Chris Gilbert (*)
O projecto do socialismo não é uma opção mas uma obrigação. A missão que herdámos do passado, a de alcançar o socialismo, exige lealdade e valentia se não a queremos atraiçoar. Só se o cinzentismo permanente do capitalismo tivesse acabado por se apoderar da imaginação humana poderá considerar-se excessiva a afirmação. De facto, o socialismo e o seu projecto seriam decepcionantes se não actuassem – ao menos uma parte do tempo – neste registo heróico.
O ensaio que se segue faz parte de uma antologia publicada pelas editoriais Boltxe (Euskal Herria) e Trinchera (Venezuela). Cada livro inclui diversas contribuições sobre a pergunta «Por quê socialismo?» que Albert Einstein [http://www.odiario.info/por-que-socialismo/] colocou no seu célebre artigo de 1949 assim intitulado, reactivando assim um debate.
Por que optar pelo socialismo? É comum alegar que o socialismo será mais justo e equitativo que o capitalismo, mas isto não resolve o problema já que as pessoas nem sempre se sentem motivadas pela justiça social. Por outro lado, há que considerar quão exigente e desafiante é o projecto socialista: o objectivo é mudar toda a sociedade!
Em projectos de tal natureza as intenções e os impulsos operativos não são necessariamente racionais. Também há a difícil questão da longevidade das motivações, a questão de se o compromisso individual coincide (enquanto durar) com o objectivo socialista partilhado por outros durante o tempo suficiente para que se sedimente.
É também preciso dizer que enquanto o socialismo foi compreendido como consequência necessária de um desenvolvimento histórico inexorável, não houve necessidade de perguntar por quê socialismo? No período posterior à morte de Karl Marx e até à primeira metade do século passado, o socialismo entendeu-se, habitualmente, como algo tão inevitável que, para alguns pensadores, podia ver-se como pouco desejável para a humanidade, mas apesar disso era parte de um futuro ineludível (basicamente, entres outros, a postura do economista austríaco Joseph Schumpeter) [1].
Será talvez aqui que nos encontramos com a verdadeira importância do artigo «Por quê socialismo?» de Albert Einstein [2]. Mais que pelo seu conteúdo que inclui elementos interessantes – por exemplo a defesa de que só uma economia socialista planificada pode superar a mutilação do indivíduo imposta pelo capitalismo – este breve ensaio de 1949 constitui um marco por adoptar uma postura original: a de conceder que o socialismo não é inevitável e deve ser desejado. Efectivamente, o texto de Einstein reconhece que o socialismo deve ser activamente procurado.
Indubitavelmente, o interesse de Einstein na questão foi o resultado da crise geral de 1914 a 1945, que tão profundamente sacudiu a fé no progresso abstracto e nos esquemas da história universal. As lições daquela crise definem a época actual; o determinismo histórico tem hoje poucos adeptos, fora dos claustros académicos do marxismo analítico [3].
Mais, a crise sistémica que começou à volta dos anos 70 do século passado e continuou até ao presente foi tão eficaz como a anterior na sua pulverização, uma vez mais, da fé no progresso inevitável. Por estas razões, a pergunta por que socialismo – por que há que desejar e lutar pelo socialismo – permanece tão vigente como foi no momento em que Einstein a colocou.
Textualmente na esteira de Marx
Na generalidade, Karl Marx deixou de lado a pergunta por quê socialismo (o que é que motiva o indivíduo ou o colectivo a trabalhar pela sociedade socialista). Isto deve-se, em parte, à sua obra ter nascido como um esforço de responder «cientificamente» às quimeras do socialismo utópico, cujos partidários tinham dominado o debate.
Outra razão é que Marx nem sempre foi alheio ao determinismo do seu momento e em algumas ocasiões pareceu pensar que o efeito acumulativo das lutas sindicais e o crescimento numérico do proletariado seriam suficientes para formar um sujeito revolucionário [4].
Reconhecendo em Marx estas duas peias, apesar disso existe um encadeado de chaves literárias na sua obra que conduzem à questão crucial, «existencial», do empurrão subjectivo para o socialismo, das razões para fazer a revolução.
