Exatamente 150 anos atrás, no dia 11 de setembro de 1867, era posto à venda o Livro I de "O capital", de Marx.
José Paulo Netto
O dia 11 de setembro, depois de 2001, tem sido marcado pela evocação do ataque terrorista que atingiu as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. O atentado, assumido pelos fundamentalistas da al-Qaeda (organização dirigida por Osama Bin Laden, ao que se sabe um antigo colaborador da CIA), custou a vida de mais de três mil pessoas, mas não feriu quaisquer interesses do capitalismo contemporâneo.
Pode-se, porém e felizmente, evocar um outro dia 11 de setembro, em que ocorreu evento verdadeiramente memorável – que, este sim, contribuiu e continua a contribuir, decisiva e concretamente, um século e meio depois, com as lutas sociais contra a ordem do capital e com os embates ideológicos dos que enfrentam a apologia dominante que a mistifica.
A referência é ao 11 de setembro de 1867 (portanto, há exatos cento e cinquenta anos), quando os intelectuais dedicados à causa dos trabalhadores tiveram ao seu alcance a principal arma teórica para o combate a conduzir contra a sociedade burguesa: nesse dia, foi posto à venda o livro I d’O capital: crítica da economia política, de Karl Marx.
Em tiragem de mil exemplares (só esgotados quatro anos depois), o livro I, único publicado em vida de Marx – os livros II e III, sob os cuidados de Engels, saíram em 1885 e 18941 –, foi editado em Hamburgo por Otto Meissner.
A segunda edição, na folha de rosto datada de 1872, foi revisada pelo próprio Marx e a terceira, de 1883, já não contou com a sua supervisão (recorde-se que ele falecera no primeiro semestre de 1883, a 14 de maio, pouco antes de completar 65 anos), mas com a de Engels.
Todavia, a maioria dos analistas considera que o texto “canônico” do livro I fixou-se mesmo a partir da quarta edição, de 1890, esta igualmente sob a responsabilidade de Engels – para indicações sobre as condições que levaram a tal fixação, pode-se recorrer à informada “advertência” de Pedro Scaron à sua excelente tradução da obra ao castelhano (El Capital. Buenos Aires: Siglo XXI, 1975, t. I, vol. 1: VII-XLI) e a uma breve e informada síntese de Sérgio Lessa (Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo. S. Paulo: Cortez, 2007: 21-30).
Folha de rosto da primeira edição do Livro I de O capital, publicada por Otto Meissner em datada de 1867; à esquerda, a folha de rosto da quarta edição, datada de 1890, também publicada por Otto Meissner, em Hamburgo, mas arrematada sob os auspícios de Friedrich Engels.
Os leitores de língua portuguesa só tiveram acesso ao texto integral do livro I apenas cento e um anos depois – Ênio Silveira, um dos maiores editores brasileiros do século XX com a sua Civilização Brasileira, planejara lançar a obra completa publicando-a a partir de 1967, na passagem do seu primeiro centenário; entretanto, só lhe foi possível começar o empreendimento no ano seguinte, concluindo-o inteiramente em 1974.2
A muito tardia tradução do livro I d’O capital no Brasil não significa que esta obra marxiana permaneceu ignorada entre nós (lembremos que ainda no século XIX brasileiros fizeram referência a ela: Tobias Barreto, em 1887, e Silvério Fontes, em 1895). Contudo, aqui, a maioria dos seus estudiosos socorreu-se amplamente, até meados dos anos 1960, sobretudo de edições castelhanas e francesas; quanto ao público não-especialista, mas interessado, este pôde se valer de conhecidos “resumos” do texto daquele livro I, além de umas poucas traduções de fragmentos seus.3
Não há dúvidas sobre a incidência do pensamento de Marx na cultura brasileira desde os anos 1930 – pense-se, por exemplo, em Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré. Mas é fato que essa incidência tornou-se mais ponderável a partir dos anos 1950 e, uma vez publicado em português O capital, ela ganhou um suporte que lhe propiciou um desenvolvimento mais denso e qualificado.
Ainda sob o tacão da ditadura instaurada no 1º de abril de 1964, registra-se já na década de 1970 (inclusive no interior da universidade) um debate intelectual qualificado sobre o qual as ideias político-econômicas de Marx visivelmente rebatem – e um tal rebatimento só se fez acentuar nos anos seguintes.
É desnecessário recordar que a crise do “socialismo real” e a emergência dos “tempos conservadores” de que falava o saudoso Agustín Cueva, num primeiro momento, afetaram (não só entre nós, mas em escala mundial) a influência de Marx e a difusão de suas análises. Mas não há mistificações ideológicas, como as promovidas pelos arautos do neoliberalismo e do “fim da história”, que resistam à força da realidade: quando a crise estrutural e sistêmica do capital mostrou-se em toda a sua violência, o espectro de Marx ocupou o proscênio – não foi casual que, no final dos anos 1990, a imprensa capitalista menos cretina viu-se obrigada a reconhecer que “o patrimônio de Marx ressurge depois de 150 anos” (New York Times, 27/06/1998) e a anunciar, na década seguinte, que “Marx voltou!” (Times, 20/10/2008).
