AMÉRICA LATINA |
O que mudou para as mulheres |
Há alguns anos, mulheres assumiram o comando do Estado no Chile, na Argentina, na Costa Rica e no Brasil. A emergência dessas figuras políticas de primeiro escalão sugere uma melhora – ainda que tímida – da condição das mulheres na América Latina. Mas esse processo poderá evoluir?
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Lamia Oualalou (*) |
(As presidentes do Brasil, Dilma Rousseff, e da Argentina, Cristina Kirchner, durante entrevista coletiva no Palácio do Planalto)
Nos últimos anos, quatro mulheres ocuparam a função política suprema em países da América Latina. Quando subiu ao poder na Argentina, em 2007, muitos meios de comunicação compararam Cristina Fernández de Kirchner com sua concidadã Isabel Martínez de Perón (a primeira mulher do mundo a tornar-se presidente, em 1974). Elas não seriam, antes de tudo, “mulheres de”: a primeira, esposa de Néstor Kirchner, presidente de 2003 a 2007; a segunda, viúva de Juan Domingo Perón, que esteve no poder entre 1946 e 1955, depois entre 1973 e 1974? Quatro anos depois, ninguém se aventura a essa comparação: em outubro de 2011, a presidente argentina se tornou a primeira mulher reeleita para presidir um Estado latino-americano – e com 54% dos votos no primeiro turno. Na Argentina, não se fala mais em “Cristina Kirchner”, como no início de seu primeiro mandato, e sim em “Cristina Fernández”, seu nome de solteira. A Argentina não é o único país onde as mulheres são mais do que “esposas ilustres”. No início de 2006, Michelle Bachelet, ex-refugiada política que criou sozinha três filhos, sucedeu o socialista Ricardo Lagos, em um Chile no qual o divórcio acabava de ser legalizado. Em outubro de 2010, no Brasil, foi a vez de outra divorciada, Dilma Rousseff,conhecida por sua participação em grupos guerrilheiros de esquerda durante a ditadura dos anos 1960 e 1970. Alguns meses antes, a Costa Rica descobriu que sua tradicional cultura machista não impediria a eleição de Laura Chinchilla (centro-esquerda). Essa evolução dos espíritos é, às vezes, acompanhada da introdução de sistemas de discriminação positiva. A Argentina foi pioneira: em 1991, aprovou uma lei de cotas que impunha aos partidos pelo menos 30% de candidaturas femininas. Com 38% das cadeiras do Parlamento ocupadas por mulheres, figura hoje como um dos doze países com mais participação feminina no Poder Legislativo. Desde então, onze nações da região seguiram seus passos (Bolívia, Brasil, Costa Rica, Equador, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai). “Aqui, a eleição de mulheres como Michelle Bachelet se explica sobretudo pelo fato de que passam a imagem de candidatas menos corrompidas”, explica Maria de Los Angeles, diretora da Fundação Chile 21, em Santiago. Até então excluídas do poder, raramente apareciam envolvidas em escândalos de corrupção e desvio de fundos – uma característica que desapareceu com sua implicação na política. A paridade promovida por Michelle, por exemplo, não sobreviveu: a metade dos ministérios de seu primeiro governo era ocupada por mulheres; na equipe de seu sucessor de direita, Sebastián Piñera, as mulheres ocupam apenas 18% desses cargos. A boa vontade do Poder Executivo não é suficiente. Em sua chegada ao Palácio do Planalto, em Brasília, Dilma anunciou a intenção de promover as mulheres – palavras transformadas em piada pela imprensa, que qualificou seu governo de “República do Salto Alto”. Em seu governo, as mulheres ocupam 24% dos ministérios e 21% dos cargos ditos de “segundo escalão” (gabinetes e grandes empresas estatais). As nomeações dependem das formações políticas da coalizão, que, à exceção do Partido dos Trabalhadores (PT), são pouco inclinadas à discriminação positiva. Segundo estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento, em 2009 as mulheres ocupavam 16% dos cargos de presidente e secretária-geral dos partidos latino-americanos, e representavam 19% da hierarquia dos comitês executivos. Na Venezuela, as mulheres foram