Marx emprega duas figuras em apoio à revolução comunista, o espectro do Manifesto comunista e a cegueira de Luís Bonaparte do 18 de Brumário, ambas provenientes do Hamlet de Shakespeare. As referências são alusões ao primeiro ato da obra em que o fantasma do velho rei visita as muralhas do castelo de Elsinor. Quando o fantasma está visível é espectro – também «aparição» e «espírito» –, mas quando está atrás da cortina é chamado de «cego». Como podes cavar tão depressa? comenta Hamlet quando o fantasma, nesse momento escondido, lhe pede o juramento.
Frequentemente considera-se Hamlet como a obra constitutiva da moderna consciência. A obra conta a história do personagem epónimo que luta por restaurar a ordem perdida, usurpado pelo seu tio Cláudio, que assassinou o velho rei e pai de Hamlet. Visto que o aventureiro Cláudio toma o destino nas suas próprias mãos (como faria outro usurpador shakespeariano, Macbeth) e é um «homem que lavra o seu próprio êxito», pode ser comparado com um burguês.
Assim, neste drama que data dos primeiros tempos do capitalismo europeu, o protagonista luta contra a nova ordem burguesa, e a sua inspiração provém de uma figura que é velha: a figura paterna. Trata-se de um velho cego, um velho fantasma, uma voz do passado [5].
Como interpretar esta voz shakespeariana do passado de que Marx se apropriou não só uma vez mas em múltiplas ocasiões [6]? Apesar disso, por que razão tantos textos marxistas, incluindo textos atuais, empregam as imagens do espectro e do cego para se referirem à promessa do socialismo, com aquele pressagiando o possível advento do socialismo e este representando uma força revolucionária que irresistivelmente rebentará no presente?
A melhor explicação é que o recurso a estas metáforas de Shakespeare por Marx e Engels – e mais importante, a sua importância na tradição marxista viva – implica que hoje ainda consideramos que o apelo do socialismo vem do passado e não de um futuro abstracto, nem se inspira na necessidade abstracta de progresso.
Vale a pena sublinhar que esta forma de interpretar o discurso marxista – com os olhos postos no passado e procurando aí as razões da revolução socialista – não é nova. De facto, é um tema central na obra, influenciada pelo romantismo de Walter Benjamin. Benjamin afirmou cripticamente no seu Sobre o conceito de história (1940) que a revolução não se fará por inveja do futuro, mas antes por uma felicidade que é essencialmente pretérita: a revolução redime as vidas do presente e do passado.
Em consonância com esta obrigação de redimir o passado, Benjamin aponta a «débil força messiânica» conferida às gerações vivas, às quais o passado tem o direito de dirigir as suas reclamações. Como o próprio Hamlet, Benjamin reconhece que as reclamações que o passado faz ao presente «não são facilmente satisfeitas» [7].
Uma coisa «velha»: o valor de uso
Seja qual for o papel atribuído ao passado e aos seus mensageiros fantasmáticos de Marx, Benjamin e Shakespeare, há que reconhecer que a ideia de que o passado proporciona o impulso para o socialismo é profundamente não intuitiva. Por que é que desde a modernidade se insiste que o motivo ou o apelo ao socialismo provém de uma época anterior? Se o socialismo se vai construir no futuro, por que é que o apelo não provém do futuro? De facto, as respostas a estas perguntas têm muito que ver com a construção da modernidade capitalista e mais especificadamente com a sua qualidade fantasmagórica.
Em «O fetichismo da mercadoria e o seu segredo», secção chave de O Capital, Marx mostra como o mundo das mercadorias com a sua abstracção do trabalho humano na forma fetichista de valor, é essencialmente fantasmagórico: numa palavra, é um mundo futurista.
O reino «sensorialmente supra sensível» a que Marx se refere nesta secção de O Capital antecipa o mundo dos centros comerciais de hoje e a sua incessante apresentação de produtos e encantos novos; este é um mundo que excluir a morte, ao assumir paradoxalmente o rigor mortis das superfícies duras e brilhantes das mercadorias. Dada a natureza excessivamente moderna e futurista do universo das mercadorias, qualquer ruptura com este âmbito deve provir de uma voz subterrânea ou de um espaço metafórico que contrasta, pelo carácter «velho» o unheimlich, com a alienação futurista do capitalismo [8].
