Fábio Bezerra (*)
A Medida Provisória que modifica o currículo do ensino médio anunciada no dia 22 de setembro pode ser considerada como um dos maiores retrocessos dos últimos 40 anos à educação no Brasil. A MP alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 sem diálogo com a sociedade, a não ser com o Conselho de Secretários Estaduais de Educação, e está na contramão da Conferência Nacional de Educação na qual participaram dezenas de entidades e associações ligadas à educação.
Ela ocorre em detrimento a diversas reivindicações de entidades de classe ligadas à Educação, sem o devido diálogo com as mesmas. Preferiu-se impor a MP, de cima para baixo e em meio a um repertório de ajustes e reformas neoliberais que restringem direitos e condições adequadas aos serviços públicos mais essenciais.
Sob a justificativa de que os Índices de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) estão estagnados desde 2011 e de que a carga horária das disciplinas é muito extensa e pouco produtiva, o Ministério da Educação, de uma só vez, restringiu no currículo escolar, disciplinas como Filosofia e Sociologia, Educação Física e Artes, além de enquadrar as demais disciplinas em quatro grandes áreas de conhecimento, facultando à Base Nacional Comum Curricular o que será ofertado.
Isso significa que dependendo do novo Parâmetro Pedagógico, essas disciplinas, assim como outras, poderão ser diluídas e enquadradas em um único conteúdo, o que reduzirá efetivamente a quantidade de profissionais por áreas específicas, acoplando disciplinas por áreas comuns, tais como biologia e química, perdendo-se com isso, a devida apreciação do conteúdo e o desenvolvimento cognitivo dessas matérias.
Além disso, a Medida Provisória possui um duplo sentido conservador. O primeiro, visa reduzir significativamente o quadro do funcionalismo do magistério e assim promover os ajustes, entenda-se : “cortes” de despesas com os servidores públicos; o segundo sentido é o de promover ataques a disciplinas que sempre incomodaram as elites, tais como a filosofia e a sociologia, que possibilitam uma reflexão mais crítica e questionadora sobre a realidade social e o sentido de nossa existência.
Há ainda outra questão que chama a atenção e que deve ser denunciada.
Outra incoerência e confusão proposital é o anúncio da valorização da “educação integrada”, como sinônimo de educação “educação integral”. Ora, a educação integrada é um dos princípios defendidos pelo movimento de educadores há anos e que defende a junção das disciplinas da base comum com as disciplinas técnicas de modo integrado, possibilitando a formação de um cidadão apto ao mundo do trabalho mas em condições de dar prosseguimento aos seus estudos acadêmicos e que possa ter uma base epistemológica completa, crítica e abrangente.
A proposta faz essa confusão com o ensino de tempo integral (geralmente em dois turnos) que necessariamente não corresponde ao conceito referido acima e que pode vir a se tornar mais um paliativo do que uma solução, pois as contradições em que a educação pública vivencia hoje estão determinadas mais pela falta de investimentos diretos e valorização dos servidores, do que pela simples redistribuição de carga horária e ou a redução de disciplinas nos currículos.
A MP aumenta a carga horária anual de 800h/a para até 1400h/a, sem estabelecer um mínimo de dias letivos- o que abre um enorme precedente para que as Secretarias Regionais de Ensino, estabeleçam calendários acima dos atuais 200 dias letivos. Além disso submete à formulação futura da Base Nacional Comum Curricular quais os conteúdos que serão incluídos no ensino de cada uma das macro áreas de ensino (Linguagens, Matemáticas, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Formação Técnica).
Apenas Matemática e Português estariam garantidas nos três anos do ensino médio, possibilitando que as demais disciplinas possam ficar de fora do restante do currículo escolar, retalhando dessa forma a condição de uma aprendizado mais completo e geral. Por sua vez, a MP também atinge os currículos dos cursos superiores de formação de docentes; estes deverão seguir como referência a Base Nacional Comum Curricular (ainda em discussão) determinando dessa forma mudanças também no ensino superior onde os futuros profissionais em educação irão se formar. Há a possibilidade de alterações profundas nesses currículos de modo a levar ao fechamento de cursos específicos.
Outra grande contradição é a possibilidade do fim do ensino politécnico nos Institutos Federais, pois a Medida Provisória condiciona a separação do ensino técnico das demais disciplinas a partir da metade do ensino médio, reeditando o velho modelo tecnicista e utilitarista de educação, que reproduz em última instância a nefasta dicotomia estrutural entre sujeitos que são condicionados para o mundo do trabalho e outros que são adestrados para o vestibular. (É importante que se destaque nesse quesito, que por mais que o atual Governo tente justificar tal Medida Provisória em defesa da formação de futuros profissionais para o mercado, como um maior investimento na Formação Técnica e Profissional em detrimento da formação unitária; isso por si só não garante de fato aumento de possibilidade de empregabilidade e desenvolvimento. Essas duas condicionantes só se equacionam conjugadas com um conjunto de outras ações que façam a economia crescer e de fato, abra condições para a abertura de postos de trabalho.
