugar em infectados e mortes no mundo. Esse desgaste aumentou ainda mais, mesmo entre setores da burguesia e da classe média, com a guinada franca e progressiva de manifestações do Governo com forte chantagem intervencionista, o apoio aberto que vem dando aos grupos protofascistas e golpistas que estão buscando criar condições de instabilidade e, mais recentemente, o próprio Ministro da Educação protagonizou mais desgastes com o Congresso e o Supremo Tribunal após a publicação do áudio da reunião ministerial do dia 22 de abril.

Esse cenário nos traz alguns elementos importantes para compreender o contexto desafiador em que nos encontramos, contexto este que se agrava com o fato de grande parte do poder de articulação e organização estar, nesse momento, comprometido pelo isolamento social, medida sanitária necessária para o combate à expansão da pandemia do Covid-19. Mesmo assim, nossa estratégia de resistência e ação política não pode ficar limitada apenas a investidas nas caixas de mensagens dos gabinetes de parlamentares. As ruas ainda são o verdadeiro e necessário campo de disputa da opinião pública e pressão política sobre o Congresso.

A resistência em defesa da Educação Pública e das IFEs deve ser parte constitutiva da agenda de lutas antifascistas e pela democracia, que estão amadurecendo e sendo articuladas nas ruas de todas as capitais brasileiras, por diversos setores da sociedade em oposição ao Governo Bolsonaro. A luta antifascista, em defesa das liberdades democráticas, contra o genocídio institucional promovido pela valorização do lucro em detrimento da vida humana, deve incorporar a defesa do patrimônio público e seus serviços essenciais, como saúde e educação, por exemplo.

A defesa das universidades, institutos federais e Cefets deve ter como foco a rejeição ao PL do “Future-se”, pois o mesmo projeto conservador e autoritário em curso no Brasil, que alimenta o ódio e o preconceito de classe, instiga a violência institucional, flerta com o fascismo e difunde propagandas reacionárias, calúnias e mentiras em redes sociais e aspira a intervenção militar, é o mesmo projeto que aprofunda a espoliação da riqueza nacional, gera precarização, sucateamento, desmonte e privatização do patrimônio público, quebra o pouco que ainda resta de soberania nacional e nos leva para um abismo cada vez mais profundo em um misto de desigualdades, miséria e barbárie. É fundamental que se entenda que a precarização dos serviços públicos, a criminalização de sindicalistas e movimentos sociais e a mercantilização do ente público são as expressões contraditórias mais amalgamadas de uma dialética negativa do processo em curso. Processo este evidenciado pela investida do capital sobre a educação e em especial sobre as Instituições Federais de Ensino.

É necessário rejeitar o PL 3076/2020 e toda a mentalidade privatista contida nesse documento! Mas esse projeto não cairá de maduro! Tampouco deve-se acreditar que o Congresso o rejeitará, em algum momento, por força das disputas institucionais com o Palácio do Planalto. Isso seria um equívoco, pois os interesses do mercado e do sistema financeiro sabem separar muito bem as disputas políticas dos projetos estratégicos que norteiam a lógica de acúmulo de capitais. Reorganizar aquele movimento entre as IFEs e a sociedade, que antes da pandemia, apontava para uma luta ampla e unificada contra a cruzada privatista do MEC, agora em condições atípicas, é sem sombra de dúvidas o nosso maior desafio, mas por sua vez e sobretudo, deve ser o nosso principal objetivo.

(*) Fábio Bezerra é Professor de Filosofia da Tecnologia. Membro da Rede Tecnológica de Extensão Popular e membro do Comitê Central do PCB.

Bibliografia:

1- Apontamentos para uma crítica ao projeto FUTURE-SE (Unidade Classista- Fração do Andes e Sinasefe)
2- Cortes na Educação: arrocho e privatização. (Seção Sindical ANDES UFRGS)

3- PL -3076/2020- Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br

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