terça-feira, 30 de maio de 2017

A UJC e a UNE: um breve histórico da atuação dos jovens comunistas na UNE


                                                               

Túlio Lopes (*)

A União da Juventude Comunista (UJC) participou de todos os congressos da União Nacional dos Estudantes (UNE). Em seu congresso de fundação em 1937, participaram vários jovens comunistas, entre eles Irun Santana, um importante líder estudantil da época. Na década de 1950, jovens comunistas estiveram presentes em várias ações da entidade estudantil entre elas a campanha contra o envio de soldados à Guerra da Coreia e a campanha O PETRÓLEO É NOSSO!

Nos anos sessenta os jovens comunistas atuaram através da direção da UNE na campanha em defesa da Educação pública contra o projeto de lei de diretrizes e bases da educação nacional proposto pelo então deputado federal Carlos Lacerda, que defendia explicitamente os interesses dos tubarões do ensino privado, dando origem à primeira LDB. 

A juventude comunista marcou presença também nos Centros Populares de Cultura, em campanhas de alfabetização de trabalhadores/as e em diversos eventos ligados à Federação Mundial das Juventudes Democráticas – FMJD.

Os jovens comunistas lutaram ativamente contra a ditadura militar instaurada no Brasil em 1964, participando em diversas trincheiras. Atuaram no processo de reconstrução da UNE e outras entidades estudantis, no final dos anos 70 e inicio dos anos 80. Participamos também da luta pelas “Diretas Já!, pelo “FORA COLLOR”, da campanha nacional em defesa da educação pública e das lutas contra as políticas neoliberais do governo tucano de Fernando Henrique Cardoso ligado ao Fundo Monetário Internacional, gritando “Fora FHC! Fora FMI!”.

De 1995 até 2009, a UJC atuou nos congressos da UNE com a tese “A Hora é Essa! Ousar lutar, ousar vencer!”, atuando de forma independente, integrando por diversas vezes o campo de oposição de esquerda da entidade e apresentando a pauta da Universidade Popular. De 2009 até 2015 agimos nos congressos com independência e crítica em relação ao campo majoritário (UJS, JPT e JPMDB).

Durante os dois mandatos do Governo Lula e o mandato da Dilma, a juventude comunista defendeu a posição de independência e luta da entidade em relação ao Governo Federal. Participamos de diversas lutas contra os governos do PT, com destaque para a jornada nacional em defesa da educação pública (2007), da luta contra a reforma universitária e da luta contra os leilões da Petrobrás retomando a campanha histórica: “O Petróleo tem que ser nosso!” 

Participamos também das ocupações das reitorias de diversas universidades, da campanha contra a mercantilização da Educação desenvolvida pela Organização Latino Americana e Caribenha dos Estudantes (OCLAE) e do ato de retomada da sede história da UNE na Praia do Flamengo – Rio de Janeiro-RJ.

No último período de lutas a UJC buscou fortalecer o trabalho de base nos centros e diretórios acadêmicos, nos Diretórios Centrais dos Estudantes, nas Uniões Estaduais dos Estudantes, nas executivas e federações de curso. Organizou, em conjunto com diversas entidades representativas do movimento estudantil, sindical e popular, o primeiro Seminário Nacional sobre Universidade Popular (2011), o Encontro Nacional do Movimento por uma Universidade Popular (2014) e participou dos dois encontros nacionais da educação.

Sempre nos pautamos por uma entidade unitária dos estudantes universitários brasileiros, vinculada às lutas da juventude e da classe trabalhadora pelo socialismo. A UJC participará do próximo Congresso da UNE propondo a unidade dos estudantes na luta contra o governo ilegítimo do Michel Temer e suas reformas, fortalecendo e ampliando o campo da oposição de esquerda e defendendo um projeto estratégico de universidade, a Universidade Popular.

(*) Túlio Lopes é Secretário Nacional de Juventude do PCB.

Lançamento do livro "Olga Benario Prestes: Uma Comunista nos Arquivos da Gestapo" será dia 3 às 14h na Casa dos Jornalistas,em BH


Miguel Urbano Rodrigues e o PCB

                                         

Neste 27 de maio de 2017, aos 91 anos, Miguel Urbano Rodrigues entrou para a história do movimento comunista, provavelmente como o melhor exemplo de intelectual militante que fez do exercício do internacionalismo proletário um compromisso de vida.

A extraordinária obra deixada por este eterno jornalista e escritor, valorizada por sua vasta cultura e a clareza da sua escrita, será sempre uma inesgotável fonte de pesquisa para aqueles que procuram entender o mundo pelas lentes da luta de classes.

Diz-se que Miguel Urbano era português. Tanto assim que nasceu no Alentejo, em 1925. Mas o olhar comunista de Miguel não tinha fronteiras. Em cada um de seus escritos se identifica, em cada momento histórico, aonde e de que lado estavam os atores e os interesses que se batiam em cada capítulo da luta inconciliável entre o capital e o trabalho.

Por sofrer as dores e as alegrias de todos os povos, além de português, Miguel era russo, cubano, grego, vietnamita, palestino, argelino, francês, haitiano, iugoslavo, colombiano e venezuelano, angolano e moçambicano. Mas ser brasileiro marcou muito nosso querido Miguel. 

Viveu entre nós quase vinte anos, durante o exílio que lhe impôs a ditadura fascista de Salazar. No Brasil, exerceu o jornalismo e militou no PCB. Logo após a Revolução dos Cravos (que se deu em 25 de abril de 1974), voltou a Portugal para se reincorporar ao Partido Comunista Português e militar à frente de sua imprensa partidária.

Miguel nunca deixou de acompanhar os acontecimentos no Brasil, mas manteve distância política do PCB durante a década de 1980, apesar de preservar relações amistosas com alguns comunistas brasileiros que tiveram a honra de compor sua legião de amigos por toda parte. Foi nos anos 1990, em meio aos impactos que a contrarrevolução na União Soviética provocou no movimento comunista internacional, que Miguel Urbano, sondando o terreno, voltou aos poucos a se aproximar do PCB, solidário com a luta daqueles que insistiam em defender a manutenção do partido, resistindo aos liquidacionistas.

Desde então, a relação de Miguel Urbano Rodrigues com o PCB veio se intensificando, fazendo dele o amigo, colaborador e simpatizante mais identificado internacionalmente com o partido. Para se ter ideia da importância da contribuição teórica de Miguel Urbano para a formação da nossa militância e dos nossos amigos e simpatizantes, ele é o autor mais publicado no portal do PCB, com mais de 150 textos que continuarão à disposição dos leitores.

Miguel esteve em atividades do partido em várias ocasiões, a mais importante num Seminário Internacional nas comemorações dos 90 Anos do PCB, em março de 2012. Na ocasião, ao chegar a Portugal, publicou em odiario.info, que criou e dirigiu, seu artigo “Sobre os 90 Anos do PCB”, que abaixo transcrevemos na íntegra. Nada melhor do que as palavras do camarada Miguel para conhecer sua relação com o PCB.

A ausência física de Miguel Urbano Rodrigues nos priva de uma fonte privilegiada para subsidiar nossa compreensão de fatos marcantes que surgirão desta complexa conjuntura internacional. Mas seu fértil legado intelectual e seu exemplo de vida serão fontes eternas de inspiração para os verdadeiros revolucionários.

Camarada Miguel Urbano, presente, hoje e sempre!

Comitê Central do PCB (Partido Comunista Brasileiro)


Sobre os 90 anos do Partido Comunista Brasileiro

Miguel Urbano Rodrigues

Raras vezes um partido comunista se recuperou após uma crise profunda que, no desenvolvimento de uma estratégia e uma tática incompatíveis com princípios e valores do marxismo-leninismo, implique na prática a renuncia ao objetivo principal: a tomada do poder rumo à construção do socialismo.

A desagregação da URSS e a restauração do capitalismo na Rússia contribuíram decisivamente para a social democratização de muitos partidos comunistas e em alguns casos para o seu desaparecimento ou transformação em partidos da burguesia neoliberal.

Nesse panorama sombrio, o Partido Comunista Brasileiro emerge como exceção que reconforta.

À beira do abismo, após mais de uma década de vida letárgica, renasceu em 1992, reconstruiu-se como organização marxista-leninista e retomou a sua vocação de partido revolucionário e internacionalista.

A HISTÓRIA ESQUECIDA

Foi com emoção que acompanhei esses debates e intervim no Seminário Internacional que se seguiu ao dedicado aos temas nacionais.

Vivi em São Paulo, exilado, de 1957 até à Revolução portuguesa e, como militante do PCB, tive a oportunidade de participar modestamente das lutas do povo brasileiro.

Por decisão do Ministro da Justiça um livro meu foi apreendido. Detiveram-me algumas vezes e fui submetido a prolongado interrogatório por um inspetor da famigerada Operação Bandeirantes, a criminosa organização militar-terrorista da ditadura.

A crise que se instalou no campo socialista no final dos anos 80 e culminou com a reimplantação do capitalismo na Rússia aprofundou a tendência capituladora e liquidacionista de influentes membros do Comité Central.

A maioria desse Comité Central, impondo uma linha reformista, levou o PCB à beira da extinção.

