terça-feira, 1 de novembro de 2016

Oitenta anos a enterrar Lenine

                                                               

Francisco Martins Rodrigues

O leninismo é um mundo, como tem sido bem demonstrado ao longo das intervenções neste colóquio (*). Gostaria de falar aqui hoje da política leninista na fase de preparação da revolução, trazendo o testemunho da minha experiência pessoal enquanto militante comunista português.

Ainda eu estava no PCP, já lá vão mais de 40 anos, e já me confundia a diferença enorme entre o “leninismo” que nós praticávamos e os textos do próprio Lenine. A intervenção do PC em Portugal parecia bastante avançada a nós, comunistas daquele tempo: unir o povo, com os operários na primeira linha, para derrubar a ditadura fascista e ganhar uma democracia avançada. 

Mas então descobri que Lenine, na luta contra o czarismo, punha as coisas em termos completamente diferentes. Nós proclamávamos aos antifascistas: “O que nos separa nada é, comparado com o que nos une” – Lenine acentuava a necessidade de “paralisar a instabilidade, a ambiguidade e a perfídia da burguesia democrática” (1). 

Nós dizíamos à classe operária que ela devia estar na vanguarda, como a mais esforçada e combativa – Lenine dizia: “Devemos ajudar o proletariado a elevar-se do papel passivo de motor ao papel activo de guia, a passar de defensor subalterno de uma liberdade truncada a defensor totalmente independente de uma liberdade completa, em proveito da classe operária” (2). 

Nós aliávamo-nos à pequena burguesia urbana, mais activa e politizada – Lenine dizia que os camponeses, alheados da política, incultos e famintos, é que eram o verdadeiro aliado do proletariado, porque ao exigir a terra criavam condições para subverter a ordem instituída. Nós resumíamos toda a nossa estratégia e a nossa táctica ao derrube do fascismo – Lenine dizia que “não se pode falar dos objectivos políticos imediatos enquanto não se esclarecerem as questões essenciais das tarefas do proletariado na nossa revolução (…), enquanto não se vir como se agrupam as classes e os partidos…” (3).

Numa palavra: nós procurávamos pôr de lado tudo o que dificultasse a unidade imediata – Lenine procurava pôr de lado tudo o que, na luta imediata, impedisse o papel dirigente do proletariado.

Que respondiam os dirigentes do PCP às nossas perplexidades? Que Lenine tivera certamente razão, fora o mais genial dos revolucionários, etc., mas que isto já não podia ser assim porque as novas condições exigiam dos comunistas uma capacidade muito maior de assumir como suas as reivindicações de todo o povo, unir todas as camadas não-monopolistas, unir a nação contra o fascismo e o imperialismo estrangeiro, construir amplas frentes de luta pela paz…

Só que esta justificação era coxa: onde mais do que na Rússia de 1905 era necessário ganhar todas as camadas da população para o derrube da autocracia, para o fim da servidão, para fazer transformações democráticas? E, no entanto, Lenine cuidara sempre em delimitar correntes no campo dos que lutavam pela liberdade, sem medo de afastar possíveis aliados; achava mesmo “indecente” o “medo de isolar o proletariado do povo pequeno-burguês” (4). Com essa orientação permitiu que, no ano de 17, o proletariado russo se agigantasse e partisse ao assalto do poder. O que mudara, afinal, para tornar inaplicável o modo leninista de fazer política?

A diferença não podia ser explicada pela mudança das condições. Fora a estratégia que mudara. Pouco a pouco, imperceptivelmente, o leninismo fora-se tornando imprestável para os partidos comunistas (e falo aqui sobretudo da Europa, que nos diz mais directamente respeito). 

À medida que se foram extinguindo as réplicas daquele tremendo abalo revolucionário que sacudira a Rússia com a revolução dos sovietes, os comunistas, por muito que admirassem os bolcheviques, não vendo como próxima a instauração da ditadura do proletariado, acossados por um clima social desfavorável, receosos do isolamento, consideraram inaplicável a demarcação leninista entre as posições do proletariado e as da burguesia democrática.
Assim, enquanto se proclamava sem descanso a validade universal do leninismo, este foi sendo soterrado sob uma sucessão de revisões, em camadas sobrepostas.

