sábado, 16 de maio de 2020

Contra a Nakba contínua, resistência permanente


                                                                         

Soraya Misleh (*)

“Os que lavam as mãos o fazem numa bacia de sangue”. A frase de Ber­tolt Brecht, um dos grandes ar­tistas re­vo­lu­ci­o­ná­rios do sé­culo 20 - que tem sido uti­li­zada em ma­ni­fes­ta­ções no Brasil contra a ação ge­no­cida do si­o­nista Bol­so­naro ante a pan­demia de Covid-19 – não po­deria re­pre­sentar me­lhor a con­tínua Nakba (ca­tás­trofe) a que estão sub­me­tidos os pa­les­tinos há 72 anos. 

Ou seja, desde a cri­ação do Es­tado de Is­rael me­di­ante lim­peza ét­nica pla­ne­jada em 15 de maio de 1948, que cul­minou na ex­pulsão vi­o­lenta de 800 mil pa­les­tinos de suas terras e des­truição de cerca de 500 al­deias. 

Foram ainda co­me­tidos ge­no­cí­dios em de­zenas de al­deias nesse pro­cesso que foi a pedra fun­da­mental do pro­jeto po­lí­tico co­lo­nial si­o­nista, inau­gu­rado em fins do sé­culo 19 – e que, em 2 de no­vembro de 1917, re­cebeu as bên­çãos da Grã-Bre­tanha, com a emissão da De­cla­ração Bal­four.

Nesta, a In­gla­terra de­cla­rava-se fa­vo­rável à cons­ti­tuição de um lar na­ci­onal judeu na Pa­les­tina, sobre a qual re­cebeu o man­dato como es­pólio de guerra ao fim da Pri­meira Guerra Mun­dial (1914-1918) e a der­rota do Im­pério Oto­mano, que co­lo­ni­zava a re­gião. 

Inau­gu­rava-se ali a ali­ança si­o­nismo-im­pe­ri­a­lismo e uma longa his­tória de cum­pli­ci­dade in­ter­na­ci­onal com os crimes contra a hu­ma­ni­dade que são ba­si­lares ao Es­tado de Is­rael. A De­cla­ração Bal­four foi de­ter­mi­nante para a exe­cução do pro­jeto co­lo­nial que ten­taria – e segue a tentar – apagar do mapa os pa­les­tinos. E à época havia não mais do que 6% de ju­deus na Pa­les­tina.

Este pri­meiro crime re­vela dois ini­migos po­de­rosos da causa pa­les­tina, que se­guem atuais: o im­pe­ri­a­lismo e o si­o­nismo. Duas dé­cadas de­pois, um ter­ceiro ini­migo era evi­den­ciado: os re­gimes árabes. A der­rota da re­vo­lução de 1936-1939 na Pa­les­tina contra o man­dato bri­tâ­nico e a co­lo­ni­zação si­o­nista, o mo­mento mais pró­ximo em que se chegou da li­ber­tação, des­nudou esse trio per­verso. 

A ação de re­gimes árabes, assim como da bur­guesia pa­les­tina, foi de­ci­siva para se­pultar esse pro­cesso. Es­tava ar­mado o ce­nário ideal para a exe­cução da lim­peza ét­nica. Os pa­les­tinos, ab­so­lu­ta­mente vul­ne­rá­veis após a der­rota, com as li­de­ranças da re­vo­lução as­sas­si­nadas ou presas, foram de­sar­mados; não po­diam se­quer portar uma faca de co­zinha. En­quanto isso, os anos sub­se­quentes marcam o envio de armas por Stalin, via Tche­cos­lo­vá­quia, para as gan­gues si­o­nistas.

Ao final da Se­gunda Guerra Mun­dial (1939-1945), o ce­nário mun­dial fa­vo­recia os in­tentos si­o­nistas. Em­bora tenha ha­vido com­pro­va­da­mente acordos com Hi­tler, como o de Ha­a­vara, os hor­rores na­zistas foram bem uti­li­zados como pro­pa­ganda ao pro­jeto co­lo­nial si­o­nista. Slo­gans como “uma terra sem povo para um povo sem terra” e “fa­remos flo­rescer o de­serto” com­ple­tavam o quadro. 

De­talhe: os si­o­nistas sempre sou­beram que havia uma po­pu­lação ma­jo­ri­ta­ri­a­mente árabe na Pa­les­tina, que não era um vazio de­mo­grá­fico. Mas os con­si­de­ravam um não povo, que de­veria ser eli­mi­nado, por­tanto. Trans­fe­rência po­pu­la­ci­onal está am­pla­mente re­gis­trada nos diá­rios de li­de­ranças si­o­nistas – e, pos­te­ri­or­mente, sem meias pa­la­vras, com­pul­sória. Um eu­fe­mismo para lim­peza ét­nica pla­ne­jada.