A exigência da reconstrução revolucionária principiou quando a maioria do CC aboliu o centralismo democrático, e mudou o nome do Partido, criando uma organização socialdemocrata, o Partido Popular Socialista, que hoje tem um perfil de centro-direita. Mas não conseguiu acabar com o PCB, que não deixou de existir um dia sequer, ao contrário do que na Europa foi afirmado inclusive por intelectuais marxistas.

A LENTA RECONSTRUÇÃO

O renascimento do PCB foi lento, difícil. É ainda um pequeno partido num país de 200 milhões de habitantes. Não tem deputados no Congresso e nas Assembleias dos Estados, poucos representantes municipais. São transparentes as suas insuficiências. Mas a atual linha revolucionária, traçada por uma direção marxista-leninista e sustentada por quadros de grande qualidade, proporcionou-lhe em poucos anos um grande prestígio.

Enquanto pelo mundo outros partidos comunistas se social-democratizaram, ele volta a desempenhar um papel de crescente importância nas lutas do povo brasileiro e no cenário internacional em todas as frentes onde o combate ao imperialismo estadunidense se tornou exigência revolucionária.

(publicado em 23/04/2012)


segunda-feira, 29 de maio de 2017

Homenagem do ILCP ao jornalista Miguel Urbano Rodrigues


Hasta Siempre, camarada Miguel Urbano Rodrigues!

                                                                  
Edmilson Costa

Tomamos conhecimento hoje à tarde, com profundo pesar, do falecimento de nosso querido camarada Miguel Urbano Rodrigues, um grande amigo do PCB, partido no qual militou quando esteve exilado no Brasil e com o qual tinha grande convergência política.

Para os comunistas do PCB, Miguel Urbano Rodrigues foi um revolucionário exemplar, um intelectual brilhante e um internacionalista que lutou a vida inteira pela causa mais nobre da humanidade, que é a conquista do socialismo. 

Ao longo de toda a sua vida esteve solidário a todas as lutas pela emancipação do proletariado e pela felicidade humana. Por isso sua trajetória enche de orgulho os comunistas de todo o mundo, especialmente os comunistas do PCB.

A vida revolucionária de nosso querido Miguel servirá de exemplo para toda a militância do PCB, especialmente para as novas gerações, que terão no seu exemplo uma fonte inspiradora para suas lutas aqui no Brasil e para a solidariedade internacionalista. Nos orgulhamos muito da amizade que tínhamos com o Miguel e honraremos sua luta batalhando pela revolução socialista no Brasil.

Edmilson Costa

Secretário geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB)

Nota do Secretariado do Comité Central do PCP face ao falecimento de Miguel Urbano Rodrigues


                                             

Nota do Secretariado do Comité Central do PCP
lembra  militância de Miguel Urbano desde 1964

O PCP endereçou à família o seu pesar pelo falecimento de Miguel Urbano Tavares Rodrigues, reconhecido jornalista e escritor com percurso de intervenção política em Portugal e no estrangeiro, antes e depois do 25 de Abril, ao longo de muitas décadas. Era membro do PCP desde Janeiro de 1964.

Como jornalista exerceu funções diversas desde 1949, no «Diário de Notícias» e «Diário Ilustrado», posteriormente no Brasil, jornal «O Estado de S.Paulo» e «Portugal Democrático» e na revista brasileira «Visão» até 1974. Após o 25 de Abril de 1974 foi chefe de Redacção do «Avante!» e entre 1976 a 1985 director do jornal «O Diário».

Foi Presidente da Assembleia Municipal de Moura entre 1986 e 1988 e Deputado do PCP na Assembleia da República entre Agosto de 1987 a Outubro de 1995.

Destaca-se a sua intervenção como jornalista de investigação e reportagem, sendo autor de vários livros.

(Com o Diário Liberdade)

Para entender melhor o Brasil e seus intelectuais

sábado, 27 de maio de 2017

Manifestantes intensificam a luta contra as reformas e o governo usurpador



Cerca de 100 mil manifestantes marcharam em Brasília pela derrubada do governo usurpador de Michel Temer, pela anulação das reformas e de todos os atos do governo usurpador. A manifestação, convocada pelas centrais sindicais, movimentos sociais e partidos políticos de oposição, foi duramente reprimida pela Polícia Militar, tendo como resultado 49 pessoas feridas e 7 presas, inclusive um camarada do PCB.

Diante da grandiosidade da manifestação e da resistência dos trabalhadores e da juventude, o presidente ilegítimo, com medo da população, decretou a intervenção das Forças Armadas em Brasília, visando intimidar os manifestantes, mas , dia 25, diante da repercussão negativa da medida, revogou o decreto. 

Os manifestantes, oriundos de praticamente todos os Estados , começaram a se concentrar desde as primeiras horas da manhã no Estádio Mané Garrincha, com caravanas dos diversos sindicatos e organizações juvenis e partidárias. 

Entoando palavras-de-ordens e discursos nos carros de som contra o governo, os trabalhadores e a juventude começaram desde cedo “o esquenta” até o início da passeata, ao meio dia. 

Dezenas de milhares de trabalhadores foram formando um imenso cordão de vários quilômetros pelo eixo principal de Brasília, com milhares de bandeiras e discursos contra o governo. 

A marcha seguiu pacífica até próximo ao Congresso, quando a polícia começou a atirar bombas de efeito moral, de gás lacrimogêneo e spray de pimenta e balas de borracha contra os manifestantes. 

 A partir daí instalou-se uma batalha campal desigual entre os manifestantes e a polícia, com aumento da repressão e também da resistência dos trabalhadores e da juventude. 

Diante da brutalidade, as massas furaram os cordões policiais e depredaram os ministérios da Fazendo, da Cultura, da Agricultura, este incendiado, além de outros prédios públicos. Em um dos ministérios a polícia atirou com bala letal contra os manifestantes, ferindo um deles. Quando o governo percebeu o tamanho das manifestações, dispensou os funcionários públicos. 

A novidade desta manifestação é que a polícia não conseguiu dispersar os manifestantes, pois estes resistiram às bombas e o gás lacrimogêneo, às balas de borracha e não arredaram o pé do gramado em frente ao Congresso. 

Foi aí que Temer, em polvorosa, chamou as Forças Armadas, mas aí a manifestação já estava acabando, com uma nítida sensação de vitória dos manifestantes. 

A grande manifestação do dia 24 de abril marca uma nova fase da luta de massas no Brasil, pois os manifestantes aprenderam a não se intimidar diante da repressão, principalmente quando estão aos milhares, lutando por uma causa justa. 

Novas manifestações virão, ainda muito mais massivas e combativas, inclusive com a construção de uma nova greve geral até a deposição do governo usurpador, a revogação de todos os seus atos, prisão dos corruptos e confisco de seus bens e a conquista de um novo governo que atende aos interesses populares. 

O PCB, a Unidade Classista, a União da Juventude Comunista, o Coletivo Ana Montenegro e o LGBT comunista estiveram presentes na marcha, formando uma expressiva Coluna Vermelha, na sua grande maioria constituída de jovens de vários Estados do País .

(Com o site do PCB)

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Cai, não cai… mas, afinal, o que deve cair?

                                                                       
                                                                        
 Mauro Luis Iasi (*)    

A presente crise no Brasil não reclama mais democracia representativa, indica o seu mais evidente limite. Exige urgentemente uma nova forma política. Há uma alternativa que se abre na medida em que a crise política se converte em crise do Estado.

“O Direito à revolução é o único direito histórico real,
o único sobre o qual repousam todos os Estados modernos”.
Friedrich Engels (1895)

“Tudo pode acontecer, inclusive nada”
Barão de Itararé

O usurpador balança e se vê na ponta da prancha do navio pirata que pensava comandar. Cobra lealdade de seus colegas saqueadores e usurpadores e tem dificuldade em manter ao seu lado até mesmo o papagaio que vivia pousado em seu ombro. A luta intestina entre os segmentos que levaram a cabo a interrupção do mandato presidencial eleito em 2014 chega ao ponto de fritura e ameaça a estabilidade necessária para implementar as reformas contra os trabalhadores.

A democracia representativa faliu, mas não pelos motivos que a teoria política clássica pensava. Montesquieu, por exemplo, buscava o equilíbrio e a moderação e pensava que a principal causa das instabilidades e da corrupção da República era a ambição do povo em tomar decisões e resoluções ativas. O povo, segundo o ilustre Baron de La Brède et de Montesquieu, deveria contentar-se a apenas indicar seus representantes e nada mais, deixando inteiramente a cargo deles a elaboração das leis e sua implementação ao executivo, bem como o ato de julgar a quem lhe cabe. Mas, por que?

Segundo nosso versado Barão, em qualquer Estado há pessoas eminentes, bem nascidas, detentoras de propriedades e de riquezas… E não seria razoável esperar delas que vivam entre o povo apenas com o direito a um voto como todo mundo. Essa liberdade seria sua escravidão e eles não teriam nenhum interesse em obedecer as leis, “porque a maioria das decisões seria contra eles” (Montesquieu, O espírito das leis, Livro 11: “Capítulo VI: Da Constituição da Inglaterra”).

