Daniel Kondo |
Sérgio Wulff Gobetti e Rodrigo Octávio Orair
Dados revelam que o Brasil é um país de extrema desigualdade e também um paraíso tributário para os super-ricos, que combina baixo nível de tributação sobre aplicações financeiras, uma das mais elevadas taxas de juros do mundo e uma prática pouco comum de isentar a distribuição de dividendos de imposto de renda na pessoa.
O Brasil é um dos países que, por falta de suficiente transparência fiscal, ficaram de fora do estudo dos economistas Anthony Atkinson e Thomas Piketty, que fornece uma perspectiva global da concentração de renda no topo da distribuição com base nos dados das declarações do imposto de renda.1
Felizmente, em 2015 a Receita Federal do Brasil voltou a disponibilizar à sociedade informações mais detalhadas das declarações do imposto de renda, que nos permitem, por exemplo, identificar os brasileiros no topo da pirâmide social, cerca de 71 mil pessoas que correspondem ao meio milésimo mais rico (0,05% da população adulta) e ganharam em média R$ 4,1 milhões em 2013.
Com isso, o Brasil passará em breve a fazer parte dos estudos internacionais comparativos sobre concentração de renda. Os dados já analisados, do período de 2007 a 2013, permitem traçar um quadro preliminar, muito provavelmente sem paralelos em termos de benefícios tributários e concentração de renda no topo da pirâmide social:
1) A concentração de renda brasileira supera qualquer outro país com informações disponíveis. O décimo mais rico se apropria de metade da renda das famílias brasileiras (52%); o centésimo mais rico, algo próximo a um quarto (23,2%); e o milésimo mais rico chega a um décimo (10,6%), índices que ultrapassam os limites considerados toleráveis para as sociedades democráticas, segundo Piketty.2
Mas o que realmente chama a atenção é que o meio milésimo mais rico concentra 8,5% da renda, nível superior à Colômbia (5,4%), país extremamente desigual, quase três vezes maior do que no Uruguai (3,3%) e no Reino Unido (3,4%), e cinco vezes maior do que na Noruega (1,7%).
2) Os brasileiros super-ricos pagam menos imposto, em proporção da sua renda, do que um cidadão típico de classe média alta, sobretudo o assalariado, violando o princípio da progressividade tributária, segundo o qual o nível de tributação deve crescer com a renda.
Cerca de dois terços da renda dos super-ricos (meio milésimo da população) estão isentos de qualquer incidência tributária, proporção superior a qualquer outra faixa de rendimentos. O resultado é que a alíquota efetiva média paga pelos super-ricos chega a apenas 7%, enquanto a média nos estratos intermediários dos declarantes do imposto de renda chega a 12%.
3) Essa distorção se deve principalmente a uma peculiaridade da legislação brasileira: a isenção de lucros e dividendos distribuídos pelas empresas a seus sócios e acionistas. Dos 71 mil brasileiros super-ricos, cerca de 50 mil receberam dividendos em 2013 e não pagaram nenhum imposto por eles. Além disso, beneficiaram-se de uma baixa tributação sobre ganhos financeiros, que no Brasil varia entre 15% e 20%, enquanto os salários estão sujeitos a um imposto progressivo, cuja alíquota máxima de 27,5% atinge níveis bastante moderados de renda.
4) O potencial distributivo do imposto de renda no Brasil, medido em termos de queda no índice de Gini, é menor do que nos países mais desenvolvidos da América Latina, como México, Uruguai, Argentina e Chile, e bem inferior ao dos países europeus.
Em resumo, os dados revelam que o Brasil é um país de extrema desigualdade e também um paraíso tributário para os super-ricos, que combina baixo nível de tributação sobre aplicações financeiras, uma das mais elevadas taxas de juros do mundo e uma prática pouco comum de isentar a distribuição de dividendos de imposto de renda na pessoa física.
