Apagar o passado é um processo sistemático no Brasil. Há séculos, essa extinção da memória é um instrumento poderoso para perpetuar uma ordem social injusta, diz o colunista Philipp Lichterbeck (*).
No dia seguinte ao incêndio que destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro, houve uma manifestação na Quinta da Boa Vista. Cerca de mil jovens compareceram, especialmente estudantes universitários. Reparei numa menina que segurava um cartaz que dizia: "Luzia sobreviveu 13 milênios na natureza, mas não sobreviveu meio século na mão do governo."
"Luzia" foi a primeira brasileira. Ossos humanos mais antigos que os dela nunca foram encontrados no continente americano. Agora, ela virou cinzas.
Com ela, queimaram "vinte milhões de memória de alguma coisa tentando ser um país". Assim a jornalista Eliane Brum, que testemunhou o incêndio, descreveu de forma poética e certeira a tragédia.
Achei especialmente significativa a destruição de milhares de objetos de povos indígenas, alguns deles já extintos. Entre os itens estava uma coleção visual com material fotográfico de centenas de tribos do Brasil, colhido ao longo de séculos. É como se esses povos tivessem sido extintos uma segunda vez.
Apenas 520 mil reais por ano teriam sido necessários para salvar tudo. A soma equivale:
- a 0,04% do custo da reforma do Maracanã;
- ao custo de um juiz federal por ano;
- ao custo da troca de carpete do Senado, três anos atrás;
- ao valor dos brincos de turmalina da coleção de joias do ex-governador do Rio, Sérgio Cabral.
O cálculo foi feito por um internauta que postou a lista no Twitter.
Aliás, a soma também equivale a 2,4% do custo da construção do Museu do Amanhã. Hoje, o Brasil tem um Museu do Amanhã, mas não tem mais passado.
Pode soar paradoxal, mas parece que a história do Brasil não tem valor no próprio país. Não foi uma coincidência o Museu Nacional ter pegado fogo. Foi negligência criminosa. Há 14 anos, o então secretário estadual de Energia, Indústria Naval e Petróleo e hoje secretário de Educação, Wagner Victer, descreveu assim a situação do museu: "Vai pegar fogo."
Nada foi feito. Nos últimos dez anos, incêndios destruíram ao menos oito prédios com tesouros culturais e científicos do país. Parece que o fogo virou normalidade.
Há algo por trás de tudo isso. A ignorância responde a uma lógica: a sistemática destruição do passado brasileiro como instrumento de poder. Este serve para reproduzir e legitimar uma ordem social perversa, classificada pelas Nações Unidas como uma das cinco mais desiguais do mundo.
A destruição do passado foi especialmente eficaz durante a escravidão. Os proprietários tiraram dos escravos seus nomes e suas línguas. Frequentemente, brasileiros brancos têm orgulho de ter raízes alemãs ou italianas, mas qual é o negro que tem sobrenome africano e sabe de onde na África vieram seus antepassados?
Nada lembra essas atrocidades. É possível visitar algumas das belas fazendas históricas de café no estado do Rio de Janeiro. Os visitantes admiram a vida luxuosa dos antigos e atuais donos. Mas sobre a senzala que criou a riqueza prefere-se não falar. É como se não tivesse existido.
Quase metade de todos os escravos que foram forçados a cruzar o Atlântico vieram para o Brasil – cerca de quatro milhões. A maioria deles chegou ao Rio. Mas quase não existe memória sobre um dos maiores crimes da humanidade. Há o minúsculo Memorial dos Pretos Novos, na Gamboa, que luta para sobreviver em meio à falta de recursos.
Há também o Cais do Valongo, o maior marco da escravidão do mundo. Em julho de 2017, o Valongo passou a ser considerado Patrimônio Histórico da Humanidade, para, apenas um ano depois, correr o risco de perder o título por a prefeitura de Marcelo Crivella não cumprir uma série de obrigações.
O mesmo Crivella que, depois do incêndio no Museu Nacional, falou: "Incêndios ocorrem." Crivella é um talibã brasileiro. No Afeganistão, os talibãs detonaram estátuas de Buda milenares. No Rio, eles deixam, simplesmente, que a história se deteriore. Ou acabam diretamente com ela.
O centro do Rio, por exemplo, poderia ter um dos núcleos históricos mais completos e bonitos da América Latina, comparável ao de cidades no México, em Cuba ou na Colômbia. Mas, ao longo das décadas, a máfia formada por setor imobiliário e política construiu torres sem identidade sobre a história do Rio.
Será que alguém se lembra da Aldeia Maracanã? O prédio ao lado do Maracanã foi construído pelo Duque de Saxe em 1862 e doado em 1910 ao Serviço de Proteção aos Índios, comandado pelo Marechal Rondon. A ideia era construir um espaço de preservação da cultura indígena brasileira,e o local abrigou o Museu do Índio, criado por Darcy Ribeiro.
Antes da Copa, o edifício histórico deveria ser derrubado. Dizia-se que precisavam de espaço para o estacionamento de um shopping. São essas as preferências dos talibãs brasileiros: estacionamento e shopping! Somente protestos persistentes conseguiram impedir a demolição,e a cidade prometeu cuidar do prédio. E hoje? Está desmoronando.
Da mesma forma ignorante como lida com a sua história indígena e afro-brasileira, o Brasil lida com a ditadura militar. Onde estão os locais que lembram a ditadura brasileira? Não existem. Em vez disso, um candidato presidencial enlouquecido percorre o país gritando: "Vamos fuzilar a petralhada!". Depois, ninguém poderá dizer que não sabia dos planos dele. É assim que o fascismo começa.
A extinção da história do Brasil não é coincidência. Para um povo sem memória, é possível vender tudo, até mesmo planos para fuzilá-lo e o congelamento por 20 anos dos gastos destinados à Educação e à Saúde. É claro que o incêndio no Museu Nacional não foi planejado, mas não aconteceu por acaso.
(*) Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário