Publicamos hoje o primeiro de um conjunto de artigos que se inserem na comemoração do centenário de Álvaro Cunhal. Em texto inédito, José Paulo Netto estuda a trajectória do histórico dirigente revolucionário, a sua luta intransigente e permanente contra os desvios de direita e o oportunismo burguês no seio do movimento comunista e do próprio PCP, o seu papel central no desenvolvimento de uma teoria da revolução portuguesa.
José Paulo Netto (*)
O Partido Comunista Português (PCP) foi fundado em 1921. Obrigado à clandestinidade na sequência do golpe militar (1926) de Gomes da Costa, que abriu o caminho para a ditadura de Salazar, o partido foi reorganizado por Bento Gonçalves (1902-1942), seu primeiro secretário-geral, assassinado pelo salazarismo no campo de concentração do Tarrafal.
Na história do PCP, a figura de Álvaro Cunhal é absolutamente central. De fato, o PCP que se constituiu como a força mais importante na longa resistência democrática ao regime fascista de Salazar e na vanguarda mais consequente do processo da “Revolução dos Cravos” (25 de abril de 1974) foi construído por um coletivo em que a liderança de Cunhal emergiu e se consolidou por décadas, sem quaisquer contestações por parte da militância de base – esta reconheceu no secretário-geral de 1961 a 1992 (depois, tornou-se Presidente do Conselho Nacional do PCP) a coragem pessoal, a firmeza ideológica e a qualificação teórica que, enfim, tornaram-no o próprio símbolo do comunismo lusitano. Compreende-se, pois, que o Comitê Central do PCP tenha agendado para 2013, ano do centenário de nascimento de Cunhal, uma série de eventos e atividades para evocar o notável “filho adotivo do proletariado português”.
A luta por um partido marxista-leninista
Toda a vida de Cunhal – nascido a 10 de novembro de 1913 e falecido a 13 de junho de 2005 (pouco depois da morte de outro grande nome da “Revolução dos Cravos”, o general Vasco Gonçalves, aos 84 anos) – foi dedicada ao PCP, no qual ingressou, como líder estudantil, nos inícios dos anos 1930.
Articulador da juventude comunista, Cunhal integra a direção do PCP a partir de 1936. Passa com ímpar dignidade pelas prisões fascistas em 1937 e 1940. Entre 1940 e 1941, protagoniza um novo processo de reorganização do PCP: tratou-se mesmo de uma autêntica refundação do partido, no marco da qual se constituiu um sólido núcleo dirigente e se estabeleceu a estrutura clandestina que o fascismo salazarista jamais pôde destruir.
Foi Cunhal cérebro e mãos desse processo: teórico e militante, sua intervenção intelectual e sua corajosa prática política conferiram nova dinâmica ao PCP, tornado desde então, na mais estrita acepção, um partido marxista-leninista. Por isto, já em meados da década de 1940 seus camaradas reconheciam o caráter singular da personalidade do líder que se afirmava – caráter em que se conjugavam a qualificação teórica e o talento organizativo.
Preso em 1949, transformou seu processo judicial em tribuna anti-fascista.
Condenado, passou 11 anos nos cárceres salazaristas, dos quais 8 em isolamento – mas encontrou meios e modos de estudar e desenvolver suas concepções teóricas e aperfeiçoar seus dotes artísticos (no desenho e na ficção literária). A 3 de janeiro de 1960, em espetacular fuga coletiva organizada pelo PCP, escapou do Forte de Peniche – e, após algum tempo na clandestinidade, rumou para o exílio (URSS, França).
Exilado até a “Revolução dos Cravos”, teve condições de aprofundar sua análise da realidade de seu país – realmente, elaborou o que se pode designar como uma teoria da revolução portuguesa – e, no interior do partido (cujo Comitê Central elegeu-o para a secretaria geral em 1961) e no movimento comunista internacional, consagrou-se como o líder inconteste da resistência ao salazarismo. Após a derrubada da ditadura fascista, participou como ministro em vários dos governos provisórios da instauração democrática e o povo português conferiu-lhe seguidos mandatos parlamentares.