A solução imaginada é que no Estado exista um “corpo que tenha o direito de refrear as iniciativas do povo”, assim como esse povo teria o direito de refrear as ambições deste corpo. Assim se concebe o jogo de forças entre o executivo que governa, mas não pode fazer a lei, e o legislativo que faz a lei mas não pode aplicá-la. Tal engenharia política, à época de Montesquieu e Locke, se materializava em duas casas distintas – uma dos nobres, outra do povo – nas quais fosse possível produzir deliberações fundadas nos pontos de vista distintos de cada classe. 

O executivo deveria levar em conta os dois interesses e não somente o de um ou o de outro e, em caso de dúvida, o julgamento caberia a um terceiro poder, o de julgar. Esse, por sua natureza deveria ser “nulo”, isto é, não poderia expressar nem uma vontade nem outra, mas somente a Lei. Em casos de impasse, o Rei representaria o interesse geral, acima dos interesses particulares, como um moderador. E, assim, tudo aconteceria no melhor dos mundos e da melhor forma possível.

No entanto, continua Montesquieu, “poderia acontecer que algum cidadão, nos negócios públicos, violasse os direitos do povo, e cometesse crimes que os magistrados estabelecidos não soubessem ou não quisessem punir”. Ora, nestes casos quem poderia acusar e julgar o malfeitor? Os juízes poderiam acusar, pois expressariam o direito do povo de acusar o mal feito, mas não julgar, porque “os grandes estão sempre expostos à inveja; e se fossem julgados pelo povo, poderiam correr perigo”. 

Eis que surge uma ideia incrível: eles teriam o direito, como qualquer um em um Estado livre, de serem julgados por seus iguais – e eles não são iguais ao povo. (Em outro momento, poderemos voltar a falar da igualdade para Montesquieu; por enquanto, nos basta afirmar que, para ele, o verdadeiro espírito da igualdade, a igualdade perante a lei, está distante da “igualdade extrema”, como o céu da terra).

Dessa forma, os “nobres” não podem ser julgados pelos tribunais ordinários da nação, mas por aquela parte do corpo legislativo composta por nobres, ou seja, seus iguais. É disso que se trata quando falamos de foro privilegiado nos dias de hoje, trata-se de um privilégio de ser julgado por seus pares, no caso presente, pelos colegas políticos e pelas instancias superiores do judiciário.

A democracia se corrompe, na concepção do barão proto-burguês, quando não apenas o princípio da igualdade se perde, mas, principalmente, quando impera o espírito da “igualdade extrema” que é assim descrita pelo pensador em questão: “cada um quer ser igual aos que escolheu para comandá-lo; porque, nesse caso, o povo, não podendo suportar o próprio poder em quem confia, quer fazer tudo por si mesmo, deliberar em lugar do senado, executar em lugar dos magistrados e despojar todos os juízes” (Montesquieu, O espírito das leis, Livro 8: Da corrupção do princípio da Democracia). Assim, não poderia haver mais virtude na democracia.

Ora, ora, ora, meu bom Barão. Não foi qualquer cidadão que violou os direitos do povo e cometeu crimes, foi o usurpador que ocupou o lugar da Presidente eleita. A particularidade da situação que se expressa em uma crise política que se avizinha de uma crise de Estado, se dá pelo fato que, além dos magistrados não demonstrarem muita vontade em punir, existe o grande problema do que colocar no lugar do delinquente a ser deposto. 

As alternativas apresentadas são: assume o presidente da Câmara, que teria trinta dias para chamar uma eleição indireta, deliberada pelo Congresso, de um novo mandatário a ser escolhido em 90 dias; eleições diretas antecipadas; ou uma espécie de governo provisório no qual a presidente do STF, Carmen Lúcia, no caso, estaria à frente (indicada pelo Congresso ou por um outro meio qualquer).

Também se cogita a figura execrável do senhor Nelson Jobim, que sintetiza em si as três dimensões do parlamentar, ministro do executivo e membro do STJ. O problema, como querem alguns, não pode se resumir ao que estabelece a Constituição, não apenas pela tensa relação entre o legal e o legítimo, mas pela natureza do fato que se busca enfrentar. 

O problema para as classes dominantes e setores de classe em franca disputa pelo controle do governo é o da estabilidade que é essencial para a imposição das reformas contra os trabalhadores, notadamente a reforma trabalhista e da previdência, mas não só. A questão é que a saída constitucional (afastamento e eleição indireta pelo Congresso) parece não levar à estabilidade necessária. Isto é, a crise se alastraria até 2018.

Diante da decisão momentânea do usurpador não renunciar, outro problema se coloca. Um processo de impedimento se alastraria por um tempo considerável (a presidente eleita em 2014 teve o seu processo de impedimento aberto na Câmara dos Deputados em 2 de dezembro de 2015, foi afastada em 12 de maio de 2016 e cassada só em 31 de agosto de 2016). Uma eleição indireta ou direta teria que se dar com um intervalo de tempo que poderia variar de 90 dias até algo próximo de 150 dias. Nos parece muito tempo para um vácuo de poder na temperatura de crise política atual.

Tudo indica que se gesta uma alternativa que responda a essa variante, o tempo. No entanto, ao lado disso se apresenta o fato que a alternativa que resolva esse vetor inviabilize outro vetor essencial: a legitimidade necessária para enfrentar a instabilidade. Neste ponto, as coisas se complicam, porque todas as alternativas são problemáticas para os setores dominantes em disputa.

O presidente da Câmara, que assumiria para convocar as eleições, está envolvido na mesma denúncia que atingiu o usurpador. E pior: o Congresso que elegeria o presidente interino, em sua maioria, também está chafurdado na mesma lama que emporcalha os dois primeiros. Afastar um presidente por um crime de corrupção passiva (entre outros) e dar aos políticos envolvidos no mesmo crime o direito de nomear um sucessor é, para dizer o mínimo, complicado.

O teor da denúncia atinge 1.829 candidatos e 28 partidos – dos 32 partidos registrados no TSE em 2014, somente quatro não estão envolvidos: o PCB, PSOL, PSTU e PCO [1]. Isso significa que, dos 28 partidos com representação no Congresso, 27 estão envolvidos. Em um país sério, as eleições de 2014 deveriam ser anuladas e os atos tomados pelos governantes e parlamentares desde então considerados nulos. Como, então, atribuir a esse Congresso o direito de indicar um sucessor para o usurpador?

Ainda que não questione a legitimidade de quem clama pela antecipação das eleições, existe um problema de fundo ignorado. Todas as distorções presentes no pleito passado estão inalteradas e, em certo sentido, agravadas pela mini reforma política imposta. Desde o financiamento privado de campanha, passando pelo poder dos meios de comunicação e a ingerência dos grandes interesses econômicos, até as máquinas partidárias e o uso do poder público (municipal, estadual e federal).

Do ponto de vista das classes dominantes, a antecipação abriria um cenário de agravamento da instabilidade – ainda que, no médio prazo, esse poderia ser o caminho para legitimar as medidas que agora se impõem com as ditas reformas. Para as classes dominantes e seus aparelhos (entre eles a Rede Globo), o central é garantir as reformas, nem que para isso seja preciso rifar o usurpador que eles tanto apoiaram.

Desta maneira, não me parece que as classes dominantes estejam, pelo menos agora, em um beco sem saída. Há pelo menos duas saídas para o atual beco.

Quando olhamos o quadro como um todo (a questão da legitimidade e a urgência do tempo), nos parece que a ordem prepara uma solução pelo alto. De certa maneira, antecipamos esta possibilidade na coluna “O caminho da ditadura”, publicada aqui no Blog da Boitempo em 24/11/2016, quando analisávamos a crise e as alternativas postas que poderiam colocar em risco a ordem em um cenário no qual ainda prevalecia a luta interna entre os setores vitoriosos do golpe. Naquela oportunidade, ponderávamos que os militares não expressariam, como em 1964, esta personificação do Estado colocando-se acima dos segmentos em disputa, mas sim outra instância do Estado burguês.

Dizíamos:
“Os indícios apontam para outro sujeito, que busca se credenciar como forma universal, acima das disputas particulares, em nome da substância do capital e da ordem: o Judiciário. O direito reivindicaria sua natureza não como instrumento do Estado, mas como ele próprio Estado. Não apenas como uma relação entre o direito público e fato político, mas o próprio direito como fato político. Caso isso se confirme estaríamos de forma límpida no campo do estado de exceção transformado em regra, chancelada por quem de direito”.

O fato das denúncias aparentemente pouparem o judiciário (o que é de certa forma estranho) acabou preservando essa esfera. E digo que é estranho pois se acompanharmos a operação Mãos Limpas, da Itália, por exemplo, veremos que o judiciário era um alvo estratégico das organizações criminosas envolvidas. O judiciário pode legitimar a alternativa indireta pelo Congresso ou assumir diretamente a condução de um governo interino até 2018. 

Carmen Lúcia pode estar seduzida por esta alternativa, mas seus pares hesitam em assumir diretamente o ônus de “perder” a suposta imparcialidade. Essa é uma das saídas. O ônus a pagar é o custo de uma imposição pelo alto e a necessidade de enfrentar as resistências que se farão presentes – e aqui não podemos rejeitar o cenário, nem um pouco absurdo, de uma tentativa de cancelamento das eleições de 2018.

