Depois de nove anos, acontece nesta quarta-feira, em Belo Horizonte, o julgamento do fazendeiro Adiano Chfik, acusado de executar, junto com 15 pistoleiros, cinco trabalhadores rurais. No chamado "Massacre de Felisburgo", outros 12 se,-terra ficaram feridos.
A partir de amanhã, em solidariedade aos atingidos e em defesa da justiça, trabalhadores rurais,ligados ao Movimento dos Sem Terra, ficarão atentos em Belo Horizonte. Uma concentração está programada para o viaduto São Francisco, na Pampulha, de onde sairá uma passeata rumo ao centro da cidade onde se fará comunicado à populaçao e se exigirá que se faça justiça, com a condenaao dos culpados.
"Queremos expressar nossa indignação pelos sucessivos adiamentos, inicialmente de janeiro para maio e posteriormente para agora. Indignou-nos principalmente o último adiamento, pois demonstrou como a justiça é falha e tem suas brechas, permitindo ao advogado do assassino confesso alegar a “necessidade” de ouvir 60 testemunhas na véspera do júri, depois de quase nove anos de impunidade", diz nota divulgada pelo MST.
O assessor da Comissão Pastoral da Terra, frei Gilvânder Luís Moreira, publicou artigo no Brasil de Fato em que conta em detalhes o que foi o "Massacre de Felisburgo", que revoltou os trabalhadores do Vale do Jequitinhonha.
O artigo é o seguinte
"Massacre de Felisburgo: o que não pode ser esquecido
Frei Gilvander Luís Moreira (*)
Na madrugada do dia 1º de maio de 2002, dia das/os trabalhadoras/res, cerca de 230 famílias sem-terra, organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocuparam a Fazenda Nova Alegria, de 1.700 hectares, em Felisburgo, Vale do Jequitinhonha, MG. Era a primeira ocupação do MST no município.
Cerca de 1/3 da fazenda (515 hectares) é de terra devoluta, grilada pela família do fazendeiro e empresário Adriano Chafik. O coronelismo imperava incólume na região, mas a fome e necessidade impeliram os camponeses a se unir, se organizar e a partir para a luta. Com poucas reuniões promovidas pelo MST, o povo teve a coragem de quebrar a cerca desse latifúndio, onde, aliás, posseiros já tinham sido humilhados, inclusive, o Sr. Koné, ali por muito tempo e ter depois simplesmente desaparecido.
Mas a sanha egoísta dos latifundiários irrompeu-se. Era inadmissível o MST chegar, ocupar e quebrar um tabu que dizia “aqui quem manda é os fazendeiros.” Era inaceitável Sem Terra ter vez e voz.
Assim, uma escalada de ameaças desencadeou-se durante dois anos e meio. Ameaças de todos os tipos. O povo do Acampamento Terra Prometida – pelo Deus da vida e pela luta organizada – teve de montar guarita e Comissão de Segurança para se defender. Inúmeras denúncias foram feitas pelo MST e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) alertando as polícias militar e civil, a Secretaria de Segurança de Minas, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o Governo Federal, enfim, todas as autoridades sobre os riscos a que estavam sujeitos os trabalhadores.
Estava já sendo criadas as condições para se fazer o que ficou conhecido como O Massacre de Felisburgo. Mas ... até os Boletins de Ocorrência eram “revisados” pelos Sem Terra, porque quase sempre maquiados por policiais que se negavam a escrever a versão dos Sem Terra. A
CPT, em 24 de setembro de 2004, fez uma representação junto à Secretaria de Segurança Pública de Minas, alertando que oito jagunços estavam há dois dias dentro do acampamento, mas as autoridades não tomaram as medidas para evitar o massacre. O Estado, mais do que omisso, revelou-se cúmplice de violência.
Estes fatos ganharam repercussão nacional e internacional, mas não são isolados. Eles se inserem no bojo dos 112 conflitos agrários no estado de Minas Gerais, registrados pela CPT em 2004. Estes conflitos, além dos nove assassinatos acontecidos em Minas Gerais, foram responsáveis por 32 tentativas de assassinatos, 27 ameaças de morte, 24 torturados, 75 presos e 56 feridos.
Em 25 de novembro de 2004, a CPT de Minas entregou ao Governo do Estado e à Assembléia Legislativa de Minas Gerais um dossiê denunciando a existência de milícias armadas atormentando a vida dos sem-terra acampados no estado. A CPT/MG também registrou 26 ataques de jagunços a acampamentos em Minas nos anos de 2003 e 2004.
Após ter acontecido em Unaí, MG, dia 28 de janeiro de 2004, o Massacre dos quatro fiscais do Ministério do Trabalho, no mesmo ano, dia 20 de novembro de 2004, um sábado chuvoso, dia de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra, por volta das 10:40h da manhã, Adriano Chafic, dono também de muitas outras fazendas na Bahia, chegou ao Acampamento Terra Prometida, com um bando de 17 jagunços.
