sexta-feira, 16 de junho de 2017

Miguel Urbano Rodrigues, cidadão do mundo

                                                                    

José Paulo Netto (*)

Morreu Mi­guel Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues (Moura, 2.8.1925-Vila Nova de Gaia, 27.5.2017). O seu fa­le­ci­mento foi ob­jeto de in­con­tá­veis obi­tuá­rios na im­prensa eu­ro­peia (por­tu­guesa, es­pa­nhola, fran­cesa), la­tino-ame­ri­cana (e, ob­vi­a­mente, bra­si­leira) e afri­cana (em es­pe­cial, mas não ex­clu­si­va­mente, nos Pa­lops – os Países Afri­canos de Língua Ofi­cial Por­tu­guesa). Ex­plica-se: Mi­guel Ur­bano, por­tu­guês do Alen­tejo, tornou-se um ci­dadão do mundo – co­nheceu vá­rias de­zenas de países de quatro con­ti­nentes, por muitos anos viveu no Brasil e, no fim do sé­culo 20, al­guns em Cuba.

Mi­guel Ur­bano, porém, ja­mais foi um tu­rista aci­dental: tornou-se ci­dadão do mundo porque, por onde passou, par­ti­cipou di­reta ou in­di­re­ta­mente das lutas so­ciais que ali se tra­vavam, porque in­ves­tigou, do­cu­mentou e de­nun­ciou – na con­dição de jor­na­lista – a mi­séria, a opressão e a in­jus­tiça; e porque sempre ori­entou a sua con­duta cí­vica pelos ideais so­ci­a­listas.

Se acaso o meu even­tual leitor exa­minar, ale­a­to­ri­a­mente, pelo menos uma de­zena dos obi­tuá­rios a que me re­feri, ve­ri­fi­cará que a ati­vi­dade de Mi­guel Ur­bano é so­bre­tudo evo­cada pelo no­tável jor­na­lista que ele foi. Co­meçou, ainda jovem, quando fre­quen­tava o curso de Le­tras na hoje Uni­ver­si­dade de Lisboa, no Diário de No­tí­cias (1949-1956) e de­pois, ainda ca­pital por­tu­guesa, no Diário Ilus­trado (até 1957). 

Pres­si­o­nado pela cen­sura sa­la­za­rista, deixou o país e fixou-se no Brasil: aqui es­teve de 1957 a 1974, foi edi­to­ri­a­lista de O Es­tado de S. Paulo e, na pri­meira me­tade dos anos 1970, editor in­ter­na­ci­onal da re­vista Visão – ao mesmo tempo em que par­ti­ci­pava do Por­tugal De­mo­crá­tico, órgão dos an­ti­fas­cistas por­tu­gueses edi­tado, entre 1956 e 1975, também em São Paulo.

A aven­tura que foi o se­questro do “Santa Maria”, em 1961 – a fa­mosa ope­ração Dul­ci­neia, ca­pi­ta­neada por Hen­rique Galvão (1895-1970) –, tornou-o am­pla­mente co­nhe­cido e, de algum modo, cons­ci­en­tizou-o da ne­ces­si­dade de um com­bate mais or­ga­ni­zado para a der­ru­bada do re­gime de Sa­lazar. 

Sim­pá­tico ao so­ci­a­lismo, três anos de­pois se vin­culou ao Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês/PCP (certa feita, ob­servou que esta de­cisão, que mar­caria toda a sua vida, fora in­flu­en­ciada pela lei­tura, em 1961, do ro­mance O ca­minho das tor­mentas, de Alexei Tolstoi).

A Re­vo­lução dos Cravos pos­si­bi­litou o seu re­gresso a Por­tugal. Logo as­sumiu a re­dação do Avante!, órgão ofi­cial do PCP e, em 1976, a di­reção de O diário, jornal de massas que cir­culou até 1990. A partir de 1986, di­vidiu o seu tra­balho edi­to­rial com a in­ter­venção po­lí­tica ins­ti­tu­ci­onal: co­meçou na As­sem­bleia Mu­ni­cipal de Moura, passou como de­pu­tado pela As­sem­bleia da Re­pú­blica (1990-1995) e chegou à As­sem­bleia Par­la­mentar do Con­selho da Eu­ropa. 

Em­bora ti­vesse raízes em suas ori­gens fa­mi­li­ares (seu pai, abas­tado pro­pri­e­tário alen­te­jano, co­la­bo­rara na Pri­meira Re­pú­blica por­tu­guesa com Afonso Costa, o mata-frades), a prá­tica da po­lí­tica ins­ti­tu­ci­onal não o en­tu­si­as­mava: sua paixão era o jor­na­lismo. E essa paixão o im­pul­si­onou, já no sé­culo 21, ao exer­cício jor­na­lís­tico através de novos ins­tru­mentos: em 2002 criou o site re­sistir.info e, em 2006, o diário.info.