A primeira foi a chamada política das frentes populares, adoptada no 7.º Congresso da Internacional Comunista, em meados dos anos 30, com o argumento de que “no tempo de Lenine não existia o terrorismo fascista”. Não que as frentes antifascistas, em si, tivessem algo de mal. O mal era dirigirem-se os esforços de aliança para a burguesia e não para os pobres da cidade e do campo, pensar que o preço a pagar pela frente era bajular os social-democratas, calar os objectivos próprios dos comunistas, adoptar uma linguagem progressista nebulosa, conceber a luta contra o fascismo como a fusão das posições de classe contraditórias numa corrente democrática comum.

Anos mais tarde, em plena guerra mundial, novo passo: a Internacional Comunista foi dissolvida “porque os partidos já estavam temperados e maduros” – na realidade porque as potências ocidentais exigiam o fim da Internacional para abrir a segunda frente contra Hitler. A dissolução da IC – aliás, já agonizante por ter sido rebaixada a instrumento da política externa da URSS – levantou os últimos obstáculos à dispersão oportunista que empurrava cada partido a moldar-se às condições impostas pela burguesia do seu país.

Após a guerra, veio a teoria das revoluções “democrático-populares”, meias revoluções de um tipo novo, que não instauravam nem a ditadura do proletariado sobre a burguesia, nem a ditadura da burguesia sobre o proletariado – “porque agora, com o poderio da União Soviética, já é possível uma ampla aliança das classes antimonopolistas”. Para além dos abortos de capitalismo burocrático a que deu lugar na Europa de Leste, esta teoria serviu para afundar mais ainda os partidos europeus na prática da colaboração de classes.
                                                                
Por fim, no 20º Congresso do PCUS, em 1956, invocou-se mais uma vez a nova situação internacional como argumento para a revisão kruchovista: “Lenine estava certo na sua época, mas no seu tempo não havia armas atómicas”. E portanto os comunistas deviam abdicar de objectivos revolucionários a bem da coexistência pacífica, ganhar a aliança com os social-democratas à custa do compromisso de uma mirífica “passagem pacífica ao socialismo”, meter no limbo o conceito maldito da “ditadura do proletariado” que matava à nascença qualquer veleidade de aliança porque a burguesia democrática não o tolerava (e com boas razões!).

Se olharmos na sua sequência esta série de “actualizações” – e há nela uma linha de continuidade que passa dos stalinistas para os anti-stalinistas –, vemos que se tratou de uma revisão estratégica. Lenine cuidava permanentemente de libertar os interesses a longo prazo do proletariado da ganga “democrática” geral em que sempre se encontram soterrados, justamente porque apontava para o alvo da revolução proletária. O “leninismo” reciclado que lhe sucedeu precisava de dissolver os objectivos proletários na política democrática “de todo o povo” justamente porque adoptara como meta a introdução gradual de reformas democratizantes no regime burguês.

Nada parecia, porém, mais distante do oportunismo do que a intransigência exibida pelos PC europeus dos anos 50. Perseguidos e caluniados pelas suas burguesias, eles defendiam a pé firme a “pátria do socialismo”, lutavam contra o imperialismo, mantinham acesa a luta contra a social-democracia, defendiam a independência e unidade do partido. De tal modo que a sua luta parecia até por vezes assumir um radicalismo maior que nos tempos de Lenine.

Com uma diferença de fundo, contudo. O empenhamento de Lenine em distinguir e separar os interesses do proletariado dos das classes intermédias fora abandonado para dar lugar à luta do “campo da paz e da democracia” contra o grande capital e o imperialismo – capaz de englobar num movimento conjunto a pequena burguesia e o proletariado. 

O combate ao imperialismo, para se tornar aceitável a todos, passou de anticapitalista e revolucionário a democrático-humanista-pacifista. A crítica aos partidos social-democratas transformou-se na denúncia dos manejos das suas cliques – só negando base social à social-democracia se podia manter de pé o mito da unidade de interesses entre proletariado e pequena burguesia. 

A disputa da hegemonia proletária no movimento democrático foi substituída pela proclamação do “papel dirigente do partido” – e com esta transferência trocou-se a luta política em campo aberto pelo manobrismo sem princípios. A luta interna nos partidos degenerou na caça aos “renegados, sabotadores e provocadores”, acabando por instituir um unanimismo gerador de podridão – porque reconhecer que a pequena burguesia tentava ganhar o partido por dentro poria em causa a “unidade popular”.