mais ativas nos mecanismos de governo participativo impulsionados pelo presidente Hugo Chávez ao longo da última década. Consciente de que sua análise pudesse ser taxada de “clichê”, a socióloga Margarita López Maya, da Universidade Central da Venezuela, em Caracas, e candidata às legislativas de 2010 pelo partido de oposição Pátria para Todos, explica: “Tanto ontem como hoje, os níveis intermediários do poder permanecem ocupados por homens. As mulheres participam quando se trata de questões concretas e se interessam menos pelo jogo político”. Três mulheres estão no topo de organismos do poder público, mas, segundo a socióloga, “foram escolhidas pela lealdade ao presidente Chávez e por atrair voto feminino”. As mulheres no poder se preocupam mais em fazer avançar os direitos de seu sexo? Nada é tão incerto, observa María Flórez-Estrada Pimentel, socióloga da Universidade de Costa Rica: “Elas abalam a ordem social tradicional, mas isso não significa que adotarão uma postura progressista. Na América Central, as presidentes mantiveram o conservadorismo tanto em questões econômicas como em questões sociais – inclusive as que afetam diretamente as mulheres, como a legalização do aborto”. À exceção de Cuba, onde a interrupção voluntária da gravidez (IVG) é autorizada, e da Cidade do México, onde os deputados da Assembleia local a aprovaram, essa questão permanece um tabu na região. Proibição do direito de aborto Em outubro de 2010, militantes feministas brasileiras se surpreenderam com a reação violenta gerada pela discussão do tema na campanha presidencial. Milhões de pessoas assistiram a vídeos de fetos mortos postados na internet – material que também exibia discursos de pastores evangélicos contra Dilma, que havia se pronunciado a favor da descriminalização do aborto alguns anos antes. José Serra, o adversário da candidata do PT, conhecido por suas posições progressistas em questões de saúde, viu nessa reação uma oportunidade de reverter a tendência eleitoral e começou a fazer campanha com a Bíblia na mão, enquanto sua mulher organizava comícios em bairro populares para vilipendiar os que “querem matar crianças” – omitindo o fato de que ela mesma havia recorrido ao aborto nos anos 1970, segundo revelações do jornal Folha de S.Paulo. Acuada no segundo turno, Dilma assinou uma carta na qual se comprometia a não enviar ao Congresso o projeto de lei da legalização da IVG. Os abortos clandestinos no Brasil, contudo, são estimados em aproximadamente 800 mil por ano e geram consequências dramáticas: cerca de 250 mil mulheres sofrem de infecção ou perfuração do útero, e a taxa de mortalidade nessas ocasiões chega a 65 por 100 mil – transformando o tema em questão de saúde pública.1“Teria sido mais fácil avançar com esse debate há 20 anos”, analisa Maria Luiza Heilborn, pesquisadora do Centro Latino-Americano da Sexualidade e dos Direitos Humanos (Clam), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Ao obter um compromisso por escrito, as Igrejas garantiram que a descriminalização do aborto não estaria mais na ordem do dia. E no Congresso, em que a presença de deputados religiosos dobrou (para chegar a 63 cadeiras) nas últimas eleições, mais de trinta projetos buscam medidas na direção oposta: postulam o endurecimento das regras para o aborto legal e o proíbem até mesmo em casos de estupro ou perigo para a vida da mãe. “Esses projetos jamais serão votados, mas paralisam todas as discussões progressistas”, lamenta Heilborn. A dificuldade, continua ela, “vem do fato de que os conservadores modernizaram o discurso: clamam pela salvação dos fetos em termos de direitos humanos, e não mais em nome da família ou de valores morais”. “Trata-se de uma imensa hipocrisia: aqueles que podem pagar um aborto em condições seguras o fazem tranquilamente; as clínicas não se omitem e chegam a contar com a proteção de policiais corrompidos”, acrescenta a pesquisadora. De acordo com um estudo da Universidade de Brasília (UnB), publicado em 2010, uma mulher a cada cinco já abortou