Leonardo Avritzer
Do Le Monde Diplomatique
Apenas a participação social, aliada às políticas sociais e ao financiamento público, pode dar continuidade a um processo de redução da desigualdade, que hoje, mais do que nunca, precisa estar associado a um aprofundamento da democracia no país.
As eleições deste ano passarão para a história como um dos processos eleitorais mais conturbados da nossa jovem democracia. Foi uma votação em que o país se dividiu até o último momento. Duas questões estiveram em jogo: a primeira foi a continuidade de um projeto de governo que mudou intensamente o país no campo das políticas sociais.
O Brasil, uma nação viciada em desigualdade social, reduziu esta mais rapidamente que qualquer outro país nos últimos dez anos. A segunda questão é uma radicalização no campo da participação política. O PT foi o partido que introduziu e reabilitou a participação social, mas recentemente ela esteve contida em certos setores e áreas de política do governo federal. Como ampliá-la também será objeto deste artigo.
Iniciemos nossa análise pelo primeiro ponto, as políticas sociais – as políticas de inclusão social iniciadas ou aprofundadas em 2003. A Constituição de 1988 estabeleceu grandes mudanças na organização das políticas sociais no Brasil, a começar pela universalização da saúde, a transformação da assistência social em direito e a abertura de enormes incentivos para processos de participação social.
É verdade que esses processos se iniciaram em níveis locais e foram bastante erráticos durante os governos federais do PSDB. O financiamento da saúde foi debatido, questionado, mas não era bem resolvido naquele momento. Ele ficou em média em 3% do PIB ao longo dos governos do PSDB. Na última década, ele passou de aproximadamente R$ 400 para R$ 700 per capita e alcançou em torno de 4% do PIB.
Os gastos em educação também aumentaram muito e foram de 4% para 6% do PIB. Por último, o Bolsa Família foi introduzido em 2003 e alcançou a marca de 0,5% do PIB. Todos esses programas sociais conjuntamente são responsáveis por uma diferenciação do Brasil em relação a nossos congêneres sul-americanos.
O Brasil arrecada em torno de 35% do PIB em impostos e gasta em torno de 10% em políticas sociais. Tal panorama está mudando o mapa da desigualdade, e é em nível local que ela está diminuindo, como é possível ver no Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2013 (disponível em http://www.pnud.org.br/arquivos/idhm-do-brasil.pdf).
Essa é a primeira questão relevante para pensar o segundo turno. Aécio Neves, apesar de ter dito formalmente que, se eleito, manteria as principais políticas sociais, também disse que readequaria a carga tributária ao nível dos demais países latino-americanos que, em média, arrecadam de impostos entre 20% e 25% do PIB.
Os principais economistas vinculados à candidatura de Aécio, entre os quais cabe destacar Armínio Fraga, acenaram com a redução da meta de inflação para 3%, o que só seria possível com aumento da taxa de juros e, consequentemente, da parcela da carga tributária comprometida com o pagamento da dívida pública (ver O Globo, 3 out. 2014). Desse modo, a primeira questão relevante nesta eleição esteve ligada à continuidade das políticas sociais e do processo de redução das desigualdades.
Três mecanismos foram responsáveis por essa diminuição da desigualdade: os aumentos reais do salário mínimo, os programas de transferência de renda e as políticas sociais. É provável que os três mecanismos fossem fortemente revistos em um cenário de governo Aécio.
Uma vez vencida a eleição por Dilma, coloca-se na agenda a institucionalização das políticas sociais enquanto políticas de Estado, isto é, elas têm de se tornar independentes do governo. A redução da desigualdade deve ser um objetivo do país, e o eleitorado votou nessa direção.
O segundo ponto fundamental para pensar os últimos doze anos é o processo de participação social, uma das bandeiras mais fortes do PT, introduzida em nível local em cidades como Porto Alegre e Belo Horizonte, e trazida para o nível federal a partir de 2003. A participação social nos governos Lula e Dilma se centrou nas conferências nacionais, que alcançaram o número de 138 até 2013, 74 realizadas nos governos Lula e 23 nos três primeiros anos do governo Dilma (as demais foram realizadas antes de 2003).
O governo Lula realizou entre 2003 e 2010 74 conferências nacionais das quais participaram 6,5% da população brasileira. Além da participação desse contingente próximo de 10 milhões de pessoas (ou, excluídas as crianças, 6 milhões de adultos), 41,8% dos respondentes de uma pesquisa feita com uma amostra representativa da população afirmaram ter ouvido falar das conferências nacionais, o que é bastante significativo.
