quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Marcada para viver. Entrevista com a ex-líder camponesa Elizabeth Teixeira

                                                                                                 
   
"Todos os dias, quando João Pedro saia, ele me abraçava e dizia: 'Minha filha, vão tirar minha vida' - e nossos filhinhos todos em volta. 'Você continua a minha luta?'. Eu nunca tive resposta para isso, ficava calada."

Da Revista do Nordeste 

Encontrar alguém com 90 anos de idade normalmente é uma experiência enriquecedora. Mas quando se trata de Elizabeth Teixeira, a história de vida quase centenária ganha contornos cinematográficos, literalmente. O filme “Cabra Marcado para Morrer”, de 1984, retrata a trajetória dela e de seu marido, o líder camponês João Pedro Teixeira.

Elizabeth liderou um movimento popular quando poucas mulheres tinham postura ativa na sociedade, foi perseguida e ameaçada durante a Ditadura Militar, viu seu marido e filhos serem assassinados como consequência da luta dos camponeses e a filha mais velha se suicidar pela tristeza de ter o pai morto e a mãe presa.


Como a senhora recebeu a comenda Margarida Maria Alves, na homenagem prestada pela Câmara Municipal de João Pessoa?

Conheço a história da luta da companheira Margarida Alves, que também foi assassinada. É triste saber que não só meu marido foi assassinado e me deixou abandonada com 11 filhinhos. Eu me sinto muito feliz com a minha história e a de João Pedro, foi ele quem deu toda essa ideia e entendimento.


Não deve ter sido fácil para uma viúva, com 11 filhos, assumir a liderança de um movimento popular.

No tempo de João Pedro só companheiros frequentavam as reuniões. Mas a partir da minha pessoa as mulheres começaram a estar presentes lá. Era movimento, meu filho. As mulheres também, companheiras do campo, se colocando a disposição da nossa luta. Nunca sofri preconceito nenhum por ser mulher. Pelo contrário, surgiram outras mulheres para ajudar e lutar também.

Eu dei continuidade a luta de meu marido, João Pedro, mas eu pensava que iam tirar a minha vida também. Era tanto tiro quando iam me prender, tanto tiro em volta da casa. Me colocavam no carro, colocavam arma em mim. 

Chegou um momento em que oito trabalhadores do campo foram colocados para fora, eles vieram chorando na minha casa, pedindo para eu chegar até lá e falar com os donos dos engenhos. Eu cheguei lá e falei com eles, disse que um dos companheiros não poderia ser demitido, ele tinha oito filhinhos morrendo de fome, uma situação difícil, sem ele ter produto da terra para plantar e alimentar os filhinhos... Disse que muito difícil para ele sair; o dono do engenho calado estava e calado ficou. 

Também fui a outro engenho e a mesma coisa: falei com o proprietário que calado estava e calado ficou. Eles não deram uma só resposta sobre a minha palavra. Eu voltei para casa e quando eu chego em casa havia um carro cheio de policiais para me prender. Foi muito tiro ao redor da minha casa. A minha filha mais velha, Marluce, que já estava com 16 anos, disse: “Minha mãe, vão tirar sua vida, assim como tiraram a do meu pai. A senhora não vai ter o direito de voltar. Mainha, eu não lhe quero ver morta”. Eu disse a ele que iria presa, mas voltaria.

E de fato a senhora voltou.

Entrei no carro e fui presa para João Pessoa. Me levaram para o delegado, eu expliquei minha situação e ele disse que eu poderia voltar. O carro da liga camponesa já estava lá, eu não tive que voltar em carro de polícia. Quando eu cheguei ela tava morrendo na cama. 

Em cima da mesa tinha veneno e outras coisas que ela ingeriu. Aí o companheiro da liga camponesa que me acompanhou levou a gente para João Pessoa, para o médico. Quando chegamos em João Pessoa e fomos tirar do carro ela tava morta. Chamei o médico já na porta, ele foi examinou ela e confirmou a morte. Minha filha, Marluce Teixeira, suicidou-se. Voltei com o corpo para Sapé, cuidei do enterro dela e dei continuidade a luta de João Pedro.

Foram muitas perdas ao longo dos anos de luta. Quando assumiu a luta de seu marido, a senhora tinha noção do que enfrentaria?

Outros dois filhos meus foram assassinados. Zé Hildes e João Pedro Filho, que ainda eram crianças. Eles diziam que quando ficassem maiores iriam fundar um sindicato rural e dar continuidade a luta do pai. Na 4ª série eles disseram isso na escola e foram assassinados. Foi muito difícil para minha pessoa. Hoje eu penso como ainda estou viva. Já completei 92 anos. Como é que eu estou viva, com o que eu passei na vida depois do assassinato de João Pedro. Foram muitas prisões a minha pessoa, muita coisa. 