Renderam um Sem Terra que estava na guarita do acampamento e, com revólver encostado na sua orelha, o obrigaram a soltar um foguete, que era a senha para reunir todo o povo do acampamento em caso de ameaça ou de necessidade de se reunir com rapidez.
O povo começou a se reunir. Adriano Chafic, visto por muitos no local, liderava a operação, perguntando “Cadê a Eni e o Jorge?” e ordenando “Podem atirar e matar...”. O bando de jagunços - uns encapuzados, outros não - iniciaram os disparos.
Dentro de poucos minutos já tinham assassinado cinco Sem Terra - Francisco Nascimento Rocha (72 anos), Juvenal Jorge da Silva (65 anos) Miguel José dos Santos (56 anos), Joaquim José dos Santos (49 anos) e Iraguiar Ferreira da Silva (23 anos).
Todos os tiros foram à queima roupa. Feriram mais de 12 pessoas, incendiaram com gasolina dezenas de barracos de lona preta, inclusive a barraca da Escola, a barraca de alimentos, a barraca da biblioteca, barracos da Eni e do Jorge.
Uma criança de doze anos levou um tiro próximo ao olho. Puseram gado nas lavouras dos Sem Terra. Muitos trabalhadores do acampamento ficaram, desde então, amedrontados e portadores de alguma doença, física ou mental, como conseqüência daquele crime.
Eni está viva, porque naquele momento estava na pequena Secretaria do MST na cidade de Jequitinhonha. O Jorge está vivo, porque companheiros o convenceram a sair rastejando pelos fundos do acampamento. Ele fugiu pelo mato por muitos quilômetros até poder telefonar e dizer a Eni: “Cinco companheiros tombaram no Acampamento Terra Prometida, mas nós seguiremos em frente!”
O pânico e traumas indeléveis estão ainda como fantasmas na mente, no subconsciente de dezenas de crianças, idosos, mães desesperadas procurando seus filhos. Leonice, mãe de onze filhos, com seis já tendo migrado para São Paulo, por falta de reforma agrária, em pranto gritava procurando seus filhos.
Avisada logo em seguida por Eni, a Polícia só apareceu no local do Massacre de Felisburgo seis horas após, dando prazo suficiente para os jagunços e Adriano Chafik fugirem, após esconder o arsenal de armas em um buraco no mato. Detalhe: cada jagunço empunhava dois revólveres. Além de encontrar as armas, a polícia encontrou as Notas Fiscais de compra das armas na Bahia e da compra de colchões para abrigar os jagunços durante a preparação do bárbaro massacre.
Houve feridos que morreram por falta de socorro. Um motorista de Kombi da prefeitura de Felisburgo foi demitido porque deu carona para um trabalhador Sem Terra que implorava na beira da estrada por socorro. Mortes a queima roupa e com requintes de crueldade. Assassinatos seletivos, pois os cinco mortos eram lideranças do acampamento e do MST do Vale do Jequitinhonha. O ódio também se voltava contra ex-trabalhadores da fazenda, pois, na mente doentia do assassino, significava afronta à submissão dos trabalhadores aos seus coronéis.
Adriano Chafik foi preso duas vezes e conquistou habeas corpus. Confessou a participação no massacre. Ele e os jagunços – um já morreu – já deveriam estar detrás das grades, condenados como perpetradores desse crime hediondo, mas há muitos outros culpados que não podem ser esquecidos.
O prefeito de Felisburgo na época e vários outros fazendeiros participavam agressivamente das ameaças e davam todo apoio à sanha criminosa do Adriano Chafik. Policiais, delegado e o governo de Minas que deixa as terras nas mãos de empresas, especialmente as eucaliptadoras.
Some-se que agora o governador de Minas está tentando reabilitar uma Proposta de Emenda à Constituição de Minas e aprová-la na Assembleia Legislativa querendo passar de 250 para 2.500 hectares a área que o Estado de Minas Gerais pode titular as terras devolutas para as pessoas físicas ou jurídicas.
Algo antidemocrático que significa entregar de vez a imensidão de terras devolutas de MG, contrariando a Constituição Federal que destina essas terras preferencialmente para a Política de Reforma Agrária. Logo, o Governo de MG também deveria estar no Banco dos réus ao lado do mandante Chafik.
O Presidente Lula assinou o Decreto de desapropriação da Fazenda Nova Alegria por crime ambiental, não porque lá ocorreu o massacre. Ou seja, matar uma árvore é mais grave do que matar cinco pessoas, disse implicitamente o decreto de desapropriação.
Mas o poder Judiciário não se comoveu nem com as árvores matadas e nem com o sangue dos pobres vertendo na mãe terra, naquele dia chuvoso. E impugnou o decreto desapropriatório. Assim as 60 famílias que perseveram na luta estão ainda sem ser assentadas e terão que fazer a reforma agrária na marra, porque o Estado violentador dos direitos humanos não o faz.
No memorial construído no cemitério da cidade de Felisburgo, há uma grande inscrição que diz: "Aqui foram sepultados os Sem Terra Francisco, Iraguiar, Manoel, Joaquim e Miguel, covardemente assassinados a mando do fazendeiro Adriano Chafik, dia 20 de novembro de 2004.