A ideologia “unitária” esterilizou o movimento comunista. Quanto mais cedências os partidos faziam na sua linha política à pressão burguesa democrática, na ambição de ganhar espaço na “grande massa da população”, mais o proletariado era reduzido à reivindicação económica e se apagava na cena política, mais os partidos trocavam a polémica viva pela solene enunciação de dogmas, mais autorizados se consideravam, como indiscutida “vanguarda”, a todas as manobras.

Na esperança obtusa de virem a ser reconhecidos como os melhores defensores dos interesses de toda a nação, os partidos comunistas sacrificaram a identidade política do proletariado. Repetiram, com outra linguagem e noutras condições, a deriva oportunista que Lenine apontara aos antigos social-democratas: “Renúncia às posições de classe e à luta de classes por receio de não influenciar ‘a grande massa da população’ (leia-se: a pequena burguesia)” (5).

E como na luta de classes não há espaços vazios, esta magnânima abdicação dos interesses próprios e exclusivos do proletariado redundou na ocupação dos partidos pela ideologia e pelos objectivos políticos da pequena burguesia. Os partidos comunistas foram tomados pelas fracções radicais da nova pequena burguesia assalariada, em crescimento acelerado por toda a Europa, interessada em regatear espaço junto da burguesia dominante usando como suas armas a luta do proletariado (devidamente depurada de objectivos revolucionários) e o apoio ao regime da URSS, o temido rival do imperialismo. Assim o proletariado se tornou o servente do movimento democrático burguês, sob o emblema da foice e do martelo.

Não é agora o momento de fazer o historial das posições reformistas, eleitoralistas, chauvinistas assumidas pelos partidos comunistas europeus, mesmo no mais aceso da sua resistência à “Guerra fria”. Os tons radicais e a terminologia “marxista” com que se ocultavam, juntos com a imagem “socialista” da URSS, permitiram que se arrastasse por decénios o seu apodrecimento. Foi só quando, a partir dos anos 60, a classe governante “soviética” iniciou os primeiros passos para negociar com o imperialismo a sua reconversão ao capitalismo privado, que os aparelhos dos partidos europeus, já corrompidos até à medula, consideraram esgotada a opção “leninista” e se puseram também à procura de uma via de capitulação. 

Seguiu-se logicamente a renegação aberta do leninismo e o dar a mão à palmatória da social-democracia: Lenine tinha sido “maximalista”, porque queria levar tudo longe de mais; “jacobino”, porque estava obcecado pela conquista do poder; “redutor” e “sectário”, porque afastava os aliados; “fraccionista”, porque criava contínuas guerras dentro do partido…

Assim o leninismo se transformou em antileninismo, à sombra dos vivas a Lenine.

E na pequena corrente que hoje aqui e além retoma a bandeira do leninismo? Eu creio que a defesa que fazemos da politica leninista ainda é dúbia, reticente e muitas vezes mais formal do que real. Criou-se um certo consenso de que as ideias políticas de Lenine teriam envelhecido irremediavelmente perante as transformações sociais profundas do último século. 

A demarcação de interesses entre proletariado e pequena burguesia em que o leninismo apostou, hoje já não seria operativa nas nossas sociedades avançadas, em que se diluíram as antigas fronteiras entre proletários miseráveis e proprietários opulentos, e a esmagadora massa da população assalariada defronta o “punhado de monopolistas sem pátria”. Há uma opinião generalizada, embora nem sempre claramente articulada, de que a linguagem de classe rigorosa pode ser muito útil para estudos de marxismo mas na política prática não funciona, conduz ao doutrinarismo, ao obreirismo, ao isolamento.

Esquece-se porém que as transformações sociais profundíssimas que as metrópoles capitalistas vêm atravessando não atenuam mas agudizam o seu antagonismo essencial, entre produtores e apropriadores de mais-valia, ao fazerem proliferar as camadas assalariadas auxiliares da extracção de mais-valia ou puramente parasitárias. 

