Os porões da contravenção
Autores do livro-reportagem “Os porões da contravenção: Jogo do bicho e ditadura militar. A história da aliança que profissionalizou o crime organizado”, os jornalistas Chico Otavio e Aloy Jupiara contam nesta entrevista como investigaram a relação entre agentes da repressão e bicheiros, além de descreverem os mecanismos que levaram a contravenção a dominar o desfile das escolas de samba.
A obra resgata a trajetória dos bicheiros no Rio de Janeiro, traçando conexões entre o jogo do bicho e o regime militar nos anos 60 e 70, passando pelo universo das escolas de samba. Os autores contam como essas ligações impactaram o desenvolvimento do crime organizado.
A ideia do livro surgiu a partir de uma série de reportagens publicadas no O Globo no segundo semestre de 2013. Durante os dois anos seguintes eles se aprofundaram na investigação, pesquisando documentos de arquivos públicos e jornais da época e entrevistaram militares, sambistas, historiadores e advogados, entre outras fontes.
Lançado no Rio em novembro, o livro já vai para a sua terceira edição. “O livro mostra o real interesse dos bicheiros em ocupar esse espaço no mundo do samba. Na época, eles tinham o forte interesse em construir uma imagem positiva no mesmo momento em que consolidavam o seu poder nas ruas às custas de muita matança”, afirmou Aloy Jupiara.
Os autores Aloy Jupiara e Chico Otávio (Foto: Reprodução)
ABI Online– O desfile das escolas de samba está necessariamente ligado à contravenção?
CHICO – O que acontece atualmente, com o desfile privatizado nas mãos da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), uma entidade fundada e sob controle de contraventores, é resultado direto do que ocorreu nos últimos anos do regime militar e início da redemocratização. Bicheiros como Castor de Andrade e Aniz Abrahão David, o Anísio, primeiro tomaram a frente de agremiações carnavalescas em busca de prestígio social e para a proteção de seus territórios de jogo. Depois, partiram para controlar todo o desfile, criando a Liesa em 1984. Em meados dos anos 90, o poder público municipal entregou toda a organização do desfile à entidade. Da venda de ingressos à negociação de patrocínios e espaços publicitários no Sambódromo, toda a receita ficou com a Liesa. Mas os serviços públicos são prestados pelos órgãos públicos. E, para a realização do desfile, a prefeitura dá R$ 2 milhões a cada escola de samba.
ABI Online- Por que os bicheiros entraram nas escolas?
ALOY – As escolas nasceram no início do século passado, nas camadas mais pobres da população carioca. Como as famílias tinham poucos recursos, as escolas costumavam passar o livro de ouro para arrecadar dinheiro entre comerciantes. No início da segunda metade do século, o bicheiro Natal da Portela foi um personagem marcante. Nos anos 70, contraventores perceberam que as escolas tinham virado o grande evento do carnaval do Rio, pois tinham passado a atrair a classe média, artistas e turistas estrangeiros. Era a oportunidade que queriam para se legitimar socialmente, tentando construir uma imagem de mecenas. Quem viveu o carnaval do Rio na virada dos anos 70 para os 80 lembra que os dois filhos do então presidente João Figueiredo desfilaram na Beija-Flor, a escola de Anísio. Era isso que os bicheiros buscavam.
ABI Online- Como se deu a ligação de agentes da repressão com os bicheiros?
CHICO – Na segunda metade da década de 70, o regime militar começou a desmobilizar o aparato repressivo. Só que havia agentes da repressão que não concordavam com a abertura política e a volta aos quartéis. Parte desses agentes aderiu à contravenção, na qual encontrou um novo espaço de poder. Essa adesão aconteceu no momento da ascensão dos novos chefões, como Castor, Anísio e Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães. Era um jogo de mão dupla, uma mão lavava a outra. Os agentes levaram para a guerra do bicho nas ruas a violência que utilizaram nos porões da ditadura. Além disso, usaram seus conhecimentos adquiridos no Exército para organizar a contravenção, com uma estrutura hierárquica e redistribuição de pontos. Os pequenos bicheiros perderam seus pontos. A cúpula do bicho se estruturou como uma máfia.
ABI Online- Podem citar um desses agentes?
CHICO – Ligado a Anísio, o policial civil Luiz Cláudio de Azeredo Vianna era conhecido em Nilópolis, na Baixada Fluminense, como doutor Luizinho. Na Casa da Morte, centro clandestino de tortura em Petrópolis, o codinome dele era Laurindo. Nas ruas da Baixada, ele participava de ações de intimidação para garantir o poder do bicheiro. Em Petrópolis, torturava presos políticos. Ele acabou homenageado em Nilópolis, virando nome de praça.
ABI online- Com a decretação do AI-5, em 1968, os bicheiros foram presos. O que fez o regime mudar com relação a eles?
ALOY – Fora a prisão em 1968, quando foram levados para a Ilha Grande, no litoral sul do Estado do Rio, mas meses depois foram soltos, o regime não enxergou ou não quis enxergar o que os bicheiros pretendiam. Não que não estivessem informados. Os serviços de informações do regime monitoraram os contraventores. Apesar disso, Castor teve uma metalúrgica que fornecia marmitas para o Exército. Essa empresa era uma sociedade de Castor com o sogro de um dos filhos do general Figueiredo.
ABI Online- Com os anos, a opinião pública mudou a visão sobre os bicheiros?
CHICO – O ponto de virada foi a condenação da cúpula do bicho pela juíza Denise Frossard, em 1993. Os bicheiros foram condenados por formação de quadrilha armada. Apesar disso, depois de cumpridas as penas, ele voltaram a desfilar à frente da escolas, sendo aplaudidos. Sem dúvida, deixaram de se expor tanto. Atualmente não admitem que são bicheiros. Eles se apresentam como empresários. Mas Anísio e Capitão Guimarães estão condenados por corrupção e lavagem de dinheiro em duas sentenças da Operação Furacão (2007), deflagrada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal. A operação revelou uma rede de corrupção envolvendo policiais e até integrantes do alto escalão do Judiciário.
(Com a Associação Brasileira de Imprensa)
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