Eles tombaram, mas o sangue deles circula nas nossas artérias e nós seguiremos lutando por reforma agrária, por justiça social e dignidade. Essa era a luta deles e é nossa luta." A Família MST assumiu o compromisso, imortalizado na frase inscrita do lado esquerdo do memorial: "Nós caminharemos por vocês na busca dos seus sonhos que também são os nossos sonhos: a terra, a justiça e a dignidade". O memorial guarda a triste lembrança do dia em que o fazendeiro Adriano Chafik comandou o Massacre de Felisburgo.
Em 20 de novembro de 2005, na celebração de um ano do massacre de Felisburgo, uma série de testemunhos deixou todos os presentes com o coração na mão. O Sem Terra Jorge Rodrigues Pereira, um dos marcados para morrer naquele dia, deu o seu testemunho: "Iraguiar, antes de ser assassinado, me disse: 'Jorge, sai fora, porque vão matar você'.
Quando vi o tanto de armas, tentei animar os companheiros a dialogar com os pistoleiros, mas tive que correr para não ser morto também. Fugi para procurar socorro. Andei uns oito quilômetros pelo mato até um vilarejo, onde pude telefonar para avisar aos companheiros da cidade de Jequitinhonha e de Belo Horizonte. Nós não queremos guerra. Queremos terra, pois sabemos plantar".
José Maria Martins, um sobrevivente que levou um tiro na perna, disse: "Enquanto a gente tentava levantar um companheiro que tombava, os pistoleiros matavam outros. Após fugir para não morrer, olhei para trás e vi uma nuvem de fumaça cobrindo o acampamento que ardia em chamas. Nunca vou esquecer isso. Doeu muito e continua doendo!".
A Sem Terra Maria Gomes enfatizou: "Antes da chegada do MST em Felisburgo, os pobres sempre se curvavam diante do poder dos fazendeiros. O massacre foi premeditado. As armas foram compradas antes e os coronéis diziam que o massacre não aconteceria antes da eleição para não atrapalhar a política e o candidato apoiado por eles, ou seja, um massacre não ficaria bem".
Dia 20 de novembro de 2009, no cemitério de Felisburgo, na celebração do 5º ano do Massacre de Felisburgo, a emoção foi grande. Muitos choraram. As viúvas e os sobreviventes do massacre de Felisburgo sentiram, mais uma vez, uma espada de dor atravessando o coração deles. Graziele, de onze anos, entre lágrimas desabafou: "Todos os dias sinto uma grande dor no coração, pois perdi meu pai Joaquim, perdi meu tio Miguel e perdi meu cunhado Iraguiar. Todos nesse covarde massacre. Eu só peço justiça!" Eis a dor que o latifúndio e o coronelismo causam.
A psicóloga doutoranda da PUC/SP Fabiana Andrade e professora da PUC/MG pesquisou em sua dissertação o trauma causado pelo Massacre de Felisburgo. Diz ela: “Diagnostiquei que as pessoas desenvolveram um trauma que afeta suas vidas diariamente. Elas têm medo, não dormem à noite, algumas pessoas desmaiam e têm pesadelos constantes.”
Três processos de indenização na esfera cível tramitam parados na comarca de Jequitinhonha. Indenização? Cadê?
Apesar de tanta dor, um sentimento pode ser cultivado: hoje, 8,5 anos após, o MST é respeitado em Felisburgo. Todo sábado a produção do Acampamento Terra Prometida é carinhosamente esperada na Feira de Felisburgo, pois os alimentos, verduras e legumes produzidos hoje pelas 60 famílias da Terra Prometida abastecem a Feira da Cidade. “70% do abastecimento de alimentos para a cidade vem do Terra Prometida”, diz o vice-prefeito de Felisburgo, Franklin Canguçu.
Ou seja, o latifúndio e os latifundiários oferecem balas que matam os Sem Terra, mas os Sem Terra oferecem alimentação saudável, sem agrotóxicos, para o povo. No acampamento Terra Prometida, a luta segue com muita organização: grupos de jovens, rádio comunitária, escola municipal, além da organização em núcleos de base. Assim, o MST segue na luta produzindo acima de tudo pessoas cidadãs e revolucionárias. Tombaram cinco Sem Terra, mas os sobreviventes seguiram em frente!
O julgamento de Adriano Chafik e de Washington, esse gerente da fazenda, após quase nove anos, está marcado para dia 15 de maio de 2013 pelo Tribunal do Júri, em Belo Horizonte, MG. O Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas, da área de conflitos agrários, Dr. Afonso Henrique de Miranda alerta: “Eu não estou trabalhando com a possibilidade de Chafik ser inocentado. Eu trabalho com provas, e temos provas suficientes para sua condenação.” Será feita justiça?
Belo Horizonte, MG, Brasil, 13 de maio de 2013.
(*) Frei e padre Carmelita, bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, doutorando em Educação pela FAE/UFMG, assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Via Campesina; e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – facebook: gilvander Moreira "
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