quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Mídia, Direitos Humanos e Luta pela Memória

                                                                        
Entrevista com o pesquisador e escritor Dênis de Moraes (autor de Prestes, Lutas e Autocríticas; A Esquerda e o Golpe de 1964; O Velho Graça, uma biografia de Graciliano Ramos; Vianinha, Cúmplice da Paixão; Henfil, o Rebelde do Traço; Planeta Mídia e A Batalha da Mídia, dentre outras obras).

Na condição de grande estudioso do fenômeno das mídias no mundo contemporâneo, como você avalia hoje a situação do sistema de comunicações no Brasil?

Existe no nosso país um sistema de comunicação dos mais elitistas, anacrônicos e monopólicos, concentrados nas mãos de poucos grupos empresariais e dinastias familiares. Se nós confrontarmos o sistema de mídia brasileiro com o de alguns países da América Latina com governos progressistas (notadamente Equador, Bolívia e Venezuela), nosso atraso é motivo de vergonha. 

A grande maioria da população não tem a menor noção de que o sistema de radiodifusão se baseia em concessões públicas temporárias de canais de televisão e emissoras de rádio, que depende do poder concedente, a União, que representa o conjunto da sociedade. Infelizmente, por um bloqueio perverso dos meios de difusão, praticamente sob controle dos grupos empresariais e famílias já mencionados, o povo brasileiro não sabe que os canais de televisão e estações de rádio AM e FM não pertencem às famílias Marinho, Saad, Abravanel, Sirotsky (no Rio Grande do Sul), Sarney (no Maranhão), Magalhães (na Bahia), Collor de Mello (em Alagoas), entre outras. 

Na verdade, tais canais são apenas concessões por tempo determinado. Acho os 15 anos atuais uma duração abusiva. Nos países da América do Sul que vêm renovando democraticamente as legislações de radiodifusão, o limite máximo de concessão é de dez anos, após o que o desempenho destas concessões deve ser avaliado, como acontece com as empresas de energia elétrica, de água, de gás, etc. Este processo de concessões a grupos privados foi intensificado durante a ditadura militar e continua até hoje, sem nenhum tipo de alteração. 

Veja que, não fugindo à regra, o ex-presidente Lula renovou por 15 anos as concessões dos principais canais de televisão vinculados a grupos monopólicos, da mesma forma que fizeram seus antecessores. As renovações seguem procedimentos cartoriais: encaminham-se os pedidos de renovação ao Ministério das Comunicações, que faz as verificações administrativas e manda para o Congresso Nacional, que, por sua vez, faz audiências públicas nas quais quase ninguém comparece e aprova-se, ou melhor, carimba-se a renovação das licenças por mais 15 anos.

Que papel desempenharam esses grupos durante a ditadura e na transição para a democracia burguesa?

A maioria expressiva dos meios de comunicação foi cúmplice, aliada e adepta da repressão e dos métodos de governar do regime militar. Não é casual que um grande número de concessões de rádio e televisão tenha sido dado a justamente no período de 1964 a 1985, como moeda de troca ao apoio, à sustentação política e ao suporte ideológico das empresas de mídia à ditadura. É só consultar as coleções dos jornais para verificar como eram noticiados os casos de prisões, torturas e assassinatos, sempre se utilizando o termo “terrorismo” para caracterizar ações armadas antiditatiorias. 

Os resistiam ao autoritarismo, inclusive pela via pacífica, eram o tempo inteiro tachados de “subversivos”, “terroristas”, “criminosos”, etc, enquanto as forças repressivas do Estado eram apresentadas à opinião pública como cumpridoras do seu dever de combater “subversivos” e “inimigos da pátria”. Depois da ditadura, o processo de se tentar discutir o passado recente sombrio do país, sobretudo os crimes de lesa-humanidade cometidos pelos agentes da ditadura, encontrou nos meios de comunicação um dos obstáculos mais duros.

