Guilherme Tardelli (*)
O poema “Coração do Mar”, de Oswald de Andrade, musicado por José Miguel Wisnik, foi reconstituído na voz de Elza Soares. São injetados à composição do modernista os dois versos finais, aqui escritos:
“Coração do Mar
É terra que ninguém conhece
Permanece ao largo
E contém o próprio mundo como hospedeiro.
Tem por nome: “se eu tivesse um amor”
Tem por nome: “se eu tivesse um amor”
Tem por nome: “se eu tivesse um amor”
Tem por bandeira um pedaço de sangue
Onde flui a correnteza do canal do mangue
Tem por sentinelas equipagens, estrelas,
taifeiros, madrugadas e escolas de samba.
É um navio humano,
Quente, negreiro, do mangue.
É um navio humano,
Quente, guerreiro, do mangue”.
A Mulher do Fim do Mundo também é uma imagem reconstruída, do poema Metade Pássaro (1941), de Murilo Mendes, mas vai além: é a personificação desta na cantora, “A mulher do fim do mundo/ Dá de comer às roseiras,/ Dá de beber às estátuas,/ Dá de sonhar aos poetas.” Elza é a voz que reúne todas as vozes e as canaliza num rompante de dor e resistência, como resposta.
A música homônima ao título do disco aproxima-se do surrealismo, estabelecendo várias conexões com Murilo Mendes, num mundo em que cada verso contém uma dor, a imagem potencialmente alegre do carnaval é a tristeza da mulher, que passou a “vida na avenida”, que deixou tudo lá, e livra-se desta para cantar a si mesma no mundo. E o canto se faz pelo canto. Mas não é um canto qualquer, é um canto que se adensa a cada nova imagem, com as dificuldades da mulher negra, ainda mais da mulher negra consciente da história e que resiste.
Elza arrasta seu canto até que, de voz rasgada pela idade, pela história, mostra o quanto ainda quer cantar, ainda quer agir. Os instrumentos vão acabando até que sobra uma guitarra e a voz dela apenas repetindo e repetindo: “Me deixem cantar até o fim”.
Clara Nunes, que também entoou a tristeza do povo, não poderia ser mais precisa: “E de guerra em paz/ De paz em guerra/ Todo o povo dessa terra/ Quando pode cantar/ Canta de dor”. Aproximando todos estes textos, chegamos à uma espécie de acúmulo de imagens do povo brasileiro, de modo que um artista colhe algo do outro e, acima de tudo, colhe algo do movimento da história. Vemos surrealismo – a mulher, que, em meio à destruição da Segunda Guerra Mundial, reaviva os objetos e os poemas e rosas – a dor do trabalhador, e a violência, que se repete. Tudo isso faz-se trabalho cotidiano das resistentes brasileiras, que cantam sobre esse horror e resistem, vibrantes.
Ontem foi um dia de grande comoção por Marielle, que não é única: é o fado de muitos negros e negras desde o navio negreiro aos assassinatos nas favelas. Então, coloco-nos em face do nosso maior poeta, Carlos Drummond de Andrade, no poema Visão 1944: “Meus olhos são pequenos para ver/ a massa de silêncio concentrada/ por sobre a onda severa, piso oceânico/ esperando a passagem dos soldados”.
Hoje, sigo em prosa, meus olhos são pequenos para ver os corpos, muitos corpos que se amontoam, mas que reavivam a flor do mundo às avessas com seu sangue; a flor que rompe o asfalto, ensopada em sua própria substância, surge lutuosa e brava.
Milhões foram às ruas ontem, por Marielle e Anderson e Amarildo e Rafael Braga e Cláudia e milhões sem nome, milhões desfigurados pelas mesmas armas, que poderiam libertá-los. A massa não é de silêncio, é de milhões de vozes prontas para agir.
Devemos prometer: nenhum nome será esquecido!
A flor, que brota do asfalto, responde e compreende Marielle, e mostra, em seu movimento, um sentido último: ela era socialista. Ela era militante, mulher, negra e socialista. Sua busca, além da defesa dos direitos humanos, complementava-se com a luta por um mundo novo, pelo fim do Capitalismo.
E milhões surgem nas ruas, milhões significam a flor, milhões na tristeza, milhões foram e são assassinados; e outros milhões, vivos, buscam tirar a tristeza das coisas significadas sem ênfase, buscam recuperar relações humanas, entre seres e não entre coisas no mundo. Buscam entender as coisas e ver nelas trabalho, ver nelas a humanidade, e não uma relação fantasmagórica entre elas mesmas. O fim do extermínio negro, das mulheres, e o fim da exploração do humano pelo humano eram o horizonte revolucionário de Marielle.
Na Avenida Paulista acendemos velas e marchamos, abrindo caminho pela cidade, rasgando o asfalto. A força não se perde, mas se concentra, e cresce.
Cada ato, cada depoimento emocionado, cada pessoa que se põe na rua, para enfrentar o horror, faz viver Marielle, Elza e milhões de vozes. Cada instrumento da bateria que vi ontem, cada par de olhos soturnos, cada grito, cada passo na rua, revelavam a revolta popular viva, Marielle viva, todos que caíram, vivos! Quanto mais eu suava e gritava, mais força aparecia, em mim, para seguir. Vi isso nos outros e vi a indignação organizada.
E até o fim vamos cantar, vamos cantar até o fim! Marielle é uma das mulheres do fim do mundo. E essa mulher é a mulher que anuncia um mundo novo, um mundo cujo homem não explora o homem, um mundo sem classes, sem racismo, sem machismo, sem extermínio dos pobres, negros, despossuídos. E, por isso, pelo fim do mundo, nossa luta, como escreveu o camarada Mauro Iasi, nunca termina… nunca… nunca termina!
Marielle, presente! Hoje e sempre!
Aos nossos mortos, nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta!
(*) Militante da União da Juventude Comunista, núcleo USP.
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