A justificativa para essa isenção é evitar que o lucro, já tributado ao nível da empresa, seja novamente taxado quando se converte em renda pessoal. Entre os 34 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne economias desenvolvidas e algumas em desenvolvimento que aceitam os princípios da democracia representativa e da economia de livre mercado, apenas três isentavam os dividendos até 2010.
O México retomou a taxação em 2014, e a Eslováquia instituiu em 2011 uma contribuição social para financiar a saúde. Restou somente a Estônia, pequeno país que adotou uma das reformas pró-mercado mais radicais do mundo, após o fim do domínio soviético nos anos 1990, e que, como o Brasil, concede total isenção tributária à principal fonte de renda dos mais ricos.
Em média, a tributação total do lucro (somando pessoa jurídica e pessoa física) chega a 48% nos países da OCDE (sendo 64% na França, 48% na Alemanha e 57% nos Estados Unidos). No Brasil, com as isenções de dividendos e outros benefícios tributários, essa taxa cai abaixo de 30%.
A excentricidade brasileira, porém, não para por aí. O Brasil tem uma elevada carga tributária para os padrões das economias em desenvolvimento, por volta de 34% do PIB, equivalente à média dos países da OCDE. Ocorre que, diferentemente destes, nos quais a parcela da tributação que recai sobre bens e serviços é residual (cerca de um terço do total) e há maior peso da tributação sobre renda e patrimônio, cerca de metade da carga brasileira provém de tributos sobre bens e serviços, que, proporcionalmente, oneram mais a renda dos mais pobres.
Ou seja, os privilégios aos rendimentos da propriedade do capital, que tornam o imposto de renda no Brasil pouco redistributivo, são apenas um elemento de uma estrutura tributária global muito regressiva. Em termos históricos, a configuração de tal estrutura se insere em um movimento em escala global de reorientação da tributação a favor do capital e dos mais ricos, o que se repetiu em diferentes doses em praticamente todos os países desenvolvidos entre 1980 e 2010. Contudo, é interessante assinalar que nem os governos conservadores de Ronald Reagan e George W. Bush, nos Estados Unidos, e de Margaret Thatcher, no Reino Unido, conseguiram fazer o que o governo brasileiro fez em 1995, ao isentar completamente os lucros e dividendos.
E, enquanto o avanço conservador está sendo parcialmente revertido na maioria dos países da OCDE – que estão aumentando a taxação sobre os mais ricos, inclusive os dividendos, dentro de esforços de ajustes fiscais que não castiguem tanto os mais pobres –, no Brasil nenhuma reforma de fôlego visando ampliar a progressividade do sistema tributário foi realizada nos últimos trinta anos de democracia, dos quais doze sob o governo de centro-esquerda do Partido dos Trabalhadores.
Repensar essa questão e colocar em pauta a agenda da progressividade, já com certo atraso, é um dos grandes desafios colocados para o Brasil na atualidade. Infelizmente, a crise política tem cegado parte da classe média brasileira sobre os reais problemas do nosso sistema fiscal e econômico e redespertado sentimentos muito atrasados, que variam do saudosismo dos tempos da ditadura (período de elevada concentração de renda) à admiração acrítica pelos ideais ultraliberais de Reagan e Thatcher.
Felizmente, entretanto, os ventos do exterior sopram para outro lado, para uma visão mais equilibrada e crítica em torno do problema da desigualdade e da importância de os Estados-nação intervirem sobre ela. Esperemos que o campo progressista da sociedade brasileira tenha maturidade e força para se contrapor ao conservadorismo que tomou conta das entranhas do poder.
Sérgio Wulff Gobetti é doutor em Economia e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); e Rodrigo Octávio Orair é mestre em Economia e pesquisador do Ipea e do International Policy Centre for Inclusive Growth (IPC-IG).
Ilustração: Daniel Kondo
1 Anthony Barnes Atkinson e Thomas Piketty (eds.), Top incomes: A global perspective [Rendas top. Uma perspectiva global], Oxford University Press, 2010.
2 Thomas Piketty, O capital no século XXI, Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014.
(Com Le Monde Diplomatique/Diário Liberdade)
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