No governo FHC, foi criada a Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça, responsável pela publicação do importante livro Brasil Nunca Mais, com de mais de mil páginas. Durante o governo Lula, essa comissão continuou funcionando e, depois, foi criada a Comissão de Anistia. No governo Dilma, foi instalada e se desenvolveram os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Iniciativas louváveis, mas insuficientes. 

Por mais que episódios de violações de direitos humanos tenham sido denunciados, averiguados e trazidos ao conhecimento da opinião pública, a correlação de forças na sociedade não se alterou, infelizmente. Segue vigente a “lei da anistia”, que impede investigações e julgamentos dos acusados pelos crimes da ditadura. 

Cabe ressaltar que, a cada vez que havia alguma possibilidade de avanço nas investigações, os meios de comunicação continuaram bombardeando as iniciativas, através dos editoriais e, principalmente, por meio do silenciamento, que é uma das técnicas mais sofisticadas e eficazes de bloquear a transformação do acontecimento em fato noticiável e, assim, vedar o seu conhecimento pelo grosso da população. 

O fato ocultado e censurado simplesmente passa a não existir para muitos! Somente se furava este cerco quando o fato descoberto era absolutamente noticiável, não sendo possível colocar por baixo do tapete, como nas comprovações dos assassinatos do ex-deputado Rubens Paiva e do jornalista e membro do PCB Vladimir Herzog, entre outros.
                                    
O escritor Dênis de Moaraes
Qual a importância da luta pela memória?

A luta pela memória, verdade e justiça é fundamental. Envolve atores que estão em conflito, a exemplo dos que escreveram a história do ponto de vista dos supostos vencedores e os que estão escrevendo as histórias dos supostos vencidos, que na verdade são os vencedores. Claramente não são os torturadores, assassinos, genocidas de quem a História irá falar no futuro.

De outro lado, há a tentativa de calar ou desqualificar os relatos e testemunhos das vítimas da ditadura, o que não ocorre apenas por parte da mídia, mas também quando certas instituições dificultam o acesso às documentações sob a guarda de órgãos públicos. 

Mesmo com a vigência da Lei de Acesso à Informação Pública, em várias situações persiste a sonegação à consulta de dados que se referem à história do país. Quando falo das resistências daqueles que não querem que a história seja conhecida plenamente pelas novas gerações, me refiro também à destruição de provas e documentos.

Já sabemos que parte ponderável da documentação produzida pelo extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) e de outras áreas do sistema repressivo foi apagada dos registros, principalmente durante o período de transição do governo do general Figueiredo para o governo de José Sarney. Naquele processo de transição, conforme noticiado amplamente pela imprensa, houve a destruição de documentações incriminadoras de atos repressivos, arbitrários e barbáricos praticados em todo o país, nos estados e municípios.

A luta pela memória inclui o enfrentamento àqueles que não querem a recuperação e a revelação da memória, e sim que seja soterrada, esquecida e apagada, a exemplo do que diziam alguns dos ministros da Justiça tanto de FHC quanto de Lula: “Não se deve mexer mais nisso, porque isso tudo já ficou acomodado pela Lei de Anistia”. 

Nós sabemos que a Lei de Anistia foi, em primeiro lugar, um tipo de acordo para as circunstâncias específicas de uma época, significando um pequeno e relativo avanço num momento de transição, mas que deixou de lado o principal, ou seja, a investigação dos atos hediondos praticados por torturadores e assassinos, muitos deles agentes do Estado, sem falar nos cúmplices e colaboradores do regime ditatorial, todos eles impunes. 

No futuro, espero que possamos ter uma nova Comissão Nacional da Verdade nomeada por um governo efetivamente comprometido com o resgate da memória, da justiça e dos direitos humanos. E aí, que se reabram os trabalhos para se chegar aos responsáveis pelos crimes cometidos pela repressão, entre 1964 e 1985, verdadeiros representantes da barbárie.

(O PODER POPULAR Nº 8)

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