sábado, 20 de fevereiro de 2016

Documentário retrata resistência à censura imposta pela ditadura ao Estadão



                                                  
A resistência do jornal O Estado de S.Paulo à censura imposta pela ditadura militar após o Ato Institucional nº 5 (AI-5) é tema de livros e pesquisas. Porém, somente agora, quase 50 anos depois, essa história chega à tela dos cinemas por meio do documentário “Estranhos na Noite - Mordaça no Estadão em Tempos de Censura”, com roteiro do jornalista José Maria Mayrink, direção do cineasta Camilo Tavares e produção do próprio Estadão.

Com pré-estreia agendada para o próximo sábado (20/2), será exibido gratuitamente no Memorial da Resistência de São Paulo. No entanto, funcionários e convidados já assistiram ao filme em sessões durante esta semana no próprio jornal.

À IMPRENSA, José Maria Mayrink conta como surgiu a ideia de transformar a história em documentário e como foi acompanhar de perto a resistência dos jornalistas à censura.

IMPRENSA - Como surgiu a ideia de fazer um documentário sobre isso?

JOSÉ MARIA MAYRINK - Escrevi um livro chamado “Mordaça no Estadão”, que foi publicado em dezembro de 2008, quando completaram-se os 40 anos do AI-5. A obra falava da censura ao jornal que durou de 68 até 1974. 

Em meados de 2014, conversando sobre isso com o Ricardo Gadour e o Camilo Tavares, eles tiveram a ideia de fazer um documentário. Entrei como roteirista por causa do meu livro, pois o roteiro foi mais ou menos o próprio livro.

Fiz a lista de entrevistas com 27 pessoas, 28 contando comigo. Dessas, 25 tinham entrado no livro com entrevistas, mas para o filme acrescentei relatos das atrizes Eva Wilma e Irene Ravache, que comentam a censura que também havia na cultura naquela época. A produção demorou cerca de um ano.

O senhor era um dos jornalistas que estavam na redação à época? 

Eu entrei no Jornal da Tarde em 14 de dezembro de 1968, ou seja, um dia depois do AI-5. O jornal estava em greve e só tinha o Ruy Mesquita e outras pessoas da direção no local. A redação estava em greve por causa do AI-5 e a censura ao jornal. 

Os censores entraram no jornal no próprio dia do A-5 e ficaram por lá até 9 de janeiro de 1969. Depois disso, continuaram fazendo a censura por bilhetes e telefonemas. Porém, os censores voltaram à redação no fim de agosto de 1972 e só saíram de vez em janeiro de 1974, na véspera do centenário do Estadão.

Como fazia parte do grupo na época, enfrentei a censura de várias formas. Diversas matérias minhas foram censuradas. Muitos colegas foram detidos, presos, torturados e ameaçados de morte no período.

Como os jornalistas optaram em não aceitar a autocensura?

Isso aconteceu já no dia 13 de dezembro de 68. Foi uma ordem do Júlio Mesquita Filho. Ele foi o autor do famoso editorial “Instituições em frangalhos”, publicado naquele dia esculhambando o governo, o Costa e Silva e o fascismo que estava se instalando no país.

Eles queriam cassar o deputado Márcio Moreira Alves sem licença do congresso e o jornal protestou contra isso, tendo, inclusive, seus exemplares apreendidos naquele dia. 

O Júlio [Mesquita] mandou avisar ao governador de São Paulo, o Abreu Sodré, que o jornal não faria autocensura, que não aceitaria em hipótese alguma isso e que se o governo queria censurar, que mandasse um censor. Foi o que fizeram. 

É curioso que o jornal circulou antes de ter os exemplares apreendidos, por meio de uma manobra. Como os militares cercaram a portaria principal, que ficava na rua Major Quedinho, o jornal não tinha com sair às ruas. Mas estava ocorrendo uma obra no Estadão e havia uma caneleta para escoar o entulho na rua de trás do jornal (rua Martins Fontes). 

Alguém teve a ideia de escoar o jornal por ali. Então os exemplares desciam pela canaleta, eram colocados no caminhão e iam para a rua. Cerca de 60 mil exemplares saíram por ali. Quando viram que os jornais já estavam nas bancas.

Com surgiu a ideia de cobrir os espaços censurados com Camões e no “JT” com as receitas? Foi uma estratégia para denunciar a censura?

A censura proibia que deixássemos espaços em branco, mas matérias censuradas, justamente para não caracterizar a censura para os leitores. Então, tínhamos que tirar aquela matéria e publicar outra no lugar. Porém, o jornal passou a publicar outras coisas nada a ver nesses espaços para caracterizar a censura. 
                                                         
Começou com a publicação de despachos de juízes, com linguagem difícil para leigos ou cartas inventadas pela redação.O primeiro poema publicado nos espaços de matérias censuradas foi I-Juca Pirama, do Gonçalves Dias. 

A cada dia saía o poema de um autor. Teve Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles. No começo, os leitores achavam que era uma promoção da cultura.

Aí, por sugestão do redator Antonio Carvalho Mendes, conhecido como Toninho Boa Morte, que escrevia a coluna de “Falecimentos”, passamos a publicar trechos de Os Lusíadas, de Camões. 

Cada dia saía um pedaço do livro. Já no Jornal da Tarde, a ideia de publicar receitas partiu do Ruy Mesquita em conversa com o Carlos Brickmann, que pediu que fossem colocadas receitas esdrúxulas, impossíveis de dar certo, o que gerava muitas reclamações dos leitores que tentavam executá-las.

Qual a importância dos jornalistas de hoje conhecerem esse passado de luta da imprensa?

A importância está em permanecer atento para que a censura não ocorra em nenhuma circunstância. Vivemos há mais de 20 anos na democracia e, mesmo assim, o Estadão vive sob censura judicial desde 2004. 

Se você olhar na página 3, diariamente atualizamos quantos dias estamos sob censura imposta pelo filho do José Sarney. Temos de ficar atentos, pois por qualquer motivo podemos voltar a ser proibidos de publicar a verdade. Também não podemos nos vigiar e omitir nenhuma notícia, independentemente do motivo. Jornalista nunca pode fazer autocensura.

Acredita que hoje as redações teriam essa mesmo postura combativa, caso fossem censuradas?
Acho que sim, porque a censura não vem sozinha. Caso ela voltar, será mais fácil combate-la hoje, uma vez que em uma democracia ninguém seria preso ou iria apanhar por causa de um texto censurado. 

Serviço:
Pré-estreia “Estranhos na Noite - Mordaça no Estadão em Tempos de Censura”
Data: 20 de fevereiro (sábado), às 14h
Local: Memorial da Resistência de São Paulo (Largo General Osório, 66 - Luz)
Entrada gratuita (vagas limitadas) – serão distribuídas senhas no local a partir das 13h30 

(Com o Portal Imprensa)

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