Diante da espionagem dos EUA e do constrangimento causado a Evo Morales, nações latino-americanas elevaram o tom contra os norte-americanos e ofereceram asilo a Snowden. Mas depois se descobriu que também europeus haviam sido espionados. Eles tiveram de reclamar, ainda que num tom mais baixo.
Juan Gelman – Página 12/Carta Maior
Propaga-se a indignação nos países da América Latina pelo constrangimento aplicado ao mandatário boliviano Evo Morales ao permitir e depois proibir o avião presidencial no espaço aéreo da Espanha, França, Itália e Portugal durante seu regresso à La Paz. O pretexto, manifestado com todas as palavras pelo embaixador dos EUA em Viena, foi de que transportava Edward Snowden, o ex-técnico da Agência Nacional de Segurança (NSA, por sua sigla em inglês) que denunciou a existência de um mundo onde todos são espionados. Washington também afirmou naquele momento que o Iraque estava repleto de armas de destruição massiva. Não se encontrou sequer uma, nem por equívoco.
Essa atitude dos quatro países europeus não só dá o ar de um patrão maltratando um subalterno, como também denota um cariz de desdenhoso racismo. Porque, para esta gente, o que é a Bolívia? Um país pequeno, de pouco peso internacional e ainda governado por um indígena. Cabe duvidar muito, mas muitíssimo, de que se tente alguma vez aplicar semelhante violação às convenções internacionais de Chicago e de Viena à aeronave do México, da Argentina ou do Brasil enquanto transportasse seus presidentes. As desculpas por este escândalo – Portugal alegou “razões técnicas”, o galo socialista Hollande lamentou “o contratempo” – são tão magras que deixam ver os ossos da mentira. Com a soberba ibérica que o caracteriza, Rajoy manifestou que a Espanha não tinha por que pedir desculpa alguma.
A irritação latino-americana atinge níveis mais altos quando Snowden dá a conhecer, por exemplo, documentos que mostram o Brasil convertido em base de operações da NSA. Por solicitação da Bolívia, Nicarágua, Venezuela e Equador, se levou a cabo uma sessão extraordinária da Organização de Estados Americanos, que condenou os quatro países europeus e exigiu explicações do acontecido.
Enquanto os EUA ameaçam considerar inimigo qualquer país que oferte asilo a Snowden e exigem sua imediata captura à Rússia e também à Venezuela, Bolívia e Nicarágua, que lhe ofereceram asilo. A irritação também se expressa em alguns países europeus, em especial a Alemanha, que agora sabem, graças ao ex-NSA, que também são espionados. Merkel se queixou a Obama: uma ação desta natureza, lhe disse, é inaceitável entre “sócios e amigos”. O tema é que fica inaceitável para a chanceler, que seu país seja espionado ou que os serviços alemães, que trabalham em conjunto com a CIA, conheçam o programa de espionagem, mas não recebam nenhuma informação.
O importante semanário germânico Der Spiegel afirmou que este tipo de espionagem não tem nada que ver com a segurança nacional e que não só é uma mera intrusão na privacidade das pessoas, como também na correspondência diplomática e nas estratégias negociadoras em relação à questões comerciais (www.spiegel.de, 7-7-13). Não apenas isso: a espionagem das grandes empresas permite aos EUA aproveitar avanços tecnológicos que ainda não possui. A Alemanha é o alvo número um nesse quesito. A ministra de Justiça Sabine Leutheusser-Schnarrenbeger afirmou que esses métodos são próprios da Guerra Fria. Só que agora entre “sócios e amigos, não!” completou.
O gesto alemão parece haver dado a Hollande mais energia condenatória que o caso Snowden: “Pedimos que isto acabe de imediato... Temos evidências suficientes para pedir uma explicação”, se animou (www.alterney.org, 6-7-13). É que, como afirma o The New York Times: “Uma leitura atenta dos documentos de Snowden mostra até que ponto a agência furtiva (a NSA) desempenha agora dois novos papéis: é uma mastigadora de dados, com um apetite (capaz) de colher e armazenar, durante anos, uma assustadora variedade de informações e é uma força armada de inteligência com ciber-armas destinadas não só a monitorar computadores estrangeiros, mas também, se fosse necessário, de atacá-los” (www.nytimes.com, 7-7-13).
Enquanto a Casa Branca exige a cabeça de Snowden a todo custo, a San Adams Associated for Integrity in Intelligence acaba de conceder a ele seu prêmio anual por “sua decisão de revelar a vastidão da vigilância eletrônica que o governo dos EUA exerce sobre os habitantes do país e de todo o mundo” (www.middle-est-online.com, 9-7-13). Trata-se de uma organização curiosa: a maioria de seus integrantes são ex-agentes de alto escalão dos serviços de inteligência estadunidense que conhecem e acatam a necessidade legítima de manter em segredo determinados documentos. Pensam, por sua vez, que quando existem segredos para ocultar atividades inconstitucionais é seu dever apoiar aqueles que têm o valor de filtrar a verdade. Assim, proclamaram Snowden ganhador do Prêmio San Adams 2013. Lutam por uma espionagem com ética.
Tradução: Liborio Júnior
Foto: Página 12 (Com Pátria Latina)
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