Mauro Luis Iasi (*)
Foi assim. Começou mais ou menos quando os jovens ocuparam as escolas. Aprendiam e ensinavam, uns aos outros, sem diário de classe, sem avaliação e nota. Sentavam-se em roda e conversavam. Cantavam, liam, falavam alto, sorriam e se punham sérios. Limpavam os banheiros, faziam comida, arrumavam as carteiras, pintavam paredes, dando um jeito nas lousas e janelas quebradas.
Alguns levavam comida e cobertores, livros e músicas, poemas e esperanças... E eles foram, assim do nada, construindo uma nova escola. Pelo menos é o que achavam àquela época. Mas, aos poucos, vindo das sombras onde se escondem entre as luzes da cidade, começaram a brotar pessoas. Não se sabia que ainda havia pessoas. Os moradores de rua trouxeram pão com manteiga e chocolate quente. Os ladrões de comida ficaram pasmos: afinal, como é que a comida chegava às escolas e eles não ganhavam nada?
Os camponeses, então, resolveram que não poderia faltar comida para a moçada e decidiram imitar os estudantes (que os haviam imitado) e ocupar as terras. E lá plantavam comida, uma coisa que muita gente tinha esquecido o que era, acostumados que estavam em produzir emulações de comida em caixas coloridas e vistosas cheias de química, espessantes, acidulantes e sabores artificiais idênticos ao natural. Para plantar precisavam de instrumentos de trabalho, máquinas e caminhões... Os estudantes precisariam de lápis, cadernos, panelas, janelas e portas, fogões e geladeiras, carteiras e tintas, tijolos e cimento...
Foi assim que eles apareceram. “Sei cozinhar”, disse um senhor, “sei fazer tijolos”, disse uma senhora. “Conserto panelas”. Um sabia pintar paredes, outros levantar paredes, trabalhar a madeira, o ferro, o barro, o pano. Sabe-se lá onde estavam este tempo todo, sofrendo de dura invisibilidade, presos pela magia das coisas, reificados em seus corpos de metal, sua pele de plástico, atrás das embalagens nas gôndolas do supermercado, em sua existência coisal, desempregados, demitidos, descartados, explorados... E os operários ocuparam as fábricas e decidiram que a partir daquele momento produziriam objetos úteis e foram conversar com os estudantes, os camponeses, as pessoas e quanto mais produziam para satisfazer necessidades, menos coisas eram, as coisas e eles mesmos.
É verdade que não sabiam fazer de tudo e erravam muito. Era muito divertido ver aquelas coisas todas erradas, como casa de parede caiada que mostra a tinta que já foi sua, a pedra e barro de que é feita, e tudo foi ficando muito bonito. Sem embalagem e sem propaganda, às vezes torta, às vezes feia, como a gente que fazia as coisas... bonitas.
Foi neste momento que, meio assim envergonhadas, meio sem jeito, foram aparecendo pessoas que diziam que sabiam de algumas coisas que podiam ajudar... Quem sabe... Saíram de seus escaninhos, seus laboratórios, suas salas, seus currículos lattes. Saíram de seus esconderijos e dos livros, e foi assim que as universidades foram ocupadas e alguns professores descobriram, atônitos, que também ali havia estudantes e funcionários, e que do lado de fora também havia pessoas com necessidades.
Fizeram então uma pergunta que há muito tempo tinham abdicado de formular: o que é que vocês querem? Foi engraçado porque justamente eles que viviam fazendo perguntas e respondendo suas próprias perguntas, e discordando entre eles de suas respostas, nem sempre sabiam responder às perguntas daquela gente toda que ocupavas as escolas, as terras, as fábricas... Todos riram muito disso e depois ficaram sérios buscando as respostas.