De qualquer maneira, em meio a tanta incerteza, aparece uma quase unanimidade: Henrique Meirelles, o escudeiro maior das reformas antipopulares em favor do capital, seguiria no comando da economia.

Isso quer dizer que as facções da burguesia divergem sobre quem deve assumir o governo, mas não sobre o que fazer com ele. Esse campo enfraquece a bandeira das eleições diretas uma vez que a candidatura Lula não se posiciona inequivocamente sobre essa questão, ainda que tudo indique que a pretensão de remendar o pacto entre as classes aponte na direção de manter Meirelles (que já foi seu ministro) ou quem mantenha o que ele faz hoje. Esta, infelizmente, pode ser a outra saída, mas insegura que a primeira, mas pode ser aquela que resolveria, aparentemente, o problema da legitimidade com um ônus menor.

Entretanto, o gênio da extrema direita colocada para fora da garrafa como meio de operar o golpe contra o governo passado é um problema nesse cenário. O país está dividido e só se agravará a fissura no cenário de um retorno de Lula, com ou sem a intenção de repactuar com as classes dominantes.

O paradoxo, para a esquerda, consiste no seguinte problema. Os trabalhadores só têm um único caminho: a resistência contra as reformas. E o campo para isso, como se demonstrou no dia 28 de abril, é a Greve Geral e a luta nas ruas. Entretanto, ainda que valorosa e necessária, a ação de resistência pode contribuir com duas estratégias que em última instância são contrárias aos interesses dos trabalhadores: de um lado, favorecer a insolvência do governo usurpador (o que é muito bom) e propiciar a saída por cima promovida pela ordem (o que é muito ruim); por outro, criar as condições para, antecipando ou não as eleições, viabilizar a alternativa de Lula, que aponta para a tentativa de remendar o pacto social que um dia promoveu (o que não é nada bom).

Nossa alternativa deve ser criar as condições para barrar as reformas, seja por qual meio venham a se impor. Nosso dever é afirmar que a presente crise não clama por mais democracia representativa, mas indica seu mais evidente limite, o que exige urgentemente uma nova forma política. Existe uma terceira alternativa que se inscreve na medida em que a crise política se converte em crise do Estado. Mas quem a apresentou, interessantemente, a colocava como um perigo terrível a ser evitado. Sim, é aquela apresentada por Montesquieu em 1748: cada um querer ser igual ao que escolheu e comandá-lo; deliberar em lugar do Senado, executar em lugar dos governos e despojar todos os juízes. Enfim, governar a si mesmo. Chamamos isso de Poder Popular. O Barão pira… existem outros que se inquietam.

Nota dos Editores:
[1] PCB – Partido Comunista Brasileiro
PSOL – Partido Socialista e Liberdade
PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado
PCO – Partido da Causa Operária

https://blogdaboitempo.com.br/2017/05/23/cai-nao-cai-mas-afina-o-que-deve-cair/

(Com odiario.info)

terça-feira, 23 de maio de 2017

Memorial da Resistência lança livro sobre história do imóvel que abriga o museu

                                                                                     

Evento acontece dentro da programação do Sábado Resistente, no dia 27 de maio, às 14h00, com entrada gratuita e terá participação da autora, Viviane Fecher, Ivan Seixas, Renan Quinalha e Inês Soares

No dia 27 de maio, o Memorial da Resistência, instituição da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, realizará mais uma edição do Sábado Resistente, projeto realizado em parceria com o Núcleo de Preservação da Memória Política. O evento acontece às 14h00, e terá lançamento do livro “Onde a humanidade vence a barbárie - histórias de vida e direitos humanos no Memorial da Resistência”, de Viviane Fecher.

A obra, que é fruto da dissertação de mestrado da autora, busca abordar aspectos da criação e implantação do Memorial da Resistência de São Paulo. Para tal, baseia-se em relatos de ex-presos políticos, que foram detidos ali quando o prédio era sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP), no período da ditadura civil-militar. Os mesmos ex-presos participaram, a partir de 2007, da transformação do espaço em um memorial.

O livro tem como objetivo a análise da relação entre a superação das violações de direitos humanos ali ocorridas com os esforços de reconstituição das experiências vividas pelos ex-presos no mesmo local.

PROGRAMAÇÃO
14h00 – Boas vindas – Kátia Felipini Neves (Memorial da Resistência de São Paulo)
14h10 – Coordenação – Ana Paula Brito (Núcleo de Preservação da Memória Política)
14h20 – Mesa Redonda
16h10 – Debate 

Mesa Redonda: 
Viviane Fecher é advogada e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília. Já recebeu uma indicação ao prêmio Jabuti, é coautora nas obras “Coleção Direitos Humanos”. Atuou na temática de Justiça de Transição no âmbito da Comissão de Anistia e na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.

Ivan Seixas é ex-preso político e conselheiro do Núcleo Memória. Foi coordenador da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Inês Virgínia Prado Soares é Procuradora Geral da República e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atua também como pesquisadora e co-lider do Grupo de Pesquisa Arqueologia da Resistência da Universidade de Campinas – Unicamp.

Renan Quinalha é advogado, ativista de direitos humanos, com mestrado e doutorado pela Universidade de São Paulo – USP, e autor do livro “Justiça de Transição: contornos do conceito”. É membro da diretoria do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST, do Conselho de Orientação Cultural do Memorial da Resistência e foi assessor da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. 


SERVIÇO
Memorial da Resistência de São Paulo
Endereço: Largo General Osório, 66 – Luz - Auditório Vitae – 5º andar
Telefone: (011) 3335-4990/ faleconosco@memorialdaresistenciasp.org.br
Aberto de quarta a segunda (fechado às terças)
Entrada Gratuita

Mais informações à imprensa
Memorial da Resistência de São Paulo
Kátia Felipini Neves (11) 3335.4990 | kneves@memorialdaresistenciasp.org.br

1917 - Quatro notas no centenário da Revolução Bolchevique


"A revolução bolchevique mudou radicalmente o destino da Rússia e do mundo. Cinquenta anos depois da publicação de O Capital, a Rússia convertia-se numa referência global, e a revolução levou o país a ser uma das duas superpotências mundiais."


 Higinio Polo (*)    

Recordar a revolução bolchevique não é um exercício de nostalgia do passado mas um tempo de aposta no futuro, no socialismo e no carácter social que devem ter as forças produtivas. A revolução de 1917 foi o ponto de partida das novas lutas revolucionárias no mundo, e a sua contribuição para a construção do socialismo não desapareceu, porque o capitalismo não pode resolver os problemas da humanidade. Aqui reside o valor da revolução bolchevique e da visão de Lénine.

1. 1917 é uma data germinal, que pôs ante os olhos dos trabalhadores do mundo a certeza de que acabar com o capitalismo e construir o socialismo é possível. Nessa data termina o velho mundo burguês que tinha ensanguentado o planeta no século XIX e inicia-se uma nova era, onde a união operária e socialista criada pela revolução bolchevique enfrentará o projecto de modernidade capitalista que foi o nazismo. A revolução bolchevique mudou radicalmente o destino da Rússia e do mundo. Cinquenta anos depois da publicação de O Capital, a Rússia convertia-se numa referência global, e a revolução levou o país a ser uma das duas superpotências mundiais.

O empenho da direita liberal em rebaixar a revolução bolchevique a uma espécie de «golpe de Estado» não tem qualquer credibilidade, para além da utilidade propagandística para a direita, nem resiste à prova dos factos: a revolução de Outubro contou com um impressionante apoio popular que, começando em Petrogrado, percorreu toda a geografia russa, num clima revolucionário onde milhões de trabalhadores, soldados e camponeses se organizavam e se reconheciam nos sovietes. Essa revolução pôs a igualdade entre os seres humanos no centro dos objectivos políticos e das questões universais, pôs mãos à obra na construção de uma sociedade sem classes, no tempo em que eram visíveis as multidões operárias nos combates políticos do século XX.

Também não foi um banho de sangue: esquece-se com frequência, mas a revolução bolchevique apenas causou seis mortos, e foi a intervenção imperialista em ajuda dos restos do czarismo que fez rebentar a guerra civil posterior que causou uma mortandade que superou a da grande guerra. 

Se de 1914 a 1917 a Rússia sofreu entre dois e quatro milhões de mortos, aquela agressão das potências capitalistas à Rússia revolucionária, depois do fim da guerra, causou mais oito milhões de mortos, por causa dos combates, da destruição das colheitas e da fome. Sobrepor-se a essa situação, reconstruir o país, foi uma tarefa de titãs, mas não seria para a Rússia a pior prova do século XX.

A revolução sofreu um ataque que nenhum outro país no século XX teve que suportar: do ataque dessas treze potências capitalistas (desde os Estados Unidos até à França, a Checoslováquia, a Grã-Bretanha, a Polónia, o Japão) que apoiaram os brancos czaristas na «guerra civil» dos anos vinte, passou-se às ameaças latentes de Londres e de Paris e, depois ao ataque da Alemanha nazi que abriu a Segunda Guerra Mundial onde a URSS perdeu vinte e sete milhões de cidadãos.