O des­tino da Pa­les­tina era se­lado na pro­messa ao im­pe­ri­a­lismo de o si­o­nismo ser o que cha­mava de o posto avan­çado da ci­vi­li­zação contra a bar­bárie. Ou seja, seu en­clave mi­litar na re­gião do Ori­ente Médio e Norte da África, para se­guir usur­pando suas ri­quezas, numa re­gião rica em pe­tróleo e água sub­ter­rânea.

A his­tória da Pa­les­tina é re­pleta dessas ne­go­ci­atas, à margem de uma vida pa­les­tina que se­guia e se dava so­bre­tudo nas áreas ru­rais, onde ha­bi­tava a mai­oria de seus ha­bi­tantes. E é sobre esta re­a­li­dade que se impõe o ter­ceiro crime de­ter­mi­nante: a re­co­men­dação de par­tilha da Pa­les­tina em um Es­tado judeu e um árabe, pra­ti­ca­mente meio a meio, com Je­ru­salém sob ad­mi­nis­tração in­ter­na­ci­onal, pela As­sem­bleia Geral da recém-criada Or­ga­ni­zação das Na­ções Unidas (ONU) em 29 de no­vembro de 1947, pre­si­dida pelo di­plo­mata bra­si­leiro Os­valdo Aranha. 

O sinal verde para a lim­peza ét­nica pla­ne­jada, que se ini­ci­aria 12 dias de­pois e cul­mi­naria na cri­ação do Es­tado de Is­rael em 78% do ter­ri­tório his­tó­rico da Pa­les­tina. De lá para cá, a ex­pansão co­lo­nial segue im­pu­ne­mente, sob a cum­pli­ci­dade cri­mi­nosa da mesma “co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal” que a ra­ti­ficou. Em 1967, Is­rael ocupou o res­tante da Pa­les­tina (Cis­jor­dânia, Gaza e Je­ru­salém Ori­ental). Mais 350 mil novos re­fu­gi­ados.

O ano de 1993 marca um trá­gico e de­fi­ni­tivo ponto de in­flexão na his­tória de luta da Or­ga­ni­zação para a Li­ber­tação da Pa­les­tina (OLP), quando esta as­sina com Is­rael, sob me­di­ação do im­pe­ri­a­lismo es­ta­du­ni­dense, os de­sas­trosos acordos de Oslo – na es­teira de po­de­rosa In­ti­fada (le­vante po­pular). 

O re­sul­tado é a con­tínua ex­pansão co­lo­nial, fa­ci­li­tada pela cri­ação de uma ge­rente da ocu­pação, a Au­to­ri­dade Pa­les­tina (AP), cuja sub­ser­vi­ência é ex­pli­ci­tada com a co­o­pe­ração de se­gu­rança com Is­rael para re­primir a re­sis­tência.

Após vá­rias ne­go­ci­a­ções que ja­mais po­de­riam ga­rantir jus­tiça, pois sempre se deram nor­ma­li­zando a Nakba de 1948 e in­sis­tindo na fa­lácia da “so­lução de dois Es­tados”, em ja­neiro deste ano Trump anun­ciou uni­la­te­ral­mente o cha­mado “Acordo do Sé­culo” a um sor­ri­dente Ne­tanyahu – le­gi­ti­mando a ane­xação da Cis­jor­dânia pelo si­o­nismo e a ex­pansão co­lo­nial em curso, que já al­cança 85% da Pa­les­tina his­tó­rica e segue a todo vapor, mas­ca­rada por um mundo as­som­brado pela pan­demia.

O se­cre­tário de Es­tado norte-ame­ri­cano, Mike Pompeo, em meio à tra­gédia que as­sola os Es­tados Unidos, com mais de um mi­lhão de casos con­fir­mados de Covid-19 e 80 mil mortes, foi para Je­ru­salém nesta se­mana levar a cabo sua agenda. Um dia antes da posse do go­verno si­o­nista de co­a­lizão Gantz-Ne­tanyahu, rei­terou o plano im­pe­ri­a­lista-si­o­nista de ane­xação pre­visto no dito “Acordo do Sé­culo” a partir de julho pró­ximo. Disse ser uma de­cisão que as li­de­ranças is­ra­e­lenses têm o di­reito de tomar, mas em co­or­de­nação com Washington.