Com suas co­lunas e seus textos re­di­gidos em prosa es­cor­reita, cris­ta­lina e di­reta pu­bli­cados em de­zenas de veí­culos de vá­rias partes do mundo, jus­ti­fica-se a ên­fase que os obi­tuá­rios deram à sua ati­vi­dade jor­na­lís­tica – e, em Por­tugal, ficou mais que com­pro­vado que Mi­guel Ur­bano ocupa, na im­prensa do país, no sé­culo 20, um lugar ímpar.

Penso, con­tudo, que essa ên­fase pode obs­cu­recer, ou deixar na sombra, ou­tras di­men­sões do seu fazer, como é o caso da sua in­ter­venção como or­ga­ni­zador cul­tural, de que é em­ble­má­tica a cri­ação dos En­con­tros In­ter­na­ci­o­nais de Serpa, eventos de res­so­nância que Mi­guel Ur­bano or­ga­nizou em 2004, 2007 e 2010, reu­nindo pen­sa­dores de vá­rios países. 

Pode, ainda, mi­ni­mizar a sua re­flexão teó­rico-po­lí­tica, exem­pli­fi­cada em en­saios como Op­ções da re­vo­lução na Amé­rica La­tina (1968), Re­vo­lução e vida (1977) e Nó­madas e se­den­tá­rios na Ásia Cen­tral (1999). E isto sem men­ci­onar as suas in­cur­sões li­te­rá­rias: O homem de negro (1958), Do fundo do tempo (1979), Alva (2001) e A me­ta­mor­fose de Efi­génia (2010). 

Vale lem­brar que, assim como a po­lí­tica ins­ti­tu­ci­onal, também a li­te­ra­tura en­volveu outro fa­mi­liar seu: o irmão Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues (1923-2013), igual­mente um co­nhe­cido opo­sitor do re­gime de Sa­lazar, foi fic­ci­o­nista de no­meada, pre­miado pela As­so­ci­ação In­ter­na­ci­onal de Crí­ticos Li­te­rá­rios e tendo as suas obras com­pletas edi­tadas pela D. Qui­xote (Lisboa).

Por outra parte, julgo que de­vemos con­si­derar que, subs­tan­ti­va­mente, Mi­guel Ur­bano foi um es­critor. Não creio que se aplica a ele a imagem de um po­lí­grafo: seja como jor­na­lista, como pu­bli­cista po­lí­tico, como pen­sador fino (leia-se, por exemplo, a Me­di­tação des­con­tínua sobre o en­ve­lhe­ci­mento, de 2009), Mi­guel Ur­bano não tinha a lin­guagem apenas como meio – ela era ar­te­sania e arte.

Provam-no as suas me­mó­rias, os be­lís­simos dois vo­lumes de O tempo e o es­paço em que vivi (2002): nelas, re­la­ções e ex­pe­ri­ên­cias pes­soais são trans­fi­gu­radas em evo­ca­ções que apre­endem o es­sen­cial do mo­vi­mento so­ci­o­cên­trico de um homem que se dispôs, du­rante a se­gunda me­tade do sé­culo 20, a in­ter­pretar e trans­formar o mundo.

Talvez caiba aqui, a fi­na­lizar, uma nota pes­soal. Meu pri­meiro en­contro com Mi­guel Ur­bano ocorreu em São Paulo, em fi­nais de 1973; de­pois nos re­vimos em Por­tugal, em 1976 e 1977. Não apro­fun­damos re­la­ções e, anos de­pois, quando me tornei cor­res­pon­dente no Brasil do seu O diário, pas­samos por alto as ra­zões dessa cor­dial dis­tância. Julgo que havia ra­zões po­lí­ticas para re­la­ções tão cau­te­losas: à época, Mi­guel Ur­bano me iden­ti­fi­cava, equi­vo­ca­da­mente, como um “eu­ro­co­mu­nista” – e, à época, essa qua­li­fi­cação era muito pouco sim­pá­tica a mem­bros do PCP. Só nos apro­xi­mamos mesmo em me­ados dos anos 1980, quando ele saudou com en­tu­si­asmo um en­sai­o­zinho meu sobre a Re­vo­lução dos Cravos. A partir daí e ao longo das dé­cadas de 1990 e 2000, tor­namo-nos bem che­gados.

O meu even­tual leitor não sabe o es­forço que fiz para es­crever, sem emoção, esta pouca de li­nhas sobre o Mi­guel Ur­bano. A no­tícia de sua morte foi, para mim, como um soco na boca do estô­mago. Sei que, sem este meu amigo e ca­ma­rada, o mundo de que ele foi ci­dadão pleno ficou mais pobre.


Leia também:

Re­en­contro com o Brasil – ar­tigo de Mi­guel Ur­bano Ro­dri­gues es­crito em 2014.


(*) José Paulo Netto é pro­fessor da Fa­cul­dade de Ser­viço So­cial da UFRJ e autor de di­versos li­vros e ar­tigos de ori­en­tação mar­xista.

Pu­bli­cado ori­gi­nal­mente no Blog da Boi­tempo.

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