“Cuba não está a propor-se um socialismo de mercado”
Rosa Miriam Elizalde
Em 2011 Cuba aprovou o guião de um processo de “actualização económica” que inclui a reconhecimento de sectores de propriedade privada, cooperativa e mista (com capital estrangeiro), ao mesmo tempo que afirma o objectivo de manter o carácter socialista do seu modelo de desenvolvimento. Esta entrevista propõe-se fazer um balanço dos passos dados desde então.
José Luis Rodríguez, ministro da Economia de Cuba entre 1995 e 2009, é dos poucos peritos da Ilha que mantém publicamente uma análise sistemática e rigorosa, a partir de posições socialistas, sobre as transformações que agitam a Ilha. Num país que quase todos os dias acorda com um novo decreto na Gaceta Oficial que avança no sentido de mudanças estruturais do modelo económico, pouco se ouvem os funcionários explicando as medidas de forma acessível, enquanto no espaço digital - com uma altíssima capilaridade na Ilha apesar da débil infra-estrutura de Internet - floresce todo o tipo de análises especulativas, frequentemente puxando a brasa a propostas neoliberais.
Em qualquer caso, a economia é o tema dos temas no país. Cuba defronta-se com um dilema de ferro: ou actualiza, revê e reconstrói a sua estrutura económica ou a Revolução corre o risco de sucumbir perante a pressão combinada dos seus próprios erros e as agressões do bloqueio dos EUA, num momento delicadíssimo de reconfiguração do consenso de Washington face à Ilha.
Rodríguez, assessor do Centro de Investigações da Economia Mundial (CIEM), de Havana, responde a perguntas de La Jornada nas vésperas da última sessão plenária do ano no Parlamento cubano, que tem em agenda a análise dos resultados do chamado “processo de actualização” e os planos para 2015.
Para onde vai Cuba
– ¿Porquê actualização e não reforma económica?
– Pode dever-se a duas razões. Por um lado quis-se enfatizar que todas as mudanças que se estão a propor supõem a actualização de um modelo socialista, que se qualificou também como socialismo possível. Por outro lado, quis-se o distanciamento das reformas que - supostamente em nome de aperfeiçoar o socialismo - levaram à sua desaparição na Europa.
– ¿Qual é exactamente o modelo económico escolhido? ¿Para onde vai Cuba?
– O modelo de socialismo cubano escolhido pressupõe o aperfeiçoamento da sociedade que se construiu até aqui e tem vários traços fundamentais que reiteram a sua matriz socialista.
Em primeiro lugar mantém-se a propriedade social sobre os meios de produção fundamentais - quer dizer - os que são determinantes para o desenvolvimento do país. Estabelecem-se limites ao desenvolvimento da propriedade não estatal ao reduzir a sua capacidade de acumulação e assegura-se universal e gratuitamente a prestação de serviços sociais básicos.
Ao mesmo tempo, abrem-se espaços para a pequena propriedade privada - como auto-emprego ou trabalho por conta própria -, a propriedade cooperativa agro-pecuária e não agro-pecuária e as empresas mistas com capital estrangeiro. Parte-se assim do conceito de que outras formas de propriedade não estatal podem contribuir para o desenvolvimento do país, sem serem predominantes e se forem adequadamente enquadradas, quer dizer, sem que se convertam em preponderantes.
Esta é uma mudança significativa, mas chegou-se a ela partindo de que - por um lado - uma propriedade unicamente estatal não assegura o êxito do socialismo na fase de construção socialista em que nos encontramos; por outro lado, que durante anos se seguiu esse caminho e o balanço não foi favorável.
Por último, faz já tempo que a teoria marxista chegou à conclusão de que a existência de relações de mercado no socialismo obedece a um determinado grau de desenvolvimento no qual não pode socializar-se directamente o trabalho individual dos produtores, e que para o fazer são requeridas as categorias mercantis. Pelo que se impõe a necessidade de reconhecer essa realidade se queremos avançar para um desenvolvimento mais racional.
Isso não significa que a presença das relações de mercado - no grau em que as mesmas sejam reconhecidas - não tenha que ser monitorizada e submetida ao controlo social para compensar os seus efeitos socialmente negativos. O anteriormente dito dá uma ideia de que nas nossas condições isto é o que pode assegurar-nos um desenvolvimento socialista possível de acordo com as circunstancias de subdesenvolvimento do desempenho da nossa economia, embora - desde logo – tal não seja nada simples.
¿Socialismo de mercado?
– A chamada cubanologia interpreta o que se está a verificar em Cuba como a “transição para uma economia socialista de mercado”, que necessariamente deve ser acompanhada de mudanças estruturais no sistema político do país. ¿ Que opinião tem sobre isso?
– Em relação à primeira, qualquer pessoa que estude a evolução histórica da experiência do chamado socialismo real claramente entenderá que nós não nos estamos a propor um socialismo de mercado.