Por último, vale a pena salientar o perfil dos participantes das conferências nacionais: mulher em 51,2% dos casos, com quatro anos de escolaridade (26,9%) ou com ensino médio completo em 20,3% dos casos. Sua renda varia entre um e quatro salários mínimos em 52,2% dos casos. Assim, a primeira observação que eu gostaria de fazer sobre o padrão de participação nas conferências nacionais é que ele é muito semelhante ao padrão de participação no nível local. Mais uma vez, essa foi uma das questões que esteve ameaçada desde o início das eleições, quando uma forte onda conservadora se formou contra o Decreto n. 8.243, que estende a participação para diversas outras áreas do governo federal. No entanto, vale a pena pensar também no que é necessário avançar com relação à participação social no segundo mandato do governo Dilma.
Sobre a participação social no Brasil, é possível afirmar que, neste momento, existe certa cisão em termos das áreas de políticas públicas que ela deve influenciar. Já no início do segundo mandato do presidente Lula ocorreu uma cisão desse campo com a tensão ligada às políticas participativas na área do meio ambiente.
Vale mencionar aqui a questão dos transgênicos e a dos arranjos institucionais que resultaram das audiências da BR-163 – aspectos fundamentais do movimento de meio ambiente que não se tornaram agendas do governo Lula, mas ficaram isoladas no meio ambiente. A divisão fundamental, porém, se deu em relação a Belo Monte, no início do governo Dilma.
O conflito gerado pela construção da usina foi o primeiro enfrentamento de porte em torno de políticas participativas no Brasil envolvendo de um lado os movimentos sociais e de outro o governo do PT. O governo federal realizou quatro audiências públicas para o licenciamento de Belo Monte. Todas foram contenciosas e consideradas problemáticas pelo procurador da República Rodrigo Costa e Silva em dois aspectos fundamentais: o primeiro foi o tempo e a condução do debate; o segundo foi a questão do critério da participação dos indígenas. Vale a pena lembrar que todas as audiências públicas relativas a Belo Monte foram organizadas pela Eletronorte.
O conflito em torno da construção de Belo Monte é apenas um indicador da disputa relacionado à participação social, que hoje está completamente segmentada no interior do governo federal. Algumas áreas deste, em especial aquelas ligadas às políticas sociais, se tornaram muito participativas, mas com enormes diferenciações internas.
Ao mesmo tempo, outras áreas das políticas públicas tiveram suas propostas de participação fortemente questionadas. Um dado elaborado pelo Ipea fornece uma imagem ainda mais clara dessa segmentação. Em entrevistas com os 140 gestores de programas do governo federal, apenas 10% daqueles da área de infraestrutura afirmaram utilizar a participação social.
Assim, podemos dizer que no primeiro mandato de Dilma acabou sendo gerado um conflito entre as áreas participativas e as não participativas do governo federal. Entre as não participativas ou que deixaram de ser organizadas participativamente, vale a pena mencionar o meio ambiente, em particular as decisões sobre obras de infraestrutura na Amazônia. Esse parece ser um dos grandes desafios à participação social no Brasil neste segundo mandato.
Por fim, é importante fazer algumas considerações sobre a questão da participação social no Brasil e do combate à corrupção. Esta tem como fonte o sistema de financiamento de campanha e a falta de controle público nas obras de infraestrutura, que em geral são negociadas com os grandes financiadores privados de campanha.
Sabemos que esse sistema é inadequado, e a verdade é que o envolvimento do PT com essa modalidade de financiamento eleitoral foi desastrosa. As formas de corrupção quase naturais nesse campo não apenas são exploradas seletivamente contra os governos do PT, como também abaixam a moral e a confiança dos militantes do partido.
Os resultados eleitorais para deputado no estado de São Paulo mostram claramente a rejeição dessas práticas pelo eleitorado do PT. No entanto, não devemos nos iludir: o discurso anticorrupção feito hoje pelos setores conservadores piora a qualidade da representação parlamentar porque não vem associado a práticas alternativas de gestão.
O melhor exemplo são os deputados federais mais votados em São Paulo: Celso Russomano e Tiririca. Eles certamente não irão melhorar a qualidade de nossa representação parlamentar. Assim, o que se coloca como alternativa para a corrupção são novas práticas de gestão participativa estendidas para o campo da infraestrutura. Essa perspectiva só pode ser realizada por meio do Decreto n. 8.243, que sinaliza na direção de uma intensa ampliação da participação social. Apenas a participação social, aliada às políticas sociais e ao financiamento público, pode dar continuidade a um processo de redução da desigualdade, que hoje, mais do que nunca, precisa estar associado a um aprofundamento da democracia no país.
(*) Leonardo Avritzer, doutor em sociologia pela New School for Social Research (1993) e pós-doutor pelo Massachusetts Institute Of Technology (MIT), é professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais.
Ilustração: Daniel Kondo (Com Le Monde Diplomatique/Diario Liberdade)
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