no Brasil.2 “Apesar disso, o direito à IVG permanece totalmente fora do imaginário social. Até mesmo os que recorreram a ela se dizem contra, apresentando a própria decisão como uma exceção”, diz Maria José Rosado, da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. O único país da região com retrocessos consumados em relação ao tema é a Nicarágua. Em 2006, a hierarquia católica demonstrou sua força ao realizar um acordo com Daniel Ortega, que então buscava apoio para reconquistar o poder. Desde sua eleição, o sandinista vinha modificando a legislação que permitia a interrupção da gravidez nos casos de mulheres vítimas de estupro, e, hoje, o aborto está proibido em todas as situações. “Isso mostra que o debate não tem nada a ver com esquerda ou direita”, aponta Heilborn. De fato, é na Colômbia do superconservador Álvaro Uribe (presidente de 2002 a 2010) que a Corte Constitucional efetuou o movimento contrário e autorizou o aborto em caso de “problemas de saúde”, categoria cuja interpretação amplia a noção de perigo e incorpora aspectos de natureza psicológica. Na Venezuela, apesar do estudo de diferentes projetos de lei na Assembleia Nacional desde a chegada de Chávez ao poder, a descriminalização do aborto é improvável pela aliança entre militares e religiosos, e talvez pela própria postura de Chávez: “O aborto é autorizado em outros países. Eu – e você pode me taxar de conservador – não estou de acordo com o aborto para interromper uma gravidez. Se uma criança nasce com algum problema, é preciso dar-lhe amor”, declarou em 26 de abril de 2008. O debate, contudo, ganhou força com o crescimento vertiginoso do número de menores grávidas na Venezuela. Segundo a Sociedade Venezuelana de Puericultura e Pediatria, em 2009 20% dos partos foram realizados em mães entre 10 e 18 anos. No Uruguai, a decisão do Congresso de legalizar a IVG foi vetada por Tabaré Vázquez (2005-2010), então no comando de um governo de centro-esquerda. No dia 8 de novembro de 2011, o Senado relançou a iniciativa, e a legalização provavelmente será aprovada. Pesquisas apontam que 63% da população uruguaia é a favor da medida, e o presidente José Mujica já anunciou que não vai se opor. As discussões seguem, assim como no Equador, Bolívia e Argentina, onde ocorrem 150 mil abortos clandestinos por ano. Apesar da presidente Cristina Fernández se dizer pessoalmente desfavorável ao aborto, uma comissão legislativa retomou o debate no início de novembro, e um projeto de lei que flexibiliza as condições da IVG será discutido no próximo mês. Para o sociólogo Mario Pecheny, o voto do Congresso argentino a favor do casamento homossexual, no ano passado, é um precedente animador. Popularização do feminismo A grande preocupação das mulheres latino-americanas, contudo, ainda é a questão da violência. “Os feminicídios, ou seja, os homicídios de mulheres porque são mulheres, estão em pleno crescimento na América Central e no México”, afirma María Flórez-Estrada Pimentel. El Salvador é o recordista, com um índice de 13,9 mulheres assassinadas a cada 100 mil habitantes. Na Guatemala, essa proporção é de 9,8. Nos estados mexicanos de Chihuahua (onde está Ciudad Juárez, conhecida pelo assassinato sistemático de mulheres),3 Baja California e Guerrero, o índice triplicou entre 2005 e 2009 e chega a 11,1 por 100 mil habitantes. Esse aumento significativo se deve principalmente ao crescimento dos confrontos entre governos e narcotraficantes. A normalização da violência também a banaliza no interior de famílias e casais. Ademais, “a guerra contra a droga e o crime organizado tem consequências específicas para as mulheres: como em toda guerra, o estupro de mulheres cria uma coesão no seio de grupos armados, reafirma a masculinidade e funciona como um ato desafiador diante do inimigo”, analisa Patsilí Toledo, jurista da Universidade do Chile.4 No México, o número de mulheres presas por crimes federais – essencialmente pelo tráfico de entorpecentes – aumentou 400% desde 2007.5 Os barões da droga também