Este espaço metafórico, de certo modo comparável à condição de espectro do pai de Hamlet, é a esfera do valor de uso na modernidade capitalista. Como faceta suprimida da mercadoria, o valor de uso é, amiúde, representado na arte, na filosofia, e inclusive na política, como qualquer coisa pertencente a uma espécie de paraíso perdido [9].
Por exemplo, na poesia de Baudelaire e, um pouco mais à frente, nos quadros de Paul Gauguin e Henri Matisse, o reencontro com valores e prazeres projecta-se sobre uma terra exótica ou mais primitiva de «luxe, calme et volupté».
Na filosofia, tal como os pensadores liberais apelam à «posição original» e ao «estado de natureza» para decidir questões fundamentais de justiça social – situando o valor transhistórico num espaço que se imagina primordial – também Martin Heidegger apela a contextos campesinos arcaicos para evocar um mundo mais autêntico (regido pela utilidade) anterior às pseudoconcretações do capitalismo [10].
No âmbito político, o projecto de recuperação de valores históricos e ideais comuns – valores do passado que subjazem no presente – percebe-se claramente na luta abertzale basca que se leva a cabo em nome de um povo milenário que mora de ambos os lados dos Pirenéus. Este projecto é essencialmente socialista, apesar de estar marcado no resgate do que alguma vez existiu.
Outro exemplo idêntico é projecto socialista bolivariano que, devido à sua dimensão continental, depende da reactivação de uma nação latino-americana primordial que se encontra sepultada sob a modernidade balcanizada e capitalista do continente [11]. Em ambas as lutas, que se contam entre os esforços mais vibrantes para superar o capitalismo e criar um novo mundo socialista, o projecto constrói-se sob a redenção do que há «atrás» e «antes de» as pseudoconcretações fetichizadas do capitalismo.
Socialismo como obrigação
Que o chamado socialismo vem do passado confirma-o também a forma em que comummente utilizamos os termos e os conceitos. Isto é, a maioria da esquerda revolucionária coloca o socialismo não como uma simples opção, mas como uma obrigação, e não existem obrigações com o porvir excepto na forma figurativa.
Uma atitude revolucionária para o futuro seria a de preparar o caminho e manter a esperança: «optimismo do espírito» (ao arrepio do que disse Gramsci). Pelo contrário, o motivo da luta socialista aproxima-se mais do cumprimento de uma promessa. É uma promessa feita ao passado e às gerações pretéritas
Como devemos considerar aqueles do passado a quem nos amarra esta obrigação? Podemos imaginar um longo cortejo de antepassados – como faria José Martí num discurso muito próprio em 1893 – cujos projectos ainda estão por realizar. Martí evoca o rebelde paraguaio José de Antequera e o líder indígena Túpac Amaru, e também rememora José Antonio Galán e Juan Francisco Bebeo, ambos comuneiros colombianos [12]. As nossas referências nas lutas do passado podem diferir hoje, dependendo das condições políticas concretas. No entanto, o essencial aqui é que quando estendemos a mão às gerações, como o faria Martí, seja porque consideramos a humanidade como um projecto.
Passando em revista esta ideia constatamos que se bem que se vislumbra o projecto da humanidade no humanismo renascentista, ele só se consolida no século XVIII como ideal normativo. O projecto constitui a base que sustenta tanto a Declaração dos Direitos do Homem como o esquema da «paz perpétua» que Immanuel Kant imaginou como possível efeito da crescente adesão ao liberalismo [13].
Um século depois, Simon Bolívar e o próprio Martí tiveram o mérito de ter lutado por uma pátria latino-americana, mas as suas lutas sempre estiveram moduladas pela ambição de uma pátria humana; assim, vemos que a ideia da humanidade, de um projecto humano, ainda persiste como substrato de projecto de construção nacional.