Sobre O capital, tolices monumentais de autoria de respeitáveis acadêmicos (exemplo: Paul Samuelson, Prêmio Nobel de Economia/1970) e incessantemente reproduzidas por jornalistas a soldo da burguesia em suas “análises econômicas” colidem abertamente com a experiência objetiva do capitalismo contemporâneo.
Esta é uma das razões pela qual se verifica hoje, em todo o mundo culto (inclusive em segmentos universitários brasileiros), um renascimento da crítica da economia política sob a inspiração d’O capital. Tomada em seu conjunto, a arquitetura teórica que avançou a partir do livro I demonstrou (e a demonstração resistiu à prova da história) que:
o modo de produção capitalista dispõe de extraordinário dinamismo para a produção de riquezas materiais e exerceu, historicamente, um papel civilizador;
na medida em que se desenvolve, o modo de produção capitalista revela contradições inextirpáveis, que se manifestam nas suas crises periódicas (componente ineliminável da sua dinâmica, elas não o suprimem, mas criam condições para que a intervenção consciente dos trabalhadores possa fazê-lo);
nessa mesma medida, o papel civilizador do modo de produção capitalista se atrofia e se converte no seu antípoda, a barbarização da vida social, consequência da lei geral da acumulação;
o modo de produção capitalista, a partir da sua plena maturação, engendra fortes tendências ao bloqueio da sua própria dinâmica;
o modo de produção capitalista não é a expressão de uma pretensa ordem natural nem, menos ainda, o fim da história: é uma modalidade temporária, transitória e substituível de organização da produção e distribuição das riquezas sociais.
É evidente que O capital não dá conta da complexidade do capitalismo contemporâneo – cento e cinquenta anos depois da publicação do seu livro I, profundas transformações modificaram a ordem do capital. Mas a obra é condição necessária para a sua compreensão e crítica radicais: sem ela, torna-se impensável um conhecimento teórico sistemático e comprovável do mundo em que vivemos. Por isto mesmo, em todos os centros cultos, o sesquicentenário do livro I d’O capital – coincidente com o primeiro centenário da Revolução de Outubro – é alvo, agora, de reverência científica.
Neste 11 de setembro, a sua evocação, à diferença do que se passou em Nova York, em 2001, é um preito a uma obra que honra a humanidade na escala mesma em que, oferecendo a base necessária para a crítica do capitalismo, abre a via para a emancipação universal de todos os homens e todas as mulheres.
Notas
1 Um livro IV, que Kautsky deu a público em precária formatação entre 1905 e 1910, só teve tratamento editorial mais cuidadoso nos anos 1950/1960 e dispõe de versão em português, em três volumes, desde a década de 1980 – K. Marx, Teorias da mais-valia. Livro 4 de “O Capital”. História crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, I; S. Paulo: DIFEL, 1983-1985, II-III. Boitempo, no prelo.
2 Entre 1968 e 1974, Ênio – sobre cujo protagonismo na vida brasileira, que a maioria dos jovens universitários parece desconhecer, pode-se consultar Moacyr Félix, Ênio Silveira, arquiteto de liberdades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998 – editou os três livros em seis volumes, na tradução pioneira de Reginaldo Sant’Anna. Contamos atualmente em português com três outras edições integrais da obra: a da Abril Cultural, de S. Paulo, na coleção “Os economistas”, em tradução de Régis Barbosa e Flávio R. Kothe (1983-1985); a da Avante!, de Lisboa, em tradução de José Barata-Moura (1990-2017) e a da Boitempo (em tradução de Rubens Enderle, 2013-2017).
3 “Resumos” do livro I saem nos anos 1930: o de C. Cafiero, de 1879 (O capital. S. Paulo: Unitas, 1932) e, em seguida, o de G. Deville, de 1883 (O capital. S. Paulo: Moderna Paulistânia,1934) – ambos seguidamente reeditados; muito posteriormente, tem-se o “resumo” dos três livros de J. Borchardt, de 1919 (Karl Marx. O capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1967); cf., ainda, Alfredo Lisbôa Browne, Leitura básica de O capital. Resumo e crítica da obra de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 e Luiz de Carvalho Bicalho, Resumo literal de O capital. Condensação dos livros 1, 2 e 3. S. Paulo: Novos Rumos, 1990. Excertos do livro I vieram à luz também desde os anos 1930; o último que registro aparece nos anos 1960: cf. K. Marx, A origem do capital (A acumulação primitiva). S. Paulo: Fulgor, 1964.
José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista. Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. Recentemente, organizou o guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015). No Blog da Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna “Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico“, dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da literatura anticapitalista.
(Com a Bomtempo)
Publicado em 11/09/2017
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