No curso dessas décadas, Cunhal travou um incessante combate em defesa do caráter marxista-leninista do seu partido. A luta no plano político-ideológico para preservar e consolidar o papel de vanguarda do PCP foi, para ele, uma luta sem quartel.
E uma luta em duas frentes: contra os equívocos provindos de “desvios de direita” contra as tentações aventureiras advindas de “desvios de esquerda”. Exemplifiquemos essa luta com um dos seus mais relevantes capítulos, o do combate aos “desvios de direita”.
A crítica radical ao “desvio de direita”
Já no IV Congresso do PCP, realizado em 1946, Cunhal – à base da certeira compreensão de que a ditadura portuguesa era uma forma particular e específica de regime fascista – defendera para a derrubada do salazarismo o recurso a um “levantamento nacional”. No curto prazo, porém, o partido deslizou para um posicionamento (posteriormente designado como “política de transição”) que secundarizava o empenho para organizar o “levantamento nacional”.
Na passagem dos anos 1940 aos 1950, o partido foi profundamente golpeado pela repressão – entre tais golpes conta-se a “queda” da casa do Luso (25 de março de 1949), quando Cunhal, Militão Ribeiro e Sofia Ferreira, membros do secretariado da direção central, são feitos prisioneiros. A duras penas, o PCP recupera-se desses golpes em meados da década de 1950.
Mas, a partir de 1956, o partido ruma novamente para posições similares às da “política de transição”, com uma orientação que se vê reforçada pelo seu V Congresso (1957). Tal orientação, que se manterá até 1960 (quando, recordemos, Cunhal e alguns companheiros evadem-se da prisão e podem intervir na vida partidária), trará graves prejuízos ao PCP e à resistência democrática portuguesa.
Com efeito, a linha política traçada no V Congresso – já antecipada por um documento do Comitê Central de maio de 1956 – abandona completamente a estratégia do “levantamento nacional”, proposta e defendida por Cunhal há uma década: ela se vê substituída por uma orientação que prega uma “solução pacífica” para o fim do salazarismo.
Esta orientação – que, embora contestada por alguns dirigentes e muitos militantes de base, manteve-se até 1960 – deixou o partido a reboque da oposição liberal-burguesa e mesmo das dissidências que afetaram o bloco de poder salazarista na crise de 1958-1959 (na sequência da candidatura de Humberto Delgado à presidência da República). Afirmando que o regime experimentava um intenso e irreversível processo de “desagregação”, o PCP apostava no “afastamento de Salazar” mediante uma “solução pacífica”, pendulando entre a via eleitoral e a via de um golpe militar. Para apressar tal “solução”, o partido acenava com uma “greve geral pacífica” que nunca preparou.
Com a precipitação efetiva das lutas de classes e a movimentação autônoma do proletariado urbano e rural (especialmente no Alentejo), a orientação da direção do PCP não teve como resultado somente a perda da influência do PCP no jogo político: desarmou amplamente o seu aparelho clandestino frente às respostas repressivas do regime à crise que este experimenta em 1958-1959 – novamente, a PIDE assestou duros golpes no partido.
Isolado na prisão de Peniche, Cunhal (que sequer foi informado do encaminhamento do V Congresso) esteve à margem dessa orientação da qual discordava por inteiro. Logo que se evadiu, atuou intensamente – no plano ideológico e no plano organizativo – para revertê-la radicalmente. Já num texto de dezembro de 1960 (“A tendência anarco-liberal na organização do trabalho de direção”) indicava as causas do fracasso da direção do PCP no nível da organização clandestina. Mas é no texto divulgado em março de 1961 – “O desvio de direita nos anos 1956/1959 (elementos de estudo)” – que Cunhal analisa, frontal e profundamente, os danos ocasionados pela orientação oficial vigente desde 1957.
