Guilherme C. Delgado(*)
Ainda no início da década dos anos 90 do século passado, um brilhante economista – alemão e brasileiro de coração, Albert Hirschman (falecido em 2014) – escreveu um livro instigante, até pelo título: “A Retórica da Intransigência: Perversidade, Futilidade e Ameaça” (Cia de Letras 1992). Esta obra é atualíssima para desvendar a verdadeira guerra ideológica que o campo ultraconservador (ou reacionário, para ser fiel à versão original em inglês do livro) ora move contra a política social que, diga-se de passagem, não é apenas a do governo Dilma, como mostrarei adiante, mas a da Constituição de 1988.
Hirschman, com muita acuidade, desvenda o discurso reacionário e imobilista, que consciente ou inconscientemente move-se contra as políticas sociais promotoras da igualdade social, de um lado, e principalmente por uma direita latino-americana e internacional, já sem qualquer vínculo com inspirações liberais da Revolução francesa. Mas também por setores de uma esquerda ultraortodoxa, que nega, “a priori”, a possibilidade concreta da igualdade no sistema capitalista.
A primeira justificação ideológica é o “argumento da perversidade” – as ações públicas, ainda que bem intencionadas, provocariam frutos adversos, tais como preguiça, ociosidade, comodismo, ao invés de melhorias na igualdade social. A segunda justificação ideológica seria o “argumento da futilidade”, que pressupõe estruturas profundas e intactas da desigualdade social, insuscetíveis de mudança pela ação da política social.
O terceiro pretexto ideológico é o “argumento da ameaça”, utilizado por muitos dos que, reconhecendo os méritos da política social, veem-na, contudo, como grave ameaça à estabilidade econômica, em razão dos recursos fiscais que consome, daí porque estarão sempre com tesoura na mão a recomendar cortes, pressuposto alegado à salvação do edifício da estabilidade.
Os três “argumentos” ou pretextos da “Retórica da Intransigência” (até porque argumentar requer racionalidade), principalmente os da perversidade e da ameaça, estão de maneira tácita ou explícita presentes nas repetidas entrevistas, artigos, documento partidários (Ponte para o Futuro, do PMDB) dos muitos áulicos brasileiros atuais do “ajuste fiscal estrutural”. Como estes agora assumem com toda liberalidade as rédeas do governo de transição do vice Michel Temer, o ensaio prometido é demolir de vez o Estado Social da Constituição de 1988.
Na conjuntura temos observado vários ataques aos programas sociais gerados nas gestões dos governos do PT, especialmente ao Programa Bolsa Família (14 milhões de beneficiários diretos, com benefício familiar teto de 168 reais por família e orçamento para 2016 de 28 bilhões de reais, equivalente a 0,5% do PIB). A tese de perversão é usada e abusada para desqualificação dos beneficiários.
Mas não nos iludamos. A bola da vez é outra: é o pretexto da “ameaça’, que representariam em conjunto os cerca de 30 milhões de benefícios monetários da seguridade social vinculados ao salário mínimo: 18,3 milhões da Previdência Social, 3,9 milhões da Assistência Social (BPC) e cerca de 8 milhões do Seguro Desemprego. E isto é direito social da base da pirâmide e como tal corresponde a cerca 10 vezes o valor do Bolsa Família. Todos têm seus valores, de direito, vinculados ao piso constitucional previsto no Artigo 201 (parágrafo segundo) da Constituição Federal. Removido este vínculo, a questão do piso de benefícios sociais passaria a ser assunto administrativo do Ministério da Fazenda, a serviço do “ajuste fiscal”, como assim o fora na época dos governos militares.
Os titulares desses direitos sociais ora são aposentados e pensionistas do INSS, seja como idosos, órfãos e viúvas, segurados da Previdência Social, que recolheram seus salários de contribuição no nível mínimo ou contribuíram com seus tempos de trabalho comprovados no regime de economia familiar da Previdência Rural. Ora, são pessoas comprovadamente oriundas da extrema pobreza os benefícios de prestação continuada para idosos e deficientes contemplados pela Assistência Social. Mas há também os atendidos por seis meses pelo Seguro Desemprego, ainda mais necessário agora quando o país enfrenta grave crise de desemprego.
Mas como essa massa de necessitados recebe 880 reais por beneficiário e o seu número é de 30 milhões, entra compulsoriamente no discurso da ‘ameaça’ ao decantado ajuste fiscal. Logo se lhes irão acrescentar desqualificações da “retórica da intransigência”, desde as mais farisaicas, oriundas dos áulicos da estabilidade econômica, às mais banais, brandidas agressivamente por uma idiotia circulante em certos círculos da classe média, ávida por emitir sentenças condenatórias contra os pobres. Campanhas ideológicas de mídia completarão o trabalho, sob o argumento do sacrifício necessário dos pobres ou da desnecessidade do salário mínimo vinculado às necessidades básicas daqueles que perderam involuntariamente capacidade de trabalho ou emprego.
Esse é o enredo principal com que nos depararemos no governo tampão do vice-presidente Temer – uma repetição histórica na análise do autor da “Retórica da Intransigência”, agora em doses abusivas de farsa.
(*) Guilherme Delgado é economista e pesquisador aposentado do IPEA.
(Com o Correio da Cidadania)
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