É costume dar pouca atenção ao que implicou administrar um país que tinha perdido quase quarenta milhões de pessoas num período de trinta anos, e pô-la à cabeça do desenvolvimento no mundo posterior à guerra de Hitler. Além disso, no pós-guerra, quando quase não se tinha iniciado a reconstrução, teve logo que enfrentar a pressão ocidental derivada da doutrina Truman que deu início à guerra-fria.

Depois do «comunismo de guerra» e da NEP, Outubro começou a planificação estatal da economia, impugnando o monopólio burguês que tinha conquistado todos os países. No plano interno, estabeleceu-se a jornada laboral de oito horas, que ficaria posteriormente reduzida a sete horas, asseguraram-se as leis para a igualdade entre homens e mulheres; eliminou-se o analfabetismo; criou-se o primeiro sistema sanitário público e gratuito do mundo, a reforma aos sessenta anos para homens e mulheres, um sistema universal de pensões, garantiram-se por lei vinte meses de baixa por maternidade, e a segurança no trabalho fez com que os trabalhadores não temessem o desemprego, ao mesmo tempo que dispunham de casas cedidas pelo Estado, e tantas conquistas sociais que aqui não podem ser detalhadas. 

A União Soviética pôs sempre a solidariedade entre os povos, o internacionalismo, como um dos seus fundamentos, e nunca teve uma política agressiva contra o Ocidente. Essa mentira, repetida e amplificada pela propaganda, teve como objectivo estender o medo entre as populações dos países capitalistas e disciplinar os aliados europeus dos Estados Unidos à volta da NATO, o novo instrumento de intervenção imperialista.

Outubro converteu um país atrasado numa potência industrial e científica em poucos anos, ainda que acompanhada de uma dura repressão de Estaline. O primeiro estado socialista da história teve como conceitos definitórios o trabalho e a função determinante da classe operária na sociedade; a amizade e a solidariedade entre os povos, o internacionalismo, a justiça social, a cultura e o progresso científico, a rejeição do nacionalismo e da opressão. 

Houve também traços negativos: a dura repressão política (filha do temor nascido da guerra civil, do acosso militar posterior, da agressão nazi e, secundariamente, das lutas internas de poder), o medo ante os órgãos do Estado, as evidentes insuficiências democráticas, e a ineficácia ligada à burocratização e aos focos de corrupção, bem como o aparecimento de sinais de irresponsabilidade e à negligência no trabalho que, não obstante, não invalidam como pretende a direita o conjunto da experiência soviética. 

Os laboratórios ideológicos do liberalismo continuam a colocar a ênfase na repressão, ainda que aludam aos mortos causados pela revolução bolchevique e o estado socialista, costumam ocultar a enorme mortandade causada pelo capitalismo tanto na expansão colonial do século XIX, como ao longo do século XX. E as matanças não pararam com o século XXI: aí está o caos do Médio Oriente provocado pelas agressões e guerras dirigidas pelos Estados Unidos.

O mundo não é melhor sem a URSS: nem sequer a ameaça atómica desapareceu, apesar dos supostos «dividendos da paz» que o neoliberalismo prometeu. Nem sequer se reduziram os perigos da guerra: de acordo como o SIPRI [1], o comércio mundial de armas está no ponto mais quente desde o fim da guerra-fria, e o caos criado pelos Estados Unidos no Médio Oriente é uma causa evidente disso, juntamente com a desconfiança pelos propósitos de Washington. 

Desde logo, o mundo não é melhor para os habitantes do antigo espaço soviético, como o evidenciam todas as sondagens, apesar de um quarto de século de veneno nacionalista ter feito aflorar os traços mais desprezíveis do ser humano em muitos territórios. Como na Ucrânia, onde os grupos paramilitares fascistas percorrem desafiantes as ruas.

2. O caminho aberto por Outubro de 1917 termina abruptamente quando se arreou a bandeira no último dia do triste ano de 1991, enquanto Yeltsin e os seus comparsas se emborrachavam nas estâncias do Kremlin. A reforma iniciada por Gorbatchov, saudada com entusiasmo porque prometia a renovação e o «retorno a Lenine», derivou numa desordem económica e organizativa que, longe de resolver os problemas da União Soviética, os agudizou, fazendo aparecer a escassez e alimentando nacionalismos destruidores e reaccionários.

Depois das vacilações e dos graves erros de Gorbatchov, foram os próprios dirigentes do país, com Yeltsin á cabeça, juntamente com a ambição de personagens como o ucraniano Leonid Kravchuk, o bielorrusso Stanislav Shushkiévich, seguidos pelo uzbeque Islom Karimov, o cazaque Nursultán Nazarbáyev, e o azeri Gueidar Aliev, entre outros, que se lançaram na destruição do país. O Tratado de Belavezha, subscrito por Yeltsin, Kravchuk e Shushkiévich em 8 de Dezembro de 1991, violou a Constituição soviética e desrespeitou a vontade da população, que se tinha pronunciado em referendo de Março de 1991 rejeitando a divisão da URSS, e impôs a destruição do país, oculta com a roupagem da CEI, uma ficção apressadamente criada para encobrir o medo ao vazio. Destruíram também o COMECON e o Pacto de Varsóvia.

A destruição não era uma inevitabilidade, como continua a manter a doutrina liberal. As reformas necessárias na URSS eram possíveis, mas o projecto gorbachoviano apenas conseguiu gerar o descontentamento e o caos. A paralisia política de Gorbatchov na sua etapa final e o estímulo à divisão impulsionado por Yeltsin, Kratchuk e Susshkiévich só podem qualificar-se como traição ao seu próprio país: a retórica nacionalista chegou depois, com o objectivo de consolidar o seu próprio poder em todas as repúblicas órfãs da URSS.

É certo que já tinham aparecido algumas reclamações nacionalistas na Arménia e no Báltico, ainda que essas tensões nacionalistas na Arménia e nas três repúblicas do Báltico tivessem sido estimuladas por dirigentes como Alexander Yakovlev, enquanto no Cáucaso a incompetência governamental permitiu também o crescimento nacionalista: na Geórgia, o conservador e ditatorial Zviad Gamsajurdia pôde alcançar a presidência, graças à negligência e à falta de iniciativa de Edvard Shevardnadze. 

No Azerbaijão, o traidor e trânsfuga Gueidar Aliev apressou-se a apoderar-se de todos os recursos do poder. Na Arménia, onde existia uma forte consciência nacional, rebentou uma dinâmica de guerra com o Azerbaijão depois da escalada de tensão que teve a sua origem na matança de Sumgaít, onde bandos de azeris atacaram a população arménia, assassinando dezenas de pessoas, numa confusa provocação de que ainda hoje se desconhecem os seus inspiradores. 

A guerra civil entre arménios e azeris fez o resto: durou três anos, e as feridas ainda não sararam passados que foram vinte e cinco anos. Nas cinco repúblicas soviéticas da Ásia central, onde não havia reclamações nacionalistas, os dirigentes apressaram-se a proclamar a independência depois de se conjurarem para a assinatura do Tratado de Belavezha. No seu conjunto, as guerras e conflitos que então se iniciaram (na Moldávia e na Chechénia, em Nagorno-Karabaj e na Ossétia, no Cáucaso e na Ásia central), causaram a morte de centenas de milhares de pessoas.

Os Estados Unidos olharam com bonomia as ditaduras criadas em muitas das antigas repúblicas soviéticas, fecharam os olhos à corrupção, à repressão política e aos traços grotescos dos novos regimes, que vão desde a corrida ao dinheiro das filhas de Karimov, até à nomeação de Dariga Nazarbayeva, filha do ditador Nazarbayev, como vice-primeira ministro do Cazaquistão; passando pelo filho de Aliev, Ilham Aliev, convertido em novo ditador que, por sua vez, acaba de nomear sua mulher, Mehribian Alieva, vice-presidente do país.

À incompetência e ao oportunismo dos convertidos e trânsfugas que iniciaram a fuga em frente na busca da consolidação do seu próprio poder, juntam-se muitas provocações, a maioria das quais continuam sem clarificação. Conhecemos algumas, como o massacre da torre da televisão em Vilna, capital lituana, em Janeiro de 1991: ali, ocorreu uma matança de catorze pessoas que comoveu o mundo, enquanto as chancelarias e a imprensa internacional acusavam o exército e o governo soviéticos. 

No entanto, sabemo-lo agora, foi um massacre provocado pelos nacionalistas de Sajudis [2] e pelo próprio governo nacionalista lituano, cujos pistoleiros dispararam contra os seus próprios seguidores, para acusar a União Soviética e precipitar a independência. Tudo isto foi reconhecido anos depois por Audrius Butkevicius, então chefe militar do governo lituano. Não foi a primeira nem seria a última mentira: em 2008, quando o governo georgiano de Míjeil Saakashvili (um oculto agente da CIA que confiava que a sua aventura seria amparada por Washington e a NATO) lança uma provocadora ofensiva militar sobre a Ossétia do sul, acontecimento que originou uma breve guerra com a Rússia, noticiada na CNN acompanhada de imagens de tanques georgianos como se fossem russos, ao mesmo tempo que a destruição causada pelos bombardeamentos da Geórgia na Ossétia era apresentada como se fossem os efeitos de ataques russos na cidade de Gori, onde se passou muito mais do que notícias desvirtuadas. 