No século XX, o projecto da humanidade apenas se manteve vigente numa época turbulenta de guerras mundiais e genocídios, mas sobreviveu pelo menos na ideologia do socialismo real, tanto na sua modalidade de «luta final» como na forma posterior de «convivência pacífica». Também persistiu como horizonte nas lutas anticoloniais e anti-racistas.
Na relação com estas gerações anteriores e a sua visão de humanidade como projecto digno de luta, a nossa geração deu um enorme passo atrás, um passo que expressa uma terrível perda de ambição e compromisso [14]. Regra geral não retomámos as suas lutas nem mantivemos o ideal humano que lhes deu horizonte e alcance. Esta é uma enorme perda, mesmo quando o nosso abandono, a nossa fuga a responsabilidades, é inconsciente ou fruto da ignorância.
Assim, hoje em dia apresentam-se duas opções para a nossa geração. Ou persistimos neste estado «tombado» ou recuperamos projectos pretéritos, escutando o passado e os seus legados de luta. Para fazer isto temos que recuperar uma visão da humanidade que excede a soma dos indivíduos e vê-la de novo como projecto com uma longa trajectória de luta e sacrifício.
Naturalmente, é importante deixar claro que, no que respeita às lutas chave do nosso passado – inclusive as que não foram explicitamente socialistas como os projectos de Bolívar, Martí e Martin Luther King Jr. – a única forma de hoje as manter vivas e dar-lhes uma base coerente é o socialismo.
No nosso tempo, dado o desenvolvimento da História, só o socialismo pode garantir uma sociedade pacífica, livre de racismo e justa. Evidentemente, isto deve ser demonstrado. Mas abundam argumentos de peso como os que se desenvolvem no ensaio do próprio Einstein, que nos mostra, entre outras coisas, que uma economia capitalista conduz necessariamente ao caos, à insegurança laboral e a múltiplas formas de injustiça. A conclusão, então, é que qualquer pessoa é ou um traidor ao passado e ao seu legado, ou escolhe lutar e assumir o projecto que representa a continuação destes esforços anteriores: o projecto do socialismo.
Uma guinada cultural (positiva)
Este modo de ver as coisas ilustra-se com uma importante guinada na produção cultural prévia à última guinada do século passado. Até meados dos anos setenta do século passado a tendência dominante na literatura e no cinema, sobretudo na vertente da ficção científica, era a de representar novos futuros e cada vez mais avançados. Isto foi o que transmitiu, amiúde com um toque de cepticismo, na tradição que se estende de Júlio Verne e H.G. Wells até Isaac Asimov e Arthur C. Clarke. No entanto, em meados dos anos setenta, esta postura orientada para o futuro esgotou-se, e a ficção científica deu um salto espectacular: voltou o seu olhar para o passado.
O filme chave desta viragem foi «A guerra das galáxias», que se estreou em 1977 com o memorável texto de abertura: «Há muito tempo, numa galáxia muito, muito longínqua». Esta surpreendente película de ficção científica proclamou relatar acontecimentos sucedidos num passado, e tinha uma clara dívida com o romantismo evidenciado nos cavaleiros, princesas e magos que povoavam os seus cenários.
Sem dúvida alguma, a película é medíocre em quase todos os sentidos, mas a primeira série da «A guerra das galáxias» marcou um ponto de inflexão. Iniciou-se uma corrente romântica e nostálgica que continua dominante em grande parte da cultura de massas, como demonstra o êxito das recentes produções, o Senhor dos anéis e a Guerra dos Tronos.
Este regresso ao passado, que teve lugar no cinema e na televisão na década de setenta poderá ter sido (e foi-o) interpretado como um facto negativo. Isto é, podia-se interpretar A guerra das galáxias como uma simples evidência da degeneração da actual cultura capitalista e a sua carência de ideias (como parecem confirmar a miserável interpretação e as cruéis reciclagens cinematográficas do filme).
No entanto, dada a natureza da época da guinada cultural que se evidenciou naquele momento, vemo-nos obrigados, pelo menos, a levar a sério e estrutura temporal de «A guerra das galáxias». De facto, o filme pôs em evidência a apreciação essencialmente correcta entre as audiências populares de que o mito progressista tinha fracassado e que hoje a fé num futuro predestinado superior é insustentável.