Cunhal começa por indicar que a adoção da “solução pacífica” pela direção do PCP fundava-se numa transplantação mecânica – completamente equivocada – para a realidade portuguesa das teses oriundas do XX Congresso do PCUS (1956) acerca da possibilidade da “via pacífica” da transição ao socialismo. Cunhal argumenta que tais teses são válidas para muitos países, mas não para Portugal: tais teses, enquanto dizem respeito à transição ao socialismo, são estranhas à problemática portuguesa, uma vez que, no contexto lusitano, a questão real é outra – em Portugal, não se tratava de transitar para o socialismo: tratava-se de derrubar a ditadura fascista e conquistar as liberdades políticas. Nestas condições, a proposta da “solução pacífica” tanto revela um mimetismo servil às teses do XX Congresso do PCUS quanto a incapacidade para analisar a realidade portuguesa, a qual se afirmava querer transformar.
A incapacidade para operar “a análise concreta da realidade concreta” (tal como Lenin caracterizava o marxismo) – que, neste caso, mostra a ignorância do carácter fascista do regime salazarista – leva o PCP a substituir o caminho revolucionário para a conquista da democracia política (o “levantamento nacional”) por um arremedo oportunista, o “afastamento de Salazar” (exatamente a “solução pacífica”).
Esta substituição retira do partido a condição de vanguarda e dirigente, desarma a militância proletária (urbana e rural) e enfraquece a resistência democrática: processando-se a “desagregação” da ditadura, o partido passa a jogar em ilusões legalistas e constitucionais (sob um regime fascista!) e/ou no golpe militar. Para Cunhal, a “desagregação” deve ser levada em conta, mas ele afirma contundentemente que “um regime não cai pela sua desagregação […], mas pela ação revolucionária das massas”.
Se se toma a “desagregação” como o principal elemento para a derrota da ditadura fascista (e esta era a posição da direção do PCP), a iniciativa revolucionária das massas é marginalizada e os comunistas passam a desempenhar um papel secundário e lateral na luta pela democracia. Ao longo do seu texto, Cunhal demonstra que reside precisamente neste desvio de direita – consistente em assumir e difundir ilusões legalistas sob o fascismo e em confiar em alternativas golpistas – a causa das derrotas políticas e orgânicas sofridas pelo partido nos anos 1956/1959 (e o demonstra com o exame de inúmeros fatos da conjuntura portuguesa imediatamente anterior e posterior à “farsa eleitoral” de 1958, assim como da documentação do PCP).
Na sua análise, aliás, Cunhal não desconecta a atuação política do partido da estrutura organizacional que a implementa: a orientação política que confia na “desagregação” conduz ao “culto da espontaneidade” e este fragiliza o partido na sua relação positiva com a sociedade e em seu confronto com as forças da repressão – donde o “liberalismo”, a “falta de vigilância” e a “facilidade na promoção de quadros” que tiveram curso na estrutura clandestina do PCP daqueles anos.
Em síntese, Cunhal indica que a efetiva redução da influência do PCP naqueles anos – bem como muito de suas perdas orgânicas –, sob a orientação da “solução pacífica” (ultrapassado o partido pela ação combativa das massas trabalhadoras), estava intimamente ligada à incapacidade da direção para apreender o movimento social real que se desenvolvia sob a aparência imediata da sociedade portuguesa. Todo o seu argumento demonstra que os principais problemas político-ideológicos que então afetaram o PCP deitavam raízes na inépcia teórica dos dirigentes que conduziam o partido no rumo à “solução pacífica” (de fato, no rumo da direitização).
A conclusão do seu argumento é cristalina:
Se queremos que o Partido desempenhe o papel determinante que lhe cabe na luta pela liberdade política, temos de expurgar do Partido as concepções direitistas e oportunistas, que criaram fortes raízes a partir de 1956.