E não faltaram mais professores, médicos, enfermeiras, engenheiros, assistentes sociais, agrônomos, psicólogos, filósofos, sociólogos, pedagogos, dentistas, biólogos, químicos, físicos e de tudo um pouco. A diferença é que agora eles vinham em todas as cores. Eram índios, eram negros e negras, eram gente que olhando assim, parecia gente, igual àquelas que viviam lá fora. Um desavisado diria que eram pobres, pelo jeito simples de falar e de se vestir, porque andavam de ônibus, moravam perto e comiam do mesmo pão.
Porque comiam do mesmo pão e respiravam do mesmo ar, porque ficou difícil de diferenciar um do outro, começaram a se apaixonar loucamente, de todos os jeitos possíveis. E foi tanta paixão, tanto beijo, tanto tesão, que ninguém mais achou que precisava catalogar como homo, hetero, trans, bi e combinou chamar tudo de amor e foi assim que aconteceu. A família foi ficando uma coisa tão grande que não cabia mais, nem no estatuto, nem na lei, então, foi assim que de tão grande cabia o jeito de cada um.
Como todo mundo estava ocupando tudo, os loucos ocuparam os manicômios e decidiram em assembleia geral... Fechar todos os manicômios. Saíram pelas ruas e diziam para as pessoas... “Estou triste”, “dói muito”, “enfim vocês entenderam... “Você gosta de mim”, “me dá um cigarro. Decidiu-se que não era crime ser triste, nem louco, para ser punido com remédio e contenção, mas mereciam e precisavam de tratamento e compreensão, então, os loucos foram assim se misturando com a vida e foi bom. Os loucos ficaram mais vivos e a vida mais louca... O que foi bom.
E os cantores cantaram, os poetas poetaram, os pintores pintaram, os escultores esculpiram, os escritores escreveram. No começo ninguém se deu conta, mas tinha gente cantando em escola ocupada, no ônibus, nas escadas do Teatro Municipal, tinha gente recitando poesia em sala de aula, dando aula em teatro, uma bagunça gloriosa.
Num dia destes, de tamanha confusão, um policial que foi prender uma mulher que havia roubado comida de um supermercado, resolveu perguntar por que ela tinha feito aquilo e diante da resposta que foi para dar comida para seus filhos que estavam com fome, foi lá e fez uma compra e deu pra ela. Vejam só!
Quando quase tudo estava ocupado foi que ouviram gritos vindos do palácio do governo. O povo foi até lá com cuidado. Não foi passeata nem manifestação, foram lá por curiosidade. Na sala presidencial estavam Temer e Cunha, engalfinhados rolando pelo chão disputando aos tapas a faixa presidencial. “É minha, é minha! Eu peguei antes”!
O pessoal que havia ocupado os CAPS disse que ia cuidar deles. Havia outros que sofriam de comportamento tão estranho e que nem tinham percebido que tudo já estava ocupado.
Eram empresários que sentados no canto de suas casas em posição fetal ficavam repetindo “é meu, é meu”, banqueiros agarrados a malas de dinheiro com olhos vidrados e loucos dizendo “posso comprar qualquer um que queira se vender, outros agarrados a espingardas gritavam eu mato, eu mato”, parlamentares aos berros choravam “se me der um cargo eu voto”, homens altos e raivosos de terno com um saiote cor de rosa de bailarina que berravam “eu não sou gay, não sou”, gente sentado na frente da TV tentando, sem conseguir, achar a Globo News e até mesmo pessoas comuns com camisas da seleção brasileira que olhavam assustadas pelas janelas esperando que os militares as salvassem.
Quando o último pedacinho do mundo foi ocupado e as pessoas se reuniram para decidir se já era hora de passar do reino da necessidade para o reino da liberdade é que apareceu a última surpresa. Um operário pediu a palavra e falou: “reino é o cacete... Proponho que seja uma República”!
Não sei, só sei que foi assim. Todos os fatos aqui narrados são rigorosamente verdadeiros, apenas alguns deles não aconteceram... Ainda.
(*) Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB.
(Com o Correio da Cidadania)
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=frontpage&Itemid=34
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