É precisamente isto o que «A guerra das galáxias», juntamente com a ficção científica romântica que segue na sua esteira, representa. Por um lado, o primeiro filme da série, dirigida por George Lucas, reconheceu que não há nenhuma garantia de que a humanidade vá progredir para um ideal luminoso, reconhecimento que também é feito com os filmes quase contemporâneos, Blade Runner (1982) e Brasil (1985), com a suas cenas distópicas do futuro. Por outro lado, quer os guionistas quer as audiências de «A guerra das galáxias» entenderam que não há nada a que estejam obrigados na visão progressista da vida: não há compromisso algum e, portanto, não há aventura.
Mas se recuarmos uma década que seja encontramos uma produção radicalmente diferente, uma série de ficção científica que coincidia com a tendência então dominante no seu género, a que olhava para o futuro. Referimo-nos a Star Trek, a série de culto que inicialmente foi transmitida entre 1966 e 1969. Ainda que superficialmente semelhante a «A guerra das galáxias», esta série televisiva tinha, de facto, um argumento contraposto.
Encarnava uma cosmovisão progressista que – em estreito paralelismo com os ideais positivistas da Segunda Internacional – predizia uma nova sociedade superior como produto do desenvolvimento histórico inexorável. Entre outros êxitos civilizacionais que se apresentam como faits accomplis em Star Trek, encontramo-nos com uma federação interplanetária à maneira do foedus pacificum internacional de Kant. Em Star Trek o iluminismo triunfa.
Walter Benjamin versus James Kirk
Pelo contrário, «A guerra das galáxias» de Lucas operou um registo totalmente diferente e a sua mensagem entra em profunda contradição com o pensamento iluminista. Com uma mixórdia que recicla as fórmulas do western e a lenda medieval, a narrativa ao mais débil estilo hollywoodesco assenta em dois poderosos argumentos: o primeiro é que há que lutar pela mudança e o segundo que há uma missão de longa data – um projecto humano que remonta a muitas gerações atrás – que a geração actual abandonou. A película transmite à audiência – como o próprio fantasma shakespeariano que Marx adoptou no Manifesto Comunista – que cada um deve escolher entre participar nesta missão heróica (chame-se a missão emancipação ou socialismo) ou ser um traidor a ela…
Isto conduz-nos de novo a Walter Benjamin e às suas teses sobre a história. Muitas pessoas de inclinação académica lutaram com este difícil texto que acabou por ser o derradeiro testamento teórico do escritor alemão. Uma das referências mais misteriosas no texto de Benjamin é a afirmação sobre a presença de uma «débil força messiânica» na presente geração (afirmação que referimos brevemente mais acima). Precisamente antes desta estranha frase, o texto menciona o «eco daqueles que foram silenciados» nas «vozes a que damos ouvidos hoje em dia», e também alude à surpreendente ideia de um compromisso secreto entre as gerações do passado e a nossa» [15].
Esta secção de Sobre o conceito de história de Benjamin é na verdade enigmática. Por que é a «força messiânica» na actual geração considerada «débil»? E, por outro lado, que variante excêntrica da historiografia materialista propõe Benjamin (visto que posiciona o seu texto como uma vertente crítica do materialismo histórico)? Uma resposta completa a estas perguntas está fora do alcance deste ensaio.
No entanto, para captar a essência destas teses de Benjamin não é necessário ir mais além de uma das primeiras cenas de «A guerra das galáxias», aquela em que o protagonista se encontra no planeta Tatooine com uma figura envelhecida que é portadora de uma mensagem do passado. É Obi-Wan Kenobi, mas no seu lugar podemos imaginar Simón Bolivar, Karl Marx ou mesmo Hugo Chávez. Nesta cena de «A guerra das galáxias» temos uma representação dramática do «compromisso» de Benjamin entre o passado e as gerações presentes. A geração anterior, representada por Obi-Wan, interpela a geração presente para uma aventura, dizendo: Há uma missão difícil e de velha data; deves aprender sobre ela e ser-lhe leal.