Não se trata de uma tarefa fácil. As concepções direitistas e oportunistas foram a «linha» oficial do Partido durante vários anos, foi dentro delas que se formaram militantes, enraizaram-se na maneira de ver as coisas e em hábitos de trabalho, e não será fácil varrê-las dum momento para o outro. Para varrê-las do Partido, impõe-se um combate amplo, aberto, enérgico e persistente, contra o desvio de direita que predominou nos anos 1956-59, impõe-se que exponhamos ao sol da crítica as suas raízes ideológicas, impõe-se que saibamos não apenas ganhar a concordância dos militantes, mas esclarecê-los e convencê-los.
Logo que saiu da prisão, Cunhal dedicou-se intensivamente, com outros camaradas, à tarefa que não julgava fácil. Rapidamente, já em meados dos anos 1960, seu combate resultou exitoso: no VI Congresso (1965), sob sua liderança inconteste, o PCP superou o “desvio de direita”, reatualizou a tese do “levantamento nacional” e retomou a sua vocação – ser a vanguarda do proletariado português. O informe de Cunhal a este congresso (Rumo à vitória ) deu nova orientação à política do PCP, preparando-o adequadamente para os confrontos decisivos que derivaram na derrubada do regime fascista e na instauração democrática.
Líder político, teórico e homem da cultura
O peso de Cunhal na história do PCP é indiscutível e imenso: sua intervenção organizativa imprimiu-lhe o caráter marxista-leninista na verdadeira refundação (“reorganização”) de 1940/1941; seu combate político-ideológico aos desvios direitistas e esquerdistas nos anos 1960 garantiu que o partido se livrasse do oportunismo e recusasse o aventureirismo; sob sua liderança, o PCP qualificou-se como a principal força da resistência democrática e, depois do 25 de Abril, como a expressão das mais profundas aspirações nacionais e democráticas.
Com a sua atividade política apoiando-se no reconhecimento do protagonismo das massas trabalhadoras e em sólidas convicções teóricas, adquiridas e desenvolvidas em contínuos estudo e pesquisa, Cunhal nada teve em comum com ocupantes de secretaria-geral burocratizados e rotineiros.
Dissemos já que Cunhal desenvolveu uma teoria da revolução portuguesa – e a afirmativa não é gratuita. No conjunto de escritos de Cunhal, a pesquisa da realidade portuguesa é constante – envolvendo da investigação histórica (As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média) a análises contemporâneas (Contribuição para o estudo da questão agrária). No citado Rumo à vitória… encontra-se a síntese de anos de estudo e da sua teoria de revolução portuguesa.
Mas Cunhal foi também um intelectual sofisticado – prova-o a sua excelente tradução de O rei Lear, de Shakespeare. Foi, de fato, um homem do mundo da cultura.
Artista plástico, produziu uma notável série de gravuras. Suas reflexões estéticas estão explicitadas em A arte, o artista e a sociedade. A sua obra de ficção, marcada pelo neo-realismo, é significativa: Até amanhã, camaradas, Cinco dias, cinco noites, A estrela de seis pontas, Um risco na areia, A casa de Eulália, Fronteiras, Sala 3 e outros contos e Lutas e vidas. Um conto.
A rica e polifacética obra/personalidade de Álvaro Cunhal, como se vê, desborda amplamente a dimensão estritamente política. As comemorações do seu centenário de nascimento seguramente também destacarão, para além da sua liderança, a magnitude da sua contribuição à cultura.
(*) José Paulo Netto é um destacado pensador marxista brasileiro. Doutor em Serviço Social, professor emérito da ESS da UFRJ e autor, entre outras publicações, de “Ditadura e Serviço Social - Uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64”, “Capitalismo Monopolista e Serviço Social”, “Crise do Socialismo e Ofensiva Neoliberal” e “Democracia e transição socialista”. Militante do PCB, foi preso pela ditadura militar. Esteve exilado em Portugal durante vários anos. É o presidente do Instituto Caio Prado Jr. (ICP).
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