Todos os dias, quando João Pedro saia, ele me abraçava e dizia: “Minha filha, vão tirar minha vida” - e nossos filhinhos todos em volta. “Você continua a minha luta?”. Eu nunca tive resposta para isso, ficava calada. Eu não sabia que João Pedro tinha aquele espírito de luta todo. Ele gostava de ler o jornal... Um dia João Pedro disse que ia no engenho conversar com os trabalhadores... Ia de engenho em engenho tomando conhecimento da sobrevivência. Disseram que iam tirar a vida dele. Dia 2 de abril de 62, dois policiais em Café do Vento tiraram a vida dele. Deram tiros e acabaram com João Pedro. Eu fiquei só.

A senhora precisou ir embora do estado durante o período da Ditadura Militar. Como foi mais esse difícil capítulo da sua história?

Durante a Ditadura eu estava presa. Mas não pelos policiais, foi pelo exército. Passei oito meses de prisão no exército, mas eles me tratavam muito bem. Nenhum menino do exército me tratava mal. Me abraçavam, procuravam saber se eu estava me alimentando, se estava tomando meu cafezinho. O exército me tratou bem. Depois dos oito meses eles me liberaram, mas disseram que eu não poderia voltar para Sapé, porque a ditadura continuava e eu seria presa pelos policiais. 

Me lembrei de um amigo das lutas de João Pedro, do Rio Grande do Norte, que tinha boas condições. O major ligou para ele e pediu para que viesse até aqui. O major falou para ele me levar escondida para uma casinha desocupada que ele tinha em São Rafael, no RN. Deixei de ser Elizabeth, meu nome ficou como Marta Maria da Costa.

Fui para o Rio Grande do Norte, passei muito tempo lá para não ser mais presa, para ter mais tanta prisão a minha pessoa. Passei todos os anos restantes de ditadura lá. Não tinha conhecimento nenhum lá. Nem meus filhos sabiam onde eu estava. Lá eu era alfabetizadora. Tinham muitas crianças nas calçadas das ruas que não estudavam. Aí eu conversei com os pais, para saber se eles davam cadeira e mesa para começar uma alfabetização. Eles gostaram e eu fiquei todos os anos como alfabetizadora, recebendo uma salariozinho para me sustentar. Eu ensinava de manhã e de tarde. 


Depois de muitos anos, dois meninos que foram alfabetizados por mim se formaram em Direito. Mandaram até carta para mim. Quando acabou a ditadura entrei em contato com Eduardo Coutinho, que já tinha feito o filme “Cabra marcado para morrer”. Ele já ia muito na casa da minha filha, que era casada e já morava em João Pessoa. Ele me trouxe para João Pessoa, comprou essa casa onde eu moro e me deu de presente. Fui resgatada por ele. Voltei a ser Elizabeth Teixeira, uma mulher muito sofredora, que passou muitas noites sem dormir.


Eu penso assim: “É Deus, eu hoje ainda estar viva”. Passar as noites que eu passei sem dormir, pensando nos filhinhos que ficaram todos abandonados, as lágrimas que caíram pelos filhos que soube que foram assassinados. Meu Deus do céu, como é que eu ainda estou viva? É Deus ou não é? Sou uma velhinha muito sofrida nesse nosso país.

Como a senhora se tornou amiga de Fidel Castro?

Ele soube lá em Cuba por conta da luta de João Pedro porque foi uma luta reconhecida e quando João Pedro morreu eu assumi o lugar dele, fiquei conhecida também: a esposa de João Pedro Teixeira. Fiquei conhecida no Brasil todo. Fidel ficou sempre tendo contato comigo, procurando falar comigo. Me fez o convite para que eu fosse morar lá, ele me chamou para me ver e eu fui. Me apresentou a casa com todos os moveis pra eu morar lá. Só que eu só abraçava ele e dizia: "Fidel, meu filho, eu tenho um compromisso com a luta de João Pedro em nosso país”.

Ele convidou meus meninos; quando eu fiquei no exílio, ele convidou os meninos pra estudar lá. Abraão já ia se formar em jornalismo e disse que não ia. A menina mais velha disse que não ia também. Isaque foi, se formou em medicina e voltou e trabalhar aqui. Paulo já tinha se casado e morava em Recife. E Carlos foi morar no RN.

As ligas cumpriram o seu papel? Como a senhora vê a Reforma Agrária no atual contexto do Brasil?

Não existe a luta mais não. Eu vejo que a luta de João Pedro foi muito difícil e muito pesada. Ele dizia que iam tirar a vida dele, mas a reforma agrária ia ser implantada e, quando mataram ele, naquele ano ele dizia pra eu ficar tranquila que a reforma agrária ia ser implantada. Que os trabalhadores de terra iam ter condições de sobrevivência da terra. 

Quantos anos do assassinato de João Pedro? E Reforma Agrária nada. Não vai ser implantada em nosso país e os sem terra não tem direito a terra para sobrevivência. Eles vivem do produto da terra e ficou muito difícil para o homem do campo sobreviver. (Com a página do MST)

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