diversificam suas fontes de recursos desenvolvendo redes de prostituição e de tráfico de mulheres. Segundo a Organização Internacional das Migrações, este último movimentaria US$ 16 bilhões a cada ano na América Latina, o que conduz ao sequestro de milhares de mulheres adultas e menores de idade.6 Para Maria Luiza Heilborn, o feminismo, apesar de não ser tão visível quanto o movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais), “se popularizou e pode ser observado em todas as camadas da sociedade”. Além disso, “as mulheres mais pobres são aquelas que mais se beneficiam das políticas sociais”, lembra Maria José Rosado. O Bolsa Família, que chega a cerca de 13 milhões de lares, prioriza as mulheres. O mesmo ocorre no programa de habitação popular Minha Casa, Minha Vida: o governo faz de tudo para que a propriedade esteja em nome da mulher. “Medidas como essas geram maior poder de negociação em relação aos homens e melhora a situação das famílias, dado que a preocupação central delas é a saúde e a alimentação dos filhos”, aponta Rebecca Tavares, que dirige a ONU Mulheres – Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres. A massificação do acesso das mulheres ao mercado do trabalho modificou o cenário: segundo o Banco Mundial, desde 1980 a mão de obra latino-americana incorporou mais de 70 milhões delas, o que fez aumentar sua taxa de participação de 35% em média para 53% em 2007, principalmente no setor de serviços. O peso do setor informal permanece considerável: nas cidades bolivianas, por exemplo, a proporção de mulheres que trabalham sem regularização é de 71%, contra 54% dos homens.7 “As violentas crises econômicas dos anos 1990 demonstraram a capacidade das mulheres de administrar momentos críticos, em geral melhor do que os homens. Nesse período, ganharam tanto em termos de segurança pessoal quanto em legitimidade perante a sociedade”, observa Mario Pecheny. Ativas no mercado, porém sempre encarregadas da maioria das tarefas não remuneradas (limpeza, cuidado dos filhos, de idosos e incapacitados), as mulheres questionam a cultura machista, mas sofrem para conciliar todos esses âmbitos. A queda brutal da fertilidade na região seria uma simples correlação? No Brasil, a renovação das gerações não está mais assegurada: diante do volume de trabalho e dos custos de manter uma família – a educação e a saúde sendo os pontos priorizados –, as mulheres, de bairros ricos ou pobres, optam por ter apenas um filho, dois no máximo, e às vezes nenhum. Esse fenômeno, observado também no Uruguai, Costa Rica, Chile e Cuba, soma-se ao aceleramento do envelhecimento da população que os orçamentos nacionais continuam a ignorar. “As mulheres, mais autônomas, querem estudar, consumir e viajar; não querem mais se responsabilizar pelos outros”, constata María Flórez-Estrada Pimentel. “Isso gera um problema social importante para o capitalismo: a divisão social do trabalho mudou, mas nem os Estados nem as empresas investem o suficiente para criar uma infraestrutura social adaptada a essa nova realidade.”
Lamia Oualalou é Jornalista
1 “Aborto no Brasil e países do Cone Sul”, Universidade Estadual de Campinas, out. 2009. 2 “Segredo guardado a sete chaves”, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, jun. 2010. 3 Ler Sergio González Rodríguez, “Tueurs de femmes à Ciudad Juárez” [Assassinos de mulheres em Ciudad Juárez], Le Monde Diplomatique, ago. 2003. 4 Patsilí Toledo, “The drug-war femicides”, Project Syndicate, 9 ago. 2011. 5 Citado por Damien Cave, “Mexico’s drug war, feminized”, New York Times, 13 ago. 2011. 6 “Human trafficking: an overview”, Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, Nova York, 2008. 7 “Latin America: 70 million additional women have jobs following gender reforms” [América Latina: 70 milhões de mulheres a mais têm empregos na sequência das reformas de gênero], Banco Mundial, Washington, mar. 2011. (Com Le Monde Diplomatique) |
quarta-feira, 11 de janeiro de 2012
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