Depois de tudo, esses partidários da mentira têm consumados professores em Washington, um dos quais foi o secretário de Estado Colin Powell que, em 5 de Fevereiro de 2003, chegou a agitar um tubo que dizia poder conter antrax, perante os olhares atónitos dos membros do Conselho de Segurança; a quem também mostrou diapositivos que, segundo o governo norte-americano de Bush, demonstravam que o Iraque tinha «armas de destruição massiva». Era tudo mentira.

É uso recorrer-se à acusação de «teorias conspiratórias da história» para desactivar algumas nefastas evidências. No entanto, as coisas são mais simples e, ao mesmo tempo, mais complexas: todas as potências internacionais defendem os seus interesses e os seus projectos e utilizam para isso todo o tipo de recursos, da diplomacia à pressão política. Muitas recorrem à mentira, às provocações e à organização de grupos terroristas e, nesse tipo de acções, os Estados Unidos e os seus aliados dão cartas.

Sabemos hoje, por exemplo, que os serviços secretos norte-americanos trabalharam desde Bacu e com a cumplicidade de Aliev para incendiar a Chechénia e criar novos focos de conflito no Cáucaso, e não renunciaram a continuar futuramente a jogar essa cartada. Washington não só conserva em seu poder a capacidade de reactivar conflitos no sul da Rússia, como move os seus peões na Ásia central para dificultar um hipotético reagrupamento das velhas repúblicas soviéticas em torno de Moscovo. Por vezes, basta chegar lume à mecha, e as guerras tomam logo dinâmica própria.

Os problemas que a Rússia enfrentava no final da década de oitenta (devido à incompetência dos governos de Gorbatchov, que os agravaram com projectos e iniciativas que criaram graves disfunções na economia soviética) eram uma brincadeira se comparados com o desastre apocalíptico que chegou na década de noventa, sob a direcção de Yeltsin, Chubais, Gaidar e Chernomirdin (assessorados pelo governo norte-americano, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e peritos estado-unidenses), que destruiu a economia, colonizou a estrutura do Estado e, de acordo com diversas investigações, provocou uma atroz mortandade entre a população soviética: só na Rússia (que contava com metade dos habitantes da URSS), a investigação de David Stucker, da Universidade de Oxford, de Lawrence King da Universidade de Cambridge e Martin McKee da London School of Hygiene and Tropical Medicine, publicada pela revista médica Lancet, chegou á conclusão que a terapia de choque de Yeltsin tinha causado um milhão de mortos. 

Aquele delirante programa foi possível graças ao golpe de estado de 1993, que causou uma matança em Moscovo e noutras cidades, e que contou com o apoio do Ocidente, que amparou uma espécie de via militar para o capitalismo. A destruição da URSS permitiu às novas elites surgidas da confusão gorbatchoviana e aos seus comparsas apoderarem-se das propriedades públicas e garantir o seu poder em todas as repúblicas.

O golpe de Estado de Yeltsin em 1993, abençoado por Clinton, Major, Khol e Mitterrand, numa irresponsável e delirante operação, levou quase à destruição da própria Rússia como afirma a própria Helène Carrère d’Encausse. Na opinião do Partido Comunista russo, vinte e cinco anos depois do desaparecimento da URSS, as suas consequências continuam por superar. A privatização da economia, levada a cabo por delinquentes, destruiu milhares de empresas e aglomerados industriais, tornou possível que a maior parte da riqueza soviética, quer na Rússia quer nas outras repúblicas, esteja hoje em mãos privadas.

3. Putin representa hoje a nova direita conservadora russa, patriota, de complexa significação: por um lado utiliza os orçamentos públicos e os recursos do país para o seu próprio enriquecimento, criando uma oligarquia obscenamente rica, ao mesmo tempo que se degradam as condições de trabalho, o direito à habitação, à saúde e à educação dos cidadãos; por outro, deteve a destruição do país e iniciou a sua reconstrução, afastando o fantasma da destruição da própria Rússia (objectivo a que não renunciaram os estrategos do Pentágono e dos serviços secretos norte-americanos). 

Na política interna, Putin não teve dúvidas em aplicar programas neoliberais que prejudicam os trabalhadores e a maioria da população. E ainda que não desistam de privatizar, mantêm importantes áreas de propriedade públicas: o Partido Comunista russo criticava em Fevereiro de 2017 a tentativa do governo de Médvedev de privatizar quase oitocentas empresas de propriedade pública. Putin é um exemplo mais desses dirigentes que fizeram da política e do exercício do poder o centro da sua existência, personagens que se adaptam a qualquer época e que se sustentam em complexos equilíbrios sempre que isso lhes permita manter-se no poder.

Se bem que a sua política externa procure recuperar o protagonismo perdido, não está no centro das suas preocupações combater o imperialismo norte-americano, embora esteja consciente que este, por trás das sangrentas aventuras de Washington no Afeganistão, no Iraque e na Líbia e a expansão da NATO, ameaça as fronteiras da própria Rússia, e enfrente os propósitos imperialistas norte-americanos na Síria, ao mesmo tempo que alinhava uma aliança estratégica com a China, cujo objectivo é limitar o poder estado-unidense no mundo. 

Uma parte da esquerda pouco prudente, que se alimenta de esquemáticas análises sem matizes, chegou a equiparar a política externa russa com a norte-americana, aludindo a um suposto imperialismo comum, ainda que em confronto, esquecendo que enquanto Washington tem mais de setecentas bases militares nuns cento e vinte países do planeta, Moscovo só tem uma base no exterior. Outra parte confunde Putin com um dirigente comunista.

O partido de Putin, Rússia Unida, navega entre a complexidade e a ambiguidade: o seu nacionalismo leva-o a assumir com orgulho a condição de superpotência da URSS mas, ao mesmo tempo, rejeita que o desenvolvimento e o fortalecimento do país fosse consequência da revolução bolchevique de 1917 e do socialismo. 

Enquanto Putin continua a trabalhar para limitar a influência comunista no país (as suas agências de inteligência criaram nos últimos anos três partidos «comunistas» para atacar em força o Partido Comunista dirigido Guennadi Ziuganóv), tem muito cuidado para não atacar o frontalmente o socialismo soviético (ao contrário do que acontecia nos anos de Yeltsin), como conhecedor que é das simpatias que o comunismo continua a conservar entre os russos. 

A revolução bolchevique e o socialismo, a par dos traços negativos que desenvolveu, continuam a ser defendidos pelos trabalhadores: a última sondagem realizada por Levada Center entre a população russa, no final de Janeiro de 1917, revela que a maioria dos cidadãos tem boa opinião de Brejnev e Estaline e, ainda que 22% rejeite a figura do georgiano, apenas 9% têm má opinião do Brejnev, e o apoio ao socialismo é amplamente maioritário, até ao ponto de quererem o regresso da União Soviética. Contraditoriamente, também Putin mantém uma considerável aprovação que, indubitavelmente, é devida ao facto de ele ter acabado com a criminalidade mafiosa nas ruas durante os anos de Yeltsin, e ao seu novo protagonismo que traz peso internacional ao país.

Putin navega entre duas águas: recuperou o hino soviético, o desfile da vitória sobre o nazismo, mantém a bandeira vermelha com a foice e o martelo no exército, enquanto tenta desenvolver uma nova imagem russa, simbolizada na bandeira tricolor, tudo isto sem esquecer que, agora, está previsto dedicar uma rua e erigir um monumento a Fidel Castro; mas também assiste aos ritos da igreja ortodoxa, mantém excelentes relações com o patriarca Kiril, e viu com agrado o município de Moscovo erigir uma estátua ao rival de Napoleão, o czar Alexandre I, muito perto do jardim das muralhas do Kremlin, onde são recordadas as cidades heróicas da resistência contra os nazis durante a Segunda Guerra Mundial; bem como um monumento, também junto ao Kremlin, dedicado ao príncipe Vladimir, como «reunificador das terras russas», gestos, todos eles, dirigidos ao enaltecimento do orgulho nacional. 

A nova Rússia não pôde recuperar toda a influência que a URSS exerceu no plano internacional e, ainda que desde a intervenção de Putin na Conferência de Munique de 2007 o seu governo tenha levantado a voz para denunciar a expansão norte-americana para as suas fronteiras, não conseguiu evitar o golpe de Estado em Kiev, nem o perigoso foco de guerra de Donbáss nas suas fronteiras, nem a chegada das forças da NATO à Ucrânia: a recuperação da Crimeia é apenas um prémio de consolação, apesar de ter fortalecido o seu prestígio entre os russos. Ao mesmo tempo, Putin está consciente que o potencial militar russo não é comparável ao soviético, mas conserva uma importante parte do seu poder de dissuasão, graças ao arsenal atómico herdado da URSS, que o governo de Médvedev está a renovar.