A imagem “popular” e facilmente aceite de um antagonismo universal entre os magnates capitalistas e “os mais de 90 por cento da população reduzidos ao trabalho assalariado” esquece a complexa e vastíssima rede de camadas intermédias que beneficiam, em maior ou menor medida, de suplementos da mais–valia, distribuídos pela classe dominante para garantir a eficácia e estabilidade do seu sistema de exploração. Lenine, já no seu tempo, dava-se ao trabalho de desfibrar, no espaço entre o proletariado e a burguesia, as posições de semiproletários, pequeno-burgueses, semi-pequeno-burgueses, aristocracia operária, burocracia operária, etc. É esse imenso trabalho de demarcação política e ideológica que falta realizar nas condições actuais, para que volte a emergir a identidade do proletariado.

Querer formular uma estratégia e uma táctica de luta do proletariado pelo fim do capitalismo sem tomar em conta aquilo que distingue o proletariado de todas as outras classes e camadas, pode proporcionar todos os êxitos e vantagens políticas que se queiram – mas conduz de certeza ao desastre quando chegar o momento em que os diferentes interesses das classes saem da relativa indefinição ou adormecimento dos períodos de paz social e se revelam brutalmente à luz o dia –, quando se entra em crise revolucionária. Aí, torna-se antagónica a postura dos que precisam de abolir o sistema capitalista e dos que simplesmente querem regatear melhores posições dentro do sistema e à custa dos de baixo. Vimo-lo claramente, nós, comunistas portugueses, durante a crise revolucionária de 1974-75.

A ideologia democrática pode proporcionar – e proporciona de facto – popularidade, êxitos eleitorais, vantagens, mas, quando chega a hora da verdade, revela a sua natureza antiproletária. Aí, o proletariado que ao longo dos anos anteriores de escaramuças não ganhou têmpera política e ideológica e se habituou a servir de auxiliar da burguesia será incapaz de fazer prevalecer os seus interesses. Foi o que também constatámos dolorosamente em Portugal no Outono de 75.

Aprendamos com Lenine que a conquista de alianças de classe não é a troca dos objectivos do proletariado por imaginárias metas não-revolucionárias, capazes de seduzir a pequena burguesia; nem é a troca da voz independente e exigente do proletariado pelos discursos unitário-diplomáticos que agradam a todos e nada esclarecem – é armar o proletariado com a capacidade de arrastar atrás de si as camadas vacilantes.
Aprendamos com Lenine que criticar os sectores burgueses que ficam contíguos ao proletariado não prejudica a luta contra o inimigo principal, reforça-a. De facto, como se pode dar real poder ofensivo à luta das massas contra a actual onda de pilhagem e terror lançada pela burguesia, com debilidades pequeno-burguesas como a “justa retribuição do trabalho”, a “altermundialização”, o “Estado de direito democrático”, o “respeito pelos direitos humanos”, a “Europa social”, a “luta por um mundo melhor”, se não mostrarmos diariamente ao proletariado o sinal de classe pequeno-burguês das propostas conciliadoras, reformistas, pacifistas, alienantes que diariamente lhe são apresentadas? Sem a hegemonia da política proletária dentro dele, esses movimentos, por muito positivos que sejam os seus impulsos espontâneos, degeneram continuamente em sonhos patetas de humanizar e domesticar o capitalismo.

Há quem estude o leninismo em busca de fórmulas que nos dêem a receita mágica para o êxito. Tais fórmulas não existem. O mundo muda continuamente e decorar fórmulas é o caminho mais certo para nos perdermos. Uma só linha de rumo extraio do leninismo: distinguir continuamente os interesses políticos do proletariado dos da pequena burguesia; ver tudo pelos olhos da única classe que está interessada na liquidação até ao fim do capitalismo, na expropriação da burguesia. Desde que tenhamos essa linha sempre presente encontramos as respostas políticas de cada dia. Pelo menos foi isto que eu aprendi do leninismo.

(*) Este artigo foi apresentado, em forma abreviada, nas VIII Jornadas Independentistas Galegas, dedicadas ao “80.º aniversário de Lenine”, no dia 6 de Maio, em Compostela. Ver notícia noutro lugar desta revista.

(1) Lenine, Duas tácticas da social-democracia na revolução democrática, ed. Estampa, Lisboa, 1975, p. 10.

(2) Lenine, Oeuvres, ed. du Progrès, Moscovo, 1977. Tomo 12, p. 505.

(3) Id., p. 126.

(4) “A propósito da revolução nacional”, Maio de 1907. Oeuvres, tomo 12, p. 409.

(5) “A situação e as tarefas da Internacional Socialista”, Novembro de 1914. Oeuvres, 1973, tomo 21, pp. 29-30.



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