Esta foi uma designação para qualificar as reformas económicas empreendidas nos anos 60 do século passado, que propiciaram uma ampla introdução de mecanismos de mercado em países como a Jugoslávia, a Hungria, e também na URSS com a Perestroika. ~
Essas reformas supunham que o mercado, na sua actuação, não era em nada contraditório com o socialismo, pelo que se ampliou cada vez mais a presença desses mecanismos para tornar mais “eficiente” a gestão económica, sem tomar em conta a conotação social dos mesmos e sem monitorizar e compensar os seus efeitos perversos. A historia demonstrou que do socialismo de mercado apenas ficou o mercado sem socialismo.
As criticas da cubanologia seguem a lógica de que se se introduz o mercado deve ir-se até às últimas consequências - quer dizer ao capitalismo - para conseguir uma eficiência superior. Daí que pressuponham eufemisticamente mudanças políticas que se modelem a essa tendência, o que não é outra coisa senão provocar o trânsito para o capitalismo. Por mais voltas que lhe queiram dar, é isso o que está no âmago das suas “recomendações”.
– Abundam os que exigem celeridade às mudanças e inclusivamente os que se pronunciam a favor de um “shock”. ¿É possível impor maior ritmo às transformações?
– Não pode perder-se de vista que - depois de muitos anos de Período Especial - as expectativas da população são muitas e em muitos casos muito intensas. Entretanto, a magnitude das mudanças que são requeridas no funcionamento da economia para satisfazer as necessidades da população é grande e de grande complexidade. Trata-se inclusivamente de implementar medidas acerca das quais não existe experiência entre nós, pelo que é necessário um período de prova para as validar e inclusivamente para avaliar não apenas o seu impacto económico, mas também o impacto sociopolítico, tendo em conta a grande importância dos factores subjectivos neste processo.
Uma decisão precipitada neste sentido pode comprometer o processo de actualização. Isto não significa que não se avance em tudo o que seja possível e que não comprometa os objectivos estratégicos a alcançar. Por exemplo, adoptaram-se decisões que flexibilizam a venda de habitações particulares, o acesso a instalações turísticas internacionais e admite-se a recontratação de reformados que podem – para além disso - cobrar um salário sem perder a sua pensão.
Em síntese, a afirmação do Presidente Raúl Castro de avançar sem pressas mas sem pausas penso que tem total validade.
É difícil precisar ritmos de mudança na economia.
– ¿Onde é que a mudança esperada ao serem aprovados há dois anos e meio os Delineamentos não se produziu?
– Em primeiro lugar é preciso recordar que os Delineamentos têm um período de implementação de 5 anos, ou mais em alguns casos, pelo que muitos dos impactos esperados no cronograma de aplicação podem ainda encontrar-se em processo de realização.
Por outro lado, a concretização de resultados na economia cubana - que tem um nível de abertura superior a 47%, pelo que depende muito do que ocorra na economia internacional - está submetida a um elevado nível de incerteza. Se a esta realidade acrescentamos a presença do bloqueio económico dos Estados Unidos, é muito difícil conseguir uma elevada precisão nos ritmos de mudança na economia.
Adicionalmente há medidas que originalmente foram plasmadas sob determinadas premissas e que ao longo do tempo tiveram que ser complementadas com outras decisões. Um exemplo está na entrega de terras devolutas para a produção agro-pecuária, que foi regulada originalmente pelo Decreto-lei 259 e foi depois complementada com o Decreto-lei 300, bem como por uma outra série de medidas para facilitar a gestão do sector. Também a experimentação de novas formas de gestão do poder popular nas províncias de Artemisa e Mayabeque se prolongou no tempo para além do prazo original, a partir da análise das experiências da sua complexa implementação.
– ¿Que benefícios se recolhem das transformações iniciadas em 2011?
– O ordenamento do modelo económico cubano teve necessariamente de começar pelas grandes decisões que modificam a estrutura de gestão na macroeconomia, pelo que – logicamente - é nessa esfera que podemos apreciar alguns importantes resultados.
Se nos remetemos para os problemas mais significativos que os Delineamentos da Política Económica e Social recolhem, observaremos que estes são o desequilíbrio financeiro externo e a baixa produtividade que se verifica no país.
No primeiro aspecto observa-se como de um saldo comercial negativo em relação ao PIB que era de -5% em 2008, se passou a um saldo positivo de +1,6% em 2013 graças à expansão das exportações, à substituição das importações e à poupança.
Por outras palavras, o saldo positivo do comercio exterior contribui com recursos que permitem iniciar um processo gradual de renegociação e pagamento da dívida externa. Neste último aspecto aprecia-se como se obteve recentemente o perdão de 90% da dívida da antiga URSS com a Rússia - dívida inscrita no Clube de Paris - e também se conseguiu o perdão de 70% da dívida com o México, ao mesmo tempo que se dedicou um volume substancial de recursos a liquidar os endividamentos externos a partir do ano de 2009.
Tudo isto é de importância estratégica, pois permite criar melhores condições para ampliar o investimento estrangeiro, elevar a taxa de investimento do país e aumentar os ritmos de crescimento até alcançar em poucos anos valores na ordem dos 6 a 8%.
