Igor Waltz (*)
A Lei de Anistia (Lei 6.683/79) não pode ser usada para beneficiar torturadores, agentes da ditadura e autores de crimes contra a Humanidade. Essa foi a sentença do Tribunal Tiradentes III, um ato simbólico organizado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” na noite desta terça-feira, 18 de março, no teatro da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). A decisão, unânime entre os jurados, condenou o Estado brasileiro por sua omissão diante da impunidade de crimes cometidos durante os Anos de Chumbo.
A decisão atinge não só autores de crimes, como também todos os agentes estatais que planejaram, ordenaram ou auxiliaram a perpetração das violações, por ação ou omissão. A condenação se estende ainda aos dias atuais: responsabiliza todos integrantes de órgãos públicos dos poderes executivo, legislativo e judiciário que seguem descumprindo a sentença da OEA.
Aprovada pelo Congresso Nacional em 1979, ainda durante a ditadura, a Lei de Anistia restabelece os direitos políticos de quem se opôs e foi perseguido pelo regime. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) eximiu de punição agentes do Estado que torturaram, mataram e desapareceram com os corpos de opositores do regime ditatorial.
Organizada para contestar a versão do Supremo, a corte simbólica foi batizada de Tribunal Tiradentes III em referência aos tribunais políticos de 1983 e 1984 que julgaram e condenaram, respectivamente, a Lei de Segurança Nacional e o Colégio Eleitoral, também obras políticas da ditadura que então terminava. Apesar de o tribunal, que durou aproximadamente 3 horas, não ter valor jurídico, o ato buscou mobilizar a sociedade para cobrar a enorme dívida do Estado brasileiro com a verdade e a justiça. A intenção é que a iniciativa motive medidas reais no sentido da sentença proferida.
“Naquela época, aprendemos que muitas vezes um júri simulado proclama sentenças mais verdadeiras que os tribunais tradicionais”, lembrou o ex-deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado de vários presos políticos na época dos generais. “Desde então, ninguém mais foi condenado com base na Lei de Segurança Nacional. E a condenação do Colégio Eleitoral ajudou a campanha pelas Diretas Já.”
Convidado a fazer parte do júri, o jornalista Audálio Dantas não pode se unir ao corpo de jurados por motivos pessoais, mas fez questão de representar a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no evento. “Trata-se de um evento importante, pois estamos às vésperas de lembrar os 50 anos do golpe. A Lei de Anistia foi uma conquista dos movimentos democráticos, mas ela foi desvirtuada e não representa mais aspirações da maioria da sociedade”, afirmou.
Dantas, que hoje preside a Comissão da Verdade, Memória e Justiça dos Jornalistas Brasileiros, acredita que a Lei de Anistia hoje é uma contradição com os artigos da Constituição, uma vez que deixa impunes autores de crimes como tortura, considerados inafiançáveis. “É perfeitamente cabível que o Congresso Nacional tenha o direito de discutir e revogar aspectos da lei que atentem contra os Direitos Humanos”, defendeu.
O júri
A decisão foi lida pelo jornalista Juca Kfouri (foto), que presidiu o ato, e entra em consonância com a decisão, em 2010, da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que responsabilizou o Estado pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas durante o combate à Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974. Com isso, a OEA determinou: “os dispositivos da Lei de Anistia são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem continuar representando um obstáculo para a investigação dos fatos”.
O cumprimento da decisão da OEA foi reivindicado pelas testemunhas de acusação, arroladas pelo jurista Fábio Konder Comparato. O acusador apontou ainda que não há possibilidade de anistia ou prescrição para a prática de terrorismo de Estado, definida por ele como “o aniquilamento da oposição para instalar um clima de terror junto à sociedade”.
Comparato questionou também a legitimidade da ‘auto-anista’, uma vez que foi concedida pelo Estado a si mesmo. “Não é possível, nos casos de terrorismo de Estado, que se possa reconhecer a impunidade, porque a principal vítima é a humanidade. E nenhum Estado representa a humanidade”, frisou.
O Promotor Público Marlon Weichert, testemunha de acusação, declarou ainda que a anistia aos agentes públicos perpetradores de graves violações aos direitos fundamentais e humanos é inconstitucional: “Tortura, execução sumária, violência sexual e desaparecimento forçado”, enumerou, disparando: “uma lei garantidora da impunidade destes crimes afronta diretamente diversos princípios da Constituição brasileira”.
A representante da testemunha pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Amelinha Teles, destacou também que as violações se sobrepõem numa densa lista de graves crimes: “cada desparecido da ditadura representa a prática dos crimes de sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver”, frisou, lembrando que há ao menos 437 nomes nesta lista, segundo o Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos.
Ao desembargador Antonio Carlos Malheiros coube a tarefa de realizar a defesa da interpretação dada a Lei. O advogado fundamentou sua argumentação no risco de insegurança jurídica que a revisão da Lei de Anistia poderia gerar, uma vez que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por sua manutenção tal como está em 2010.
De acordo com a defesa, os detratores da ditadura fariam melhor dedicando-se a desnudar as arbitrariedades do regime, revelando a identidade dos torturadores e dos responsáveis pelas mortes e desaparecimentos, e colocando seus rostos diariamente na imprensa, para uma espécie de linchamento público de suas reputações. “De posse da verdade, renovaremos as forças para construir um país mais democrático, repudiando as torturas que ocorreram e que ocorrem”, sublinhou, citando um trecho da música de Almir Sater: “Penso que seguir a vida seja simplesmente conhecer a marcha e ir tocando em frente.” A plateia riu.
Malheiros também sugeriu aos presentes que, se querem ver agentes da ditadura na cadeia, que se dediquem a instaurar ações penais sobre o Riocentro. Ocorrida em 1981, próximo a um show comemorativo de 1º de Maio, a tentativa de atentado a bomba empreendida por militares no Rio de Janeiro para incriminar opositores do regime está excluída do guarda- chuva temporal da Lei de Anistia, que compreende apenas crimes políticos cometidos entre 1961 e 1979.
*Com informações da Rede Brasil Atual e do Viomundo. (Com a ABI)
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