São diversos os traços que caracterizam as outras antigas repúblicas soviéticas, e vão desde a existência de uma suposta democracia na Estónia, Letónia e Lituânia, que convivem com a marginalização e a falta de respeito pelos direitos cívicos dos russos ali residentes, a complacência para com os nacionalismos sectários, os grupos nostálgicos do nazismo, até às satrapias do Turquemenistão, Uzbequistão e Cazaquistão, já para não falar da extrema-direita que se apoderou do governo da Ucrânia. Por sua vez, momentaneamente os antigos países socialistas europeus estão convertidos em redutos da direita nacionalista e da ultradireita: da Polónia à Hungria passando pela Roménia, Bulgária e, inclusive a República Checa ou a Eslováquia apresentam inquietantes traços xenófobos, de extrema-direita ou mesmo fascistas.

A União Soviética foi uma referência e um incentivo para o movimento operário mundial, e o ataque às conquistas sociais foi possível em muitas regiões do planeta, também pelo desaparecimento da URSS.

 Ainda que já se tivesse iniciado o ataque sistemático do neoliberalismo contra os direitos dos trabalhadores, a ausência a URSS estimulou a revanche: o incremento da exploração, a redução dos salários, o aumento da idade da reforma, a perda de direitos na saúde, na educação, a precarização do trabalho, o aumento arbitrário dos horários laborais, a perda de pensões foi a mão de um ambicioso projecto de dominação que os Estados Unidos lançaram em muitas regiões do planeta, desde as guerras na Jugoslávia até à criação do Kosovo, as guerras no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria e o golpe-de-estado na Ucrânia, isto para citar apenas os mais graves, tal como o acantonamento de novas tropas da NATO e a deslocação do seu escudo antimísseis, bem como o seu programa de contenção da China, agora considerado o novo inimigo global. 

Esse projecto de dominação, que Washington iniciou depois do desaparecimento da URSS, viu-se entorpecido por dois fenómenos imprevistos pelos seus centros de investigação e pela sua diplomacia: o impressionante fortalecimento chinês depois da sua entrada na OMC, e o novo papel exercido pela Rússia que, com Putin, deixou para trás a subordinação política dos anos de Yeltsin e Kozirev.

4. Uma parte da esquerda social-democrata ou esquerdista celebrou como uma vitória o desaparecimento da União Soviética, evidenciando uma enorme miopia política e uma falta de perspectiva estratégica, que a catástrofe humana com os milhões de mortos causados pelas reformas capitalistas em todo o antigo bloco socialista europeu, não os fez rever. Tampouco os retrocessos posteriores dos direitos sociais no mundo ocidental os levaram a interrogar-se sobre os efeitos da ausência soviética.

A destruição da URSS debilitou os partidos comunistas em todo o mundo, ainda que não deva perder-se de vista que a maior organização política do mundo tem essa ideologia: o Partido Comunista Chinês, e que existem relevantes partidos da mesma tendência em todos os continentes que se proclamam filhos da revolução de Outubro. Ao mesmo tempo, para sua surpresa, danificou os partidos social-democratas, cuja cumplicidade com as políticas neoliberais (da França à Grécia, da Espanha à Itália, da Venezuela à Grã-Bretanha) do último quarto de século os levou a uma crise que pode ser terminal.

5. Nestes vinte e cinco anos transcorridos desde o eclipse da URSS, as propostas e a acção do governo dos defensores do capitalismo basearam-se no aniquilamento do chamado Estado de Bem-Estar, nos despedimentos arbitrários de trabalhadores, na precarização do trabalho, na redução unilateral dos salários, no ataque à instrução pública, na tentativa de eliminação dos sistemas públicos de saúde e de pensões pagas pelo Estado; e a esquerda e os sindicatos foram incapazes (apesar das muito honrosas lutas e resistências) de fazer frente a esse programa de devastação da dignidade humana e da confiança num mundo mais justo.

Os laboratórios ideológicos do neoliberalismo tentaram destruir o orgulho e a consciência operária, marcar a fogo os trabalhadores, toscos e grosseiros habitantes da periferia do sistema; pretenderam enraizar a noção de que as ideias de esquerda, de socialismo, de comunismo são escabrosas recordações de um mundo que morreu, e que a modernidade reside na adaptação servil, no consumo do lixo ideológico escarrado por todos os écrans utilizados pelo sistema capitalista e todos os outros mecanismos de controlo da informação. 

Essa operação fez mossa na esquerda, que viu como se reduziam os seus militantes, como se apagava a memória histórica do movimento operário, como se declaravam obsoletos o marxismo e a luta de classes, se acusava a esquerda impotente para se actualizar, inclusive se declarava desaparecido o mundo operário de ontem (portanto a necessidade de sindicatos e partidos de esquerda), apesar da evidência de existirem mais trabalhadores fabris no mundo que noutro qualquer momento da história.

Os problemas da esquerda já vêm de longe. Achille Ochetto, o artífice da volta della Bolognina que liquidou o Partido Comunista Italiano, afirmou então, com a ardilosa retórica dos que se atribuem sempre o novo para arrojarem os seus opositores para o inferno das ideias mortas da história, o poço escuro do passado obsoleto: «Não temos de continuar pelos velhos caminhos, mas inventar os novos para unificar as forças do progresso». 

Na realidade, limitaram-se a mudar para os velhos caminhos da submissão ao capitalismo que desembocaram nesse triste e impotente Partido Democrático. Desde então, na Europa apareceram partidos e movimentos que, de maneira confusa, pretendem articular as energias da esquerda, da oposição: desde o Syriza ao Podemos, desde o Movimento 5 Estrelas ao Die Linke, desde o efémero Partido Anticapitalista Francês aos verdes (ontem antagonistas, e hoje integrados), todas essas forças se movem no campo da moderação e do medo: são filhos da derrota, e revelam-se incapazes de romper o cordão umbilical com o capitalismo e, com excepção do Die Linke, de propor um horizonte socialista.

Uma opção é (nunca esquecendo o imprescindível trabalho político nas fábricas e nas empresas) articular amplos blocos sociais para lutarem nas ruas, nas eleições e nos parlamentos, outra muito diferente é apostar na criação de partidos vagamente de esquerda que renunciem a combater pelo socialismo. Porque a miragem que, novamente, se agita perante o rosto dos trabalhadores e dos excluídos, é a de a de voltar a construir uma esquerda tímida, dócil, que renuncie ao socialismo, resignada perante o poder capitalista. Além disso, essa nova e limitada esquerda revela-se incapaz de atrair os trabalhadores que, num mundo cheio de incertezas, sucumbem com frequência aos populismos demagógicos que articulam o discurso da extrema-direita.

Há uma evidência que se impõe: para o conjunto da humanidade, o capitalismo foi incapaz de resolver os seus problemas, os de acumulação e de expansão depredadora e sem limites que pôs o planeta á beira da catástrofe. No entanto, o rebentar da crise criou miragens para uma assinalável parte da população e dos trabalhadores: legiões de cidadãos esperam que a pior parte das dentadas das crises os não afecte, e reagem politicamente perante o medo de perder tudo, perante as novas migrações causadas pelas guerras coloniais, refugiando-se no ninho de víboras da nova extrema-direita, que lhes oferece um regresso à velha segurança, aos estados nacionais, a ilusórias fortalezas onde resistem à chegada de outros trabalhadores mais pobres e a refugiados das guerras. 

Além disso, essa extrema-direita lança as suas propostas (de Le Pen a Trump, de Ksczsiski a Orbán, de Petry a Wilders), por vezes envolvidas numa retórica que, sem hipocrisia, chega inclusive a parecer «progressista», e reclamam protecção para as indústrias nacionais, olhando-se no espelho dos anos trinta do século XX, sem verem que aquele programa trouxe duras lutas comerciais, novas aventuras coloniais e, por fim, a guerra. As instituições europeias, com a social-democracia e esses novos e vagos movimentos de esquerda revelam-se impotentes para fazerem frente à extrema-direita, mas face ao perigo do novo fascismo é urgente opor um bloco social, como o que levantaram os partidos comunistas entre as duas guerras em muitos países da Europa.

Não é possível reformar o capitalismo, e as opções que se empenham em passar para caminhos dessa natureza, que recuperam velhos esquemas social-democratas estão no caminho do fracasso. A direita pretende, em todos os países, fazer retroceder os direitos dos trabalhadores, privatizar as propriedades públicas, acabar com a saúde e a educação gratuitas, converter os reformados em reféns das companhias de seguros e entidades financeiras. E isso não se combate com tímidas ideias reformistas.

O drama da esquerda, bem presente na Europa, mas também noutros continentes, é que, apesar de estar consciente da impossibilidade da reforma do capitalismo, fica paralisada para propor vias socialistas, devido à pressão do poder e aos meios de comunicação. A democracia representativa burguesa e o parlamentarismo mostraram os seus limites, e o movimento operário e os novos movimentos sociais devem recuperar a acção nas fábricas e incrementar a presença dos trabalhadores na luta das ruas.