No que diz respeito à produtividade do trabalho, esta cresceu 7,8% nos últimos 5 anos, ritmo que embora acabe por não ser muito elevado permitiu na última etapa que este indicador tenha crescido mais rapidamente do que o salario médio, de forma a evitar pressões inflacionárias.
Não obstante, fica muito por fazer até se conseguir um crescimento equilibrado e auto-sustentável, mas isso também requer tempo e recursos.
Fim da dupla moeda, ajustamento cauteloso
– A maioria da população não verifica ainda melhoras na microeconomia ¿como manter o consenso em tais circunstâncias?
– Todo processo de ajustamento económico – mesmo quando seja feito com critérios essenciais para preservar o alcançado pela nossa sociedade - enfrenta desafios inevitáveis a curto prazo.
Provavelmente um dos maiores desafios radica em como realizar as mudanças estruturais indispensáveis para que o país se desenvolva e, ao mesmo tempo, conseguir melhorias no nível de satisfação das necessidades da população, que - como já se indicou - acumulam carências próprias do Período Especial.
Algumas decisões adoptadas apontam nessa direcção. Por exemplo, o processo de reestruturação das empresas estatais permite que as mesmas ajustem o pagamento dos salários aos resultados produtivos o que - onde foram aplicadas as medidas propostas - possibilitou incrementar substancialmente os salários sem provocar pressões inflacionarias, e que potencialmente abre novas alternativas aos 49% dos empregados no sector estatal que trabalham em empresas.
A situação é mais complexa no sector dependente do Orçamento do Estado, mas também - sem afectar o indispensável equilíbrio fiscal - foram elevados os salários no sector da saúde e aos desportistas. De igual modo, no sector não estatal da economia – que corresponde a cerca 26% do emprego - se obtêm rendimentos mais elevados.
Não obstante, apesar destes avanços e das potencialidades que se verificam, a deterioração do salario real e as restrições à expansão de serviços como o transporte e a construção de habitação constituem factores a tomar em conta na luta pelo indispensável equilíbrio que se deve ir alcançando entre a satisfação das expectativas e a criação de condições para as satisfazer.
Juntamente com esse avanço, necessariamente gradual, deve conseguir-se um maior nível de informação e participação dos trabalhadores em todo este processo, o que constitui - na minha opinião - um elemento essencial para manter o indispensável consenso.
– ¿Qual é o peso da unificação monetária no êxito global da transformação da economia em Cuba?
– A dualidade monetária que levou à circulação paralela do peso cubano (CUP) e do peso convertível (CUP), que foi implementada em 1993, permitiu evitar uma desvalorização da taxa de câmbio oficial que – a ter-se efectuado - teria conduzido a uma situação muito difícil de controlar. Igualmente, no sector empresarial permitiu implementar em paralelo um processo de descentralização na tomada de decisões que hoje, à distancia que nos separa dos anos 90, podemos avaliar positivamente.
A dualidade monetária permitiu também - mediante a criação das Casas de Câmbio (CADECA) - drenar uma parte significativa do excesso de liquidez que se acumulou nas mãos da população nesses anos e que chegou a 73% do PIB. Ao mesmo tempo abria-se um consumo em divisas - também onerado por um imposto sobre a venda - para que ao menos a parte da população que tinha acesso à mesma, que chegou a estimar-se em aproximadamente 60% da população no final da década passada.
Todos estes impactos positivos se foram perdendo na mesma medida em que a dupla circulação monetária e a dupla taxa de câmbio associada a esta foi tornando cada vez mais complexa a gestão da contabilidade em duas moedas, o que tornava muito difícil de conhecer a situação económica real no país.
Portanto, um processo de mudanças como o actual tem como requisito indispensável ordenar a nossa contabilidade e as estatísticas retornando a um sistema monetário único com o peso cubano como centro.
Não obstante, trata-se de um processo de elevada complexidade que levará necessariamente um determinado tempo, já que se trata de desvalorizar a taxa de câmbio oficial que se mantém hoje em 1 CUP=1 CUC o peso convertível (equivalente a um USD) e fazer convergir a taxa de câmbio entre o Estado e a população, onde se cambia 1 CUC = 25 CUP. É sem dúvida uma operação na qual, para se ter sucesso, é necessário avançar cautelosamente.
Na actualidade trabalha-se no grupo de transformações de maior complexidade no quadro de uma conjuntura externa não favorável. Não obstante, o guião que foi traçado com os Delineamentos aprovados em 2011 assegura as mudanças indispensáveis para avançar estrategicamente na criação de condições para um desenvolvimento sustentável a médio prazo.
Fonte: La Jornada, 21 Novembro 2014
Enviado por tortilla en Vie, 11/21/2014 - 17:25
http://www.tortillaconsal.com/albared/node/4957
http://lapupilainsomne.wordpress.com/2014/11/21/jose-luis-rodriguez-cuba…
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