Há muitas outras formas de enfrentar a questão dos recursos públicos, se é que o problema apontado pelo governo realmente existe. Entre essas formas, haveria o combate à sonegação. Segundo o sítio sonegômetro, os sonegadores se apropriam de cerca de 10% do PIB, cerca de R$ 1,5 bilhão por dia! Por que o governo prefere atacar a educação, a saúde, a justiça, a segurança, a previdência, a ciência e a tecnologia em lugar de atacar os sonegadores?
Otaviano Helene (*)
Em junho passado, o governo Temer encaminhou a Proposta de Emenda Constitucional 241 (PEC 241), que limita o crescimento dos gastos públicos, durante 20 anos, à inflação. As consequências dessa PEC, caso aprovada, serão enormes, pois anula, na prática, todos os efeitos positivos das vinculações de recursos constitucionais com saúde, educação, ciência e tecnologia, duramente conquistados.
Para garantir aquele objetivo, a PEC adiciona alguns artigos às disposições transitórias da Constituição. Um deles simplesmente cancela, por vinte anos, as vinculações dos investimentos em saúde (pelo menos 15% da receita líquida da União) e educação (pelo menos 18% da receita de imposto da União e 25% dos estados e municípios.
A redação é clara: “A partir do exercício financeiro de 2017, as aplicações mínimas de recursos a que se referem o inciso I do § 2º e o § 3º do art. 198 (investimentos em saúde), ambos da Constituição, corresponderão, em cada exercício financeiro, às aplicações mínimas referentes ao exercício anterior corrigidas na forma estabelecida pelo inciso II do § 3º e do § 5º do art. 102 (correção no máximo igual à variação do IPCA do IBGE) deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.
O sonho da educação igualitária e para todos vira pesadelo
Caso essa PEC seja aprovada, voltaremos mais do que três décadas quando, em 1983, os investimentos em educação pela União foram fixadas em, no mínimo, 13% da arrecadação de impostos (aumentado para 18% na Constituição de 1988), e no caso dos estados e municípios, em no mínimo 25% (no caso de algumas constituições estaduais e leis orgânicas municipais, esse percentuais foram ampliados).
O que pode significar essa perda, na prática? Nos últimos 20 anos, o Produto Interno Bruto brasileiro cresceu, em termos reais (acima da inflação), cerca de 70%, já incluída a estimativa de decrescimento de 3,8% em 2015. Não há razões para imaginar que a variação do PIB nos próximos 20 anos venha a ser significativamente diferente daquela observada nos últimos vinte. Assim, se a partir de agora os gastos públicos crescerem segundo a inflação (ou seja, no limite máximo que a PEC permite, o que pressupõe até algum otimismo), não incorporando o crescimento do PIB, a educação perderá, e muito, sua participação na economia do país.
Para ser mais preciso, os investimentos diretos em educação serão reduzidos em cerca de 40%. Os recursos, atualmente de pouco mais do que 5% do PIB, cairão para cerca de 3% do PIB até 2036, um padrão que nos colocará, quase em meados do século 21, em uma situação como aquela do final da década de 1990, um retrocesso totalmente inaceitável e que nos recolocará entre os países mais atrasados de todo o mundo no que diz respeito à capacidade de superar atrasos educacionais.
Fruto de muitas lutas, o uso do PIB como um referencial para o financiamento público da educação está incorporado em praticamente todas as discussões relevantes. Esse referencial foi inclusive usado em textos legais quando da aprovação do Plano Nacional de Educação 2001/2011, que previa investimentos de 7% do PIB (valor vetado pelo então presidente da República).
Apesar desse veto, a vinculação dos investimentos educacionais com o PIB passou a ser cada vez mais aceita, sendo parcialmente incorporada à Constituição em 2009, embora ainda sem valor definido. Ainda que com alguma dose de ilusionismo, a referência aos 10% do PIB aparece como meta no Plano Nacional de Educação, o que não pode deixar de ser computado como uma vitória. Mas agora, com a PEC 241, todas essas conquistas e lutas desaparecerão.
Caso a PEC seja aprovada e a limitação dos gastos públicos seja aplicada em cada setor e ente federado, como é intenção já declarada por seus defensores, os 9,57% do ICMS paulista destinados às universidades estaduais também perderão valor em relação ao PIB estadual. Ainda que o ICMS cresça em termos reais (além da inflação) nos próximos 20 anos, como ocorreu nos últimos vinte, esse crescimento não poderá ser repassado às universidades estaduais paulistas, simplesmente por ser inconstitucional.