“Acordo do Sé­culo”

Por ser de­ma­siado des­ca­rado em seus pro­pó­sitos co­lo­niais, o “Acordo do Sé­culo” tem re­ce­bido con­de­nação in­ter­na­ci­onal. Não obs­tante, os mesmos que o con­denam são cúm­plices. Não ti­vessem his­to­ri­ca­mente nor­ma­li­zado as vi­o­la­ções co­me­tidas pelo si­o­nismo – o que con­ti­nuam a fazer –, não ha­veria tal plano.

A Nakba de 1948, que sau­daram ao re­co­nhecer o Es­tado de Is­rael, não pode ser des­co­lada desse pro­cesso. Como des­taca a jor­na­lista Ra­mona Wadi em ar­tigo de sua au­toria no portal Ala­raby, “Trump e Ne­tanyahu estão agindo sobre um le­gado de im­pu­ni­dade pela vi­o­lência co­lo­nial que foi ta­ci­ta­mente apro­vado (...)”. Ela con­tinua: “Sem ne­nhuma cen­sura po­lí­tica, os in­va­sores co­lo­niais con­quis­taram o status de vi­zi­nhos. Essa foi a afir­mação clara da co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal de que o povo pa­les­tino era agora um apên­dice à sua pró­pria his­tória, em vez de ser pro­ta­go­nista”.

Ainda con­forme a au­tora, “a ex­pansão dos as­sen­ta­mentos co­lo­niais de Is­rael for­neceu uma agenda per­pétua para a ONU. A vi­o­lação em an­da­mento - clas­si­fi­cada como crime de guerra pelo Tri­bunal Penal In­ter­na­ci­onal em suas in­ves­ti­ga­ções pre­li­mi­nares de de­nún­cias apre­sen­tadas pela Au­to­ri­dade Pa­les­tina – tem sido ro­ti­nei­ra­mente de­plo­rada pela co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal, mas nunca como parte da Nakba do povo pa­les­tino em curso”.

Como cor­re­ta­mente iden­ti­fica Wadi, ao con­denar apenas a ane­xação e suas con­sequên­cias, ig­no­rando que é con­ti­nui­dade da ca­tás­trofe de 1948, a co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal segue nessa “nor­ma­li­zação”. O que é ainda cor­ro­bo­rado pela Au­to­ri­dade Pa­les­tina, ob­serva Wadi: “Sua de­pen­dência da ajuda in­ter­na­ci­onal para sus­tentar sua hi­e­rar­quia ga­rante que cada aber­tura à ONU se ba­seie em ajudar esta a salvar a di­plo­macia de dois Es­tados. Assim, a ane­xação is­ra­e­lense também é nor­ma­li­zada pela li­de­rança pa­les­tina, apesar de o líder da AP, Mah­moud Abbas, ame­açar in­ter­romper todos os acordos com Is­rael”.

Wadi é ca­te­gó­rica: “Se a co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal se opu­sesse à Nakba de 1948 ou ten­tasse res­pon­sa­bi­lizar Is­rael, a des­co­nexão entre as vi­o­la­ções his­tó­ricas e as atuais não teria ocor­rido. Em vez disso, a ONU im­ple­mentou uma nar­ra­tiva falsa que dis­socia a his­tória da atual vi­o­lência po­lí­tica, como se a pri­meira não fosse um pro­duto da to­mada de de­ci­sões co­lo­nial e, por­tanto, po­lí­tica.”

A si­tu­ação em tempos de pan­demia

Desde a Nakba, a so­ci­e­dade pa­les­tina segue frag­men­tada. Es­tima-se que seja for­mada por apro­xi­ma­da­mente 13 mi­lhões de pes­soas, se­gundo o Centro de Es­tudos Badil, 66,7% na diás­pora ou em campos de re­fu­gi­ados nos países árabes – nos quais as con­di­ções são pre­cá­rias e já há, em al­guns, casos con­fir­mados de Covid-19 (e os Es­tados Unidos cor­taram verbas para a UNRWA – a Agência das Na­ções Unidas para As­sis­tência aos Re­fu­gi­ados Pa­les­tinos, o que torna ainda mais pre­o­cu­pante essa si­tu­ação).

Dois mi­lhões vivem em Gaza sob cerco de­su­mano há 13 anos e bom­bar­deios is­ra­e­lenses fre­quentes que des­truíram a in­fra­es­tru­tura – in­clu­sive hos­pi­tais. Mesmo assim, o re­sul­tado no en­fren­ta­mento à pan­demia é sur­pre­en­dente. Na se­gunda quin­zena de março foram re­gis­trados os pri­meiros casos con­fir­mados de Covid-19 e hoje há apenas 20.