Caso contrário teremos a reedição da política tecnicista operada nos anos 1971 a 1979, quando no afã do milagre econômico, por compulsoriedade, os Governos Militares obrigaram a implementação da modalidade técnica em todas as escolas do antigo 2º grau e o que se viu foi um grande contingente de profissionais técnicos desempregados e que por haver uma grande oferta e baixa demanda, ainda foram utilizados para pressionar os preços dos salários de profissionais de nível superior para baixo, aumentando dessa forma a lucratividade contratual das empresas frente a crise dos anos 70).
Ainda em se tratando dos IF’s, a MP em seu artigo 36, faculta a possibilidade de terceirização da modalidade técnica a partir de outras instituições, imponde dessa forma a eminência de fechamento de diversas unidades de ensino e o fim do investimento na expansão da rede tecnológica iniciada em 2008.
Por fim, a discrepância chega ao ponto de se eliminar a exigência mínima de formação pedagógica para o exercício do magistério, precarizando mais ainda a qualidade do ensino, através da contratação, sem concursos públicos, de “profissionais com notório saber” para cobrir o déficit de professores especializados em algumas áreas, tais como: química, física e biologia, ao invés de encarar de frente os motivos dessa realidade; além disso, abre um grande precedente para o apadrinhamento político nas escolas públicas de pessoas próximas de Diretores e Secretários Municipais de Educação, usando o espaço público para fins escusos.
Em nome de uma escola de base integral, flexível e antenada com os interesses formativos dos estudantes, o que se pretende é a redução massiva do quadro de servidores com desligamentos de servidores concursados e fechamentos de vagas, aumento da carga horária de trabalho, redução sistêmica de diversas disciplinas, de modo a precarizar seu conteúdo, supervalorizando algumas áreas com perspectivas utilitaristas em detrimento de outras, além da redução a médio e longo prazo da possibilidade de condição de alunos de escolas públicas e vindos da classe trabalhadora, terem condições e equidade de acesso ao ensino superior.
Há a promessa de “aumento de investimentos” e “auxílio” às escolas que aderirem ao novo modelo, mas como acreditar nessa falácia – em tempos de austeridade impostas pelo Mercado Financeiro e seus agentes monetários -, sendo que nos últimos anos o MEC foi o ministério que mais teve cortes orçamentário, além de tramitar no Congresso, PL(s) como a que congela por 20 anos investimentos na educação!!!!
Dos sofismas discursivos da “Pátria Educadora” do Governo Dilma, onde foi pensado inicialmente a essência dessa MP e onde foi chocado o “Ovo da Serpente” com o PL nº 6840/2013 do Deputado Federal Reginaldo Lopes ( PT-MG), ao repertório do Programa: “Pinguela para o Passado” do (Des)Governo Temer, o que podemos constatar inequivocamente é a tentativa de adaptar à fórceps a educação pública aos interesses e imposições do mercado e seus paladinos de plantão.
Essa MP deve ser entendida como mais uma ação conservadora e retrógrada em curso no Brasil e que associada a tantas outras em tramitação no Congresso, irão condicionar menos direitos à classe trabalhadora e restrições a qualquer possibilidade de mudança estrutural no status quo dessa sociedade, cada vez mais alienada, instrumentalizada e subordinada aos ditames neoliberais.
A Educação de modo geral, sempre foi um campo estratégico em questões políticas, tanto em seus aspectos sociais e a sua funcionalidade com relação a formação do perfil técnico e cognitivo dos trabalhadores, quanto em relação à instrumentalização ideológica do Estado a partir do ensino ou ao condicionamentos de acesso ao conhecimento. Foi assim em 1759 quando o Marquês de Pombal promoveu a primeira reforma educacional em Portugal e suas colônias diminuindo a influência jesuíta no Estado; foi assim ao longo do século XX quando da aprovação da 1ª LDB em 1961 e quando da resistência do Movimento Estudantil aos acordos MEC/USAID em 1968, ou as manifestações de rua em Paris que culminaram com grandes levantes estudantis nesse mesmo período.
A luta pela Democratização do Ensino, pela ampliação de investimentos na formação de nosso povo e valorização da escola pública como espaço legítimo de acesso ao conhecimento e possibilidade de alteração das determinações estruturais que se impõe à classe trabalhadora, ganha mais um componente retrógrado, transvestido de modernidade com todos os penduricalhos reluzentes (flexibilidade, racionalização, autonomia) que iludem os mais desavisados.
Nesse momento cabe àqueles que lutam pela Educação Pública, de Qualidade, Democrática e Popular a tarefa de aprofundar o debate sobre a MP de modo a revelar suas contradições, limites e incoerências para que se possa fortalecer a unidade de ação contra mais esse ataque.
(*) Fábio Bezerra é professor e membro do Comitê Central do PCB.
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