Caso a realidade econômica média dos próximos 20 anos se equipare à dos últimos 20 anos, o valor real dos recursos destinados às universidades paulistas no fim do período estará reduzido para pouco mais do que a metade do valor atual, afetando gravemente as políticas de permanência estudantil, os contratos em dedicação integral ao ensino e à pesquisa, a gratuidade da educação, a expansão do ensino superior de qualidade, a pesquisa científica e tecnológica...
Outros setores
Não apenas a educação perderá. A previsão constitucional de investimento de no mínimo 15% da receita corrente da União em saúde também deixará de valer. Não importa se a população cresce ou envelhece, se o PIB cresce, se a arrecadação cresce, se epidemias surgem ou se novas tecnologias vierem a permitir e exigir novos recursos: os gastos públicos em saúde estão, na melhor das hipóteses, congelados pela Constituição.
As fundações estaduais de amparo à pesquisa científica e tecnológica também terão suas participações no PIB fortemente reduzidas: se hoje a Fapesp, por exemplo, tem um orçamento da ordem de 0,07% do PIB paulista, em vinte anos poderá ter sua participação reduzida para 0,04%. Evidentemente, os demais recursos públicos para ciência e tecnologia também sofrerão redução em relação à economia nacional, mesmo que não sejam vinculados a arrecadações públicas.
Como todas as demais atividades dependentes da capacidade econômica e financeira do setor público, a previdência também será afetada caso a proposta de emenda constitucional seja aprovada, com uma redução de sua participação, em relação ao PIB, da ordem de 40%, independentemente do crescimento ou não do número de idosos ou aposentados. Assim, não haverá o que fazer: ou muito menos gente estará incluída no sistema previdenciário, ou as remunerações cairão muito, ou um pouco de cada uma dessas coisas.
Atualmente, o setor público brasileiro dispõe de cerca de um terço do PIB. Esse valor é muito inferior ao que se observa em países organizados, ricos ou não, nos quais o setor público, ao dispor de 50% do PIB ou mesmo mais em muitos casos, consegue responder à demanda, oferecendo bons serviços comparativamente à realidade nacional.
Com a proposta, os gastos públicos brasileiros cairão para um patamar próximo aos 20% do PIB, situação próxima daquela em que o país se encontrava ao final da ditadura militar e bem antes dos direitos criados direta ou indiretamente pela Constituição de 1988. Isso nos colocará entre os países mais atrasados do mundo, comprometendo ainda mais a capacidade do setor público em responder às necessidades da sociedade.
Além de educação, saúde, previdência, ciência e tecnologia, serão sacrificadas as áreas de cultura, justiça, assistência social e segurança, bem como os projetos habitacionais, de infraestrutura, de transportes e tudo o mais que depende do setor público, sejam em nível federal, estadual ou municipal.
Punir muitos para privilegiar rentistas e sonegadores
Há muitas outras formas de enfrentar a questão dos recursos públicos, se é que o problema apontado pelo governo realmente existe. Entre essas formas, haveria o combate à sonegação. Segundo o sítio sonegômetro, os sonegadores se apropriam de cerca de 10% do PIB, cerca de R$ 1,5 bilhão por dia! Por que o governo prefere atacar a educação, a saúde, a justiça, a segurança, a previdência, a ciência e a tecnologia em lugar de atacar os sonegadores?
As alíquotas de impostos diretos são ridicularmente baixas no Brasil, mesmo em comparação com o que se aplica em países liberais, como os EUA. As alíquotas de impostos sobre heranças e outros ganhos que não correspondem ao trabalho, como rendimento de títulos públicos ou participação no lucro, também são ridicularmente baixos. Por que sacrificar estudantes, professores, trabalhadores da área de saúde, pacientes aposentados etc., além do desenvolvimento cultural, científico e tecnológico do país para, em detrimento destes, privilegiar quem ganha dinheiro sem trabalhar e sem ter trabalhado?
A PEC 241 é inaceitável, mesmo que seja amenizada, tirando-se um bode aqui ou um cabrito ali. Com ela, melhorar os serviços públicos e promover o desenvolvimento cultural e social do país passará a ser proibido pela Constituição. Em resumo, a PEC 241 fará com que o desenvolvimento social e cultural do país seja inconstitucional!
(*) Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, ex-presidente da Adusp e do Inep, autor do livro “Um diagnóstico da Educação Brasileira e de seu financiamento”.
Blog: www.blogolitica.blogspot.com
(Com o Correio da Cidadaniia)
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