Cerca de 3 mi­lhões de pa­les­tinos vivem na Cis­jor­dânia e em Je­ru­salém Ori­ental, sob ocu­pação cri­mi­nosa e re­gime ins­ti­tu­ci­o­na­li­zado de apartheid. So­mando-se aos de Gaza, nesses ter­ri­tó­rios pa­les­tinos ocu­pados em 1967, já são mais de 14 mil casos sus­peitos de Covid-19, 548 con­fir­mados e quatro mortes. Uma das mai­ores ame­aças – que vem sendo en­fren­tada ex­clu­si­va­mente graças à auto-or­ga­ni­zação pa­les­tina – segue sendo Is­rael, que pro­pa­gan­deia ao mundo sua falsa imagem de sal­vador de vidas, ao in­formar o de­sen­vol­vi­mento em curso de me­di­ca­mentos e va­cinas.

Além desses, há cerca de 1,8 mi­lhão de pa­les­tinos nos ter­ri­tó­rios ocu­pados em 1948 (“Is­rael”), sub­me­tidos a 60 leis ra­cistas, entre os quais re­si­dentes de de­zenas de al­deias não re­co­nhe­cidas pelo Es­tado si­o­nista, em que não chegam se­quer ser­viços bá­sicos (ao início da pan­demia, até am­bu­lân­cias es­tavam ve­dadas aos pa­les­tinos de tais vi­la­rejos - e aos de­mais não es­tavam sendo des­ti­nados testes e havia dis­cri­mi­nação no acesso a tra­ta­mento). 

Ses­senta mil tra­ba­lha­dores pa­les­tinos que vivem na Cis­jor­dânia, mas são obri­gados a passar por um check­point como gado para servir de mão de obra ba­rata a seus pa­trões si­o­nistas, re­ce­beram “per­missão” para ficar em Is­rael por dois meses, du­rante a pan­demia – en­quanto is­ra­e­lenses eram co­lo­cados em qua­ren­tena.

Apesar da trá­gica si­tu­ação im­posta pela co­lo­ni­zação e ra­cismo, os pa­les­tinos se­guem dando exemplo ao mundo. En­frentam a pan­demia mesmo com todas as res­tri­ções e obs­tá­culos, ao mesmo tempo em que for­ta­lecem a re­sis­tência à ane­xação de mais terras, à Nakba con­tínua. Is­rael in­ten­si­fica a re­pressão e vi­o­lência: as pri­sões po­lí­ticas, so­bre­tudo de cri­anças, já se ex­pan­diram em 6% no úl­timo pe­ríodo, to­ta­li­zando 194 me­nores, sub­me­tidos à tor­tura ins­ti­tu­ci­o­na­li­zada e maus tratos. 

Isso ocorre en­quanto Is­rael li­berta 500 de seus presos co­muns em função da pan­demia. Mantém, por outro lado, en­car­ce­rados 5 mil pa­les­tinos, em si­tu­ação de am­pliada ne­gli­gência, vul­ne­ra­bi­li­dade, em celas mal ven­ti­ladas e su­per­lo­tadas. Já há casos con­fir­mados de Covid-19 entre os presos po­lí­ticos, cujo único crime é re­sistir he­roi­ca­mente.

Os pa­les­tinos se negam a de­sa­pa­recer do mapa, há 72 anos. Nas me­mó­rias da Nakba, que mantém viva, na sua po­esia e li­te­ra­tura, nas pe­dras contra tan­ques e nos cha­mados a cam­pa­nhas de so­li­da­ri­e­dade in­ter­na­ci­onal – como a de BDS (boi­cote, de­sin­ves­ti­mento e san­ções) a Is­rael –, a re­sis­tência é per­ma­nente. Segue a ins­pirar opri­midos e ex­plo­rados em todo o mundo. Que neste 15 de maio eleve-se a so­li­da­ri­e­dade in­ter­na­ci­onal. Tre­mulem em todo o mundo ban­deiras pa­les­tinas, sím­bolos da luta pela eman­ci­pação da hu­ma­ni­dade do jugo do ca­pital. Até a Pa­les­tina livre, do rio ao mar.

(*) So­raya Misleh é membro da Di­re­toria do ICA­rabe, jor­na­lista pa­les­tino-bra­si­leira, mestre e dou­to­randa em Es­tudos Árabes pela Uni­ver­si­dade de São Paulo (USP). Au­tora do livro “Al Nakba – um es­tudo sobre a ca­tás­trofe pa­les­tina” (Ed. Sun­der­mann).

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