A missão, a lealdade e a aventura … talvez estes aspectos do projecto humano sejam difíceis de expressar de forma conveniente fora da literatura e da arte, e não encaixam facilmente no contexto do ensaio teórico. Ainda assim são essenciais para o socialismo. Há que compreender que o projecto do socialismo – uma aspiração tanto explícita como implícita num grande número de gerações pretéritas – não é uma opção mas uma obrigação.
A missão que herdámos do passado, a de alcançar o socialismo, exige lealdade e valentia se não a queremos atraiçoar. É isto excessivo? Só se o cinzentismo permanente do capitalismo tivesse acabado por se apoderar da imaginação humana poderá considerar-se excessiva a afirmação. De facto, o socialismo e o seu projecto seriam decepcionantes se não actuassem – ao menos uma parte do tempo – neste registo heróico.
Notas
[1] Joseph A. Schumpeter: Capitalismo, socialismo y democracia, Folio, Barcelona, 1996.
[2] Albert Einstein: «Why Socialism?», Monthly Review (Maio 1949).
[3] Gerard A. Cohen: La teoría de la historia de Karl Marx: una defensa, Siglo XXI, Madrid, 1986, pp. 177-182.
[4] Daniel Bensaïd: La política como arte estratégico, Oveja Roja, Madrid, 2013, p. 34.
[5] O carácter paternal do fantasma enfatiza-se duplamente na leitura de Hamlet que Stephen Dedalus no episódio 9 de Ulisses de James Joyce. Dedalus mantém que Shakespeare, que tinha um filho chamado «Hamlet» interpretou o papel de fantasma do pai (o espectro) nas representações contemporâneas da obra. É interessante que Macbeth, uma obra um pouco mais tardia, põe a história do usurpador «burguês» no centro da obra.
[6] Outro exemplo é Karl Marx: Speech at Anniversary of the «People’s Paper», 1856 (www.marxists.org/archive/marx/works/1856/04/14.htm).
[7] Walter Benjamin: Tesis sobre la historia y otros fragmentos, edición y traducción de Bolívar Echeverría, Desde Abajo, Bogotá, 2010.
[8] Sigmund Freud: «Lo ominoso», Obras completas, volumen XVII (1917-1919): «De la historia de una neurosis infantil» y otras obras, Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1978, pp. 217-225. Seguindo Julia Kristeva podemos captar el sentido da palavra unheimlich, que amiúde se traduz como «sinistro», com a frase «inquietante estranheza».
[9] Herbert Marcuse: Eros y Civilización, SARPE, Madrid, 1983, p. 33: «E o passado continua a impor exigências sobre o futuro: [o inconsciente] gera o desejo de que o paraíso seja criado outra vez sobre a base dos êxitos da civilização… La recherche du temps perdu chega a ser o veículo da futura libertação».
[10] Martín Heidegger: «El origen de la obra de arte», Arte y Poesía, Fondo de Cultura Económica, México, 1973. O termo pseudoconcretação vem de Karol Kosik: Dialética de lo concreto, Grijalbo, México, 1967. Estudo sobre os problemas do homem e do mundo.
[11] Este é o argumento de Jorge Abelardo Ramos na Historia de la Nación Latinoamericana, Continente, Buenos Aires, 2012.
[12] José Martí: «Bolívar» (Discurso vigília da Sociedade Literária Hispano-americana de 28 de Outubro de 1893), Política de Nuestra América, Fondo Cultural del ALBA, La Habana, 2006, p. 145.
[13] Immanuel Kant: Sobre la paz perpetua, Tecnos, Madrid, 1985.
[14] Esta perda de compromisso com o projecto humano regista-o Einstein com uma anedota em «Por que socialismo?» sobre o «homem inteligente e bem-disposto» que se pergunta por que há que estar preocupado pelo desaparecimento da humanidade.
[15] Walter Benjamin: op. cit., veja-se a tese II.
* Professor de Estudios Políticos na Universidade Bolivariana de Venezuela
Este artigo foi publicado em http://www.lahaine.org/nuestra-cita-con-la-revolucion
Tradução de José Paulo Gascão
(Com O diario.info)
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