A história não é como a esperávamos, mas recordar a revolução bolchevique não é um exercício de nostalgia do passado, mas um tempo de aposta no futuro, o socialismo e o carácter social que devem ter as forças produtivas devem estar no centro das preocupações da esquerda. O novo horizonte dos filhos da revolução bolchevique deve desenvolver, juntamente com a propriedade pública dos meios de produção, quatro aspectos essenciais: a libertação da mulher, a ampliação da democracia e da liberdade, uma justa distribuição do trabalho e do bem-estar no mundo e a catástrofe ecológica.

A revolução bolchevique de 1917 foi o ponto de partida das novas lutas revolucionárias no mundo, e a sua contribuição para a construção do socialismo não desapareceu, porque o capitalismo não pode resolver os problemas da humanidade, e aqui reside o valor da revolução bolchevique e da visão de Lenine. Essa revolução, mil vezes enterrada, acusada de carências democráticas e libertárias, criadora do país símbolo da vitória contra o nazismo que o fez vítima da matança mais cruel da história; artífice do único país que durante décadas enfrentou solitário o imperialismo ocidental; estímulo de novas revoluções no mundo e sustentáculo da luta anticolonial, continua a fornecer o fermento da revolta, porque, apesar de tudo, o legado bolchevique continua vivo, e a escolha continua a ser entre socialismo ou barbárie.

Notas do Tradutor:
[1] Trata-se da sigla inglesa do Stockolm International Peace Research Institute
[2] Movimento Reformador Lituano, que dirigiu os acontecimentos que levaram à independência da Lituânia, e que mais tarde se transformou em partido político. Dissolveu-se depois de 1993, dando origem a outros partidos reaccionários.
[3] O «giro della Bolignina», considerado o primeiro passo para a passagem do Partido Comunista Italiano (partido revisionista dito eurocomunista) no Partido Democrático, foi apresentado por Achille Ochetto, de surpresa, no 45º aniversário da batalha da Porta Lame em 12 de Novembro de 1989.

(*) Higino Polo, publicista e historiador é colaborador habitual de El Viejo Topo

Este artigo foi publicado em nº 351 (Abril de 2017) de El Viejo Topo e reproduzido em http://www.lahaine.org/mundo.php/1917-cuatro-notas-en-el

Tradução de José Paulo Gascão

(Com o diario.info)

Fim do governo Temer (por Paulo Nassif)

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Intensificar as lutas nas ruas, derrubar Temer, derrotar as reformas e construir um programa alternativo para o Brasil!

                                           

O Partido Comunista Brasileiro (PCB) convoca os trabalhadores, a juventude e o proletariado em geral a intensificar a luta nas ruas, nos locais de trabalho e estudo, inclusive se utilizando da desobediência civil, com o objetivo de derrubar o governo usurpador, anular o ajuste fiscal, as reformas da previdência e trabalhista, a reforma do ensino médio e as privatizações, além de todos os atos do governo ilegítimo e construir uma alternativa para o país baseada nos interesses populares. As recentes revelações dos áudios e da delação premiada dos donos da JBS, maior produtora de proteína animal no mundo, revelam, mais uma vez, de maneira cristalina, a podridão do nosso sistema político baseado nos interesses capitalistas.

No entanto, a crise brasileira é muito mais profunda, em função da crise sistêmica capitalista global, da falência do ciclo dos governos de conciliação de classes, além da recessão e do desemprego. Hoje, no Brasil, há mais de 22 milhões de desempregados, cortes nos investimentos sociais e aumento da violência urbana.

O bloco burguês está em crise profunda, fracionado em disputas internas econômicas e políticas. Diante disso, os monopólios mais poderosos, frente ao grande crescimento da resistência unitária contra as reformas antipopulares da burguesia, pretende descartar a quadrilha de Michel Temer, até então apoiada e financiada pelo grande capital e repactuar uma nova saída diante da crise, para garantir seus interesses e retomar as taxas de lucro. Essa crise no bloco burguês não pode ser menosprezada. Há disputas internas na Operação Lava Jato, e políticos profissionais do parlamento brasileiro lutam pela manutenção dos seus privilégios sistêmicos.

A crise revela a grande podridão da democracia burguesa no Brasil, assim como a ilegitimidade não só de um governo golpista, mas de um parlamento corrupto e degenerado. Os reais interesses da burguesia brasileira e seus lacaios são os de promover, através de manipulação, corrupção e acordos de cúpula, uma saída política para acelerar as reformas antipopulares contra os direitos dos trabalhadores, inserir mais subalternamente a economia brasileira no mercado mundial e intensificar a dominação imperialista no Brasil. 

A Rede Globo é a grande porta-voz desse terrível projeto para os trabalhadores brasileiros e por isso aposta numa saída mais rápida e negociada através das eleições indiretas para presidente, através do ilegítimo parlamento brasileiro. Mais uma vez, para assegurar os lucros da acumulação capitalista no Brasil, a classe dominante brasileira não se furta em se utilizar de mecanismos antidemocráticos e excludentes sob uma roupagem de legalidade.

Portanto, nesse momento, nossa tarefa é intensificar as lutas para bloquear a repactuação burguesa. Não é demais lembrar que, devido à correlação de forças, qualquer governo que se instale agora, em Brasília, apoiado pelos grandes monopólios, mesmo que eleito a partir das regras da institucionalidade, vai dar continuidade às chamadas reformas, ao ajuste fiscal, ao desmonte dos direitos e garantias dos trabalhadores, porque essa é estratégia e a necessidade da burguesia para manter seus lucros. Por isso, não podemos deslocar as lutas populares unitárias em ascensão para o terreno da institucionalidade burguesa, como campo prioritário. O PCB defende a mais ampla unidade dos trabalhadores contra as reformas antipopulares da burguesia. Esta luta não pode ser secundarizada.

Há uma enorme insatisfação na sociedade contra a recessão, o desemprego e a corrupção. Devemos transformar essa insatisfação em luta organizada. Defendemos, conjuntamente com os setores mais avançados do movimento operário e popular, a criação de comitês populares nos locais de trabalho, estudo e moradia contra as reformas antipopulares. Devemos impulsionar a luta pela retomada das entidades dos trabalhadores e da juventude para as lutas, o fortalecimento de espaços de unidade do movimento sindical combativo e da esquerda socialista.

Além disso, de qualquer forma, não se pode desconhecer que há um clamor entre expressivos setores da sociedade e, especialmente, entre os companheiros da esquerda, pelas “eleições diretas já”, como saída para a crise. É compreensível a ansiedade e o desejo de se livrar do governo usurpador. Como lutadores históricos pela unidade popular, estaremos em todas as batalhas pelas mudanças no país e lutaremos ombro a ombro com os companheiros que defendem as “eleições diretas já”, a fim de mantermos a frente única contra Temer e as contrarreformas. Para os comunistas do PCB, não devemos alimentar mais ilusões com a democracia burguesa. A corrupção é endêmica ao capitalismo, e as eleições burguesas refletem a desigualdade econômica e social.

A legítima pressão do movimento de massas não pode ser acrítica a esta questão central, nem muito menos secundarizar a luta contra as reformas antipopulares para exaltar uma nova candidatura pró conciliação de classes. Reconhecemos a proposta de eleições gerais já como uma mediação, face à grande podridão e ilegitimidade do governo usurpador e do degenerado parlamento brasileiro, mas, principalmente, como um mecanismo para aprofundarmos as contradições e disputas interburguesas que abominam qualquer sopro de participação popular. Apesar de reconhecermos a legitimidade desta proposta, para os comunistas do PCB não há solução e saída definitivas para crise brasileira, no que diz respeito aos interesses dos trabalhadores, através das eleições burguesas. Devemos aprofundar as lutas e a organização dos trabalhadores na perspectiva do poder popular, independente da burguesia.

Nesse momento de ascenso do movimento popular, é necessário centrarmos a nossa luta  para mudar a correlação de forças e elevarmos o moral das forças populares. É fundamental colocarmos todos os esforços para realizar uma poderosa manifestação e ocupar Brasília no dia 24 de maio, não reconhecer, desde já, mais nenhum ato administrativo desse Governo, derrotar as políticas neoliberais e as privatizações e construir em todo o país os Comitês Populares Contra as Reformas e o Governo Temer. Mas só isso não basta. É necessária uma nova greve geral, mais ampla e massiva que a greve anterior, e a construção, pelas forças populares, de um programa socialista para o Brasil.

O PCB acredita que a maior força da classe trabalhadora é sua luta organizada. Chegou a hora de os setores populares construírem seu próprio programa para sair da crise. Nesse sentido, propomos a realização de um Encontro Nacional do Movimento Sindical e Popular, para iniciarmos o processo de reorganização do movimento operário e popular, organizarmos um fórum permanente de mobilização dos trabalhadores e produzirmos um programa mínimo das forças populares, capaz de fazer a disputa com o projeto da burguesia e se transformar em referência  política e orgânica para a nossa classe, a juventude e o povo pobre dos bairros, rumo à construção do poder popular e do socialismo no Brasil.

Greve Geral contra Temer e as Reformas antipopulares!

Construção dos comitês populares contra as Reformas Antipopulares!

Estatização sob controle popular das Empresas Corruptoras !

Expropriação dos bens e prisão dos corruptos e corruptores!

Comissão Política Nacional do PCB