Por Mauro Iasi.
Aos gritos de “é hora de perder a paciência” os trabalhadores da cultura, membros de coletivos culturais, grupos de teatro, de dança, de música, poetas, pintores, músicos e outros seres míticos e estranhos ocuparam a sede da FUNARTE no último dia 25 de julho de 2011, protestando contra os cortes no orçamento da cultura promovido pelo governo Dilma pelas PECS 150 e 236 que retira deste campo cerca de 2/3 dos recursos atualmente destinados, os já minguados 0,06% dos recursos orçamentários.
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Chegaram por lá, entraram e fizeram o que sabem fazer de melhor: arte. Dançaram, cantaram, musicaram, perfomatizaram, poetizaram numa alegria irritante, própria de jovens e artistas, ou seja, gente que não tem nada de mais útil para fazer, tal como produzir mais valia, avançar o crescimento, estudar, comprar coisas e assistir comportados e apassivados aos “bens culturais” na televisão à cabo ou no fast-food da indústria cultural.
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A FUNARTE os olhava com um estranhamento compreensível. Como um filho que volta depois de muito tempo e não é reconhecido pelos pais, como um bode diante de um cartaz, como nos falou Maiakóviski, ou na expressão de Leandro Konder comentando certo autor diante de Hegel: como um camelo diante de uma catedral. Uma performance sem projeto, sem verba, sem aprovação, sem mecenas, sem isenção, sem Rouanet, ali feita por seres humanos, bravos e alegres, três elementos sem os quais a arte é impossível.
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Mas os impacientes trabalhadores da cultura não ficaram só fazendo arte, sentaram-se em roda e debateram, ouvindo com atenção seus companheiros e mestres, e amigos, enfim, gente que eles respeitam porque são gente, como Iná Camargo, Luis Carlos Moreira, o Daniel Púglia, até o Zé Celso Martinez passou por lá, dizem que o Luis Carlos Scapi estava presente, também falaram o Gilmar Mauro e o Paulino do MST, coisa estranha misturar a arte com a vida e a política, estes caras não podem ver uma ocupação.
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A Iná e o Moreira falaram: o que vocês querem? Verba? Querem que o Estado que representa os interesses do capital financie uma cultura que se nega a ser mercantilizada? Em tempos de defensiva como naquele em que vivemos, “qual o papel de nós artistas na construção de um processo que pode culminar num horizonte revolucionário”? Disse Iná.
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Que sentido tem fazer arte neste mundo no qual nos encontramos e que não queremos que perdure? Precisamos começar afirmando que a objetivação na forma de arte não tem um sentido em si mesmo, essencial e, portanto, a-histórico. Isso que está aí e que desprezamos, o objeto cultural na forma de mercadoria, ou seja, que para que possamos fruir seu valor de uso temos que realizar seu valor de troca, afinal é ou não é arte?
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Afirmar que não é guarda um risco não pequeno de imaginarmos uma essencialidade da arte fora das formas reais de sua manifestação. É arte, arte na forma mercadoria, capturada pelo mercado e submetida à lógica do capital e sua reprodução, material e ideológica. Não há nenhuma essencialidade da arte a ser resgatada de sua prisão mundana que a corrompe. Dizia Marx, em Manuscritos econômico-filosóficos:
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“(…) meu objeto só pode ser a confirmação de uma das minhas forças essenciais, portanto só pode ser para mim da maneira como a minha força essencial é para como capacidade subjetiva, porque o sentido de um objeto para mim vai precisamente tão longe quanto vai o meu sentido, por causa disso é que os sentidos do homem social são sentidos outros que não os do não social.”
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Aquilo com que nos denfrontamos objetivado numa forma particular de bem cultural (no caso como mercadoria) é, portanto, objetivação de uma de nossas capacidades subjetivas, e nós o vemos como tal. Se é verdade que a música desperta o sentido musical no ser humano, como diz Marx, também é verdade que a mais bela música “não tem nenhum sentido para o ouvido não musical”, assim como para o faminto a comida não tem forma humana (é só culinária e não arte culinária), o comerciante de minerais só vê o valor de troca e não a beleza peculiar do mineral, em suma “a objetivação da essência humana, tanto do ponto de vista prático como teórico, é necessário tanto para fazer humanos os sentidos do homem quanto para criar sentido humano correspondente à riqueza inteira do ser humano natural”.
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Vamos tentar entender isso. Ao objetivar um das dimensões de nossa subjetividade, nos humanizamos, mas podemos fazer isso em condições tais que o produto de nossa objetivação social e histórica se volte contra nós de maneira hostil e estranhada (por exemplo, na forma mercadoria), aí nos desumanizamos. O fato é que, se entendemos as pistas de Marx, somos nós que criamos nossa desumanização ao criar e manter as relações que nos desumanizam, mas neste paradoxo esta a chave de sua superação, isto é, como disse o mesmo autor se os seres humanos são produto das circunstâncias é necessário tornar humanas as circunstâncias que nos produzem.
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Neste ponto que a afirmação segundo a qual o sentido de um objeto vai tão longe quanto vai o sentido humano que o orienta pode nos ajudar a pensar o papel específico da arte. A arte mercadoria faz sentido, porque reflete na produção artístico cultural o estágio de nossa objetivação histórica, esta merda chamada sociedade capitalista. Mas a arte como parte da práxis pode e deve ir além daquilo que expressa. Lukács, em “Introdução aos estudos estéticos de Marx e Engels”, já nos alertava que a arte sempre luta contra duas correntes aparentemente opostas: de um lado aquela que afirma que arte deve representar fielmente o real e, de outro, aquela que entende a produção artística como um puro jogo da forma, vazia em si mesmo de conteúdo e de relação com o real.
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O problema, como já anunciava o mesmo Lukács, é que em época de decadência como a nossa, estas duas tendências tendem a se fundir: a rendição ao real e á pseudoconcreticidade e o domínio das formas num jogo vazio. O que desaparece nesta síntese tão bem descritiva dos descaminhos da chamada pós-modernidade e a construção do humano como humano e seu vir a ser, isto é, a arte como simultaneamente o reflexo de todo nosso desenvolvimento cristalizado nas formas presentes do real em que nos encontramos e os germes que a partir daí no remetem ao futuro pelo jogo de suas próprias contradições.
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Neste registro que podemos entender a afirmação marxiana segundo a qual a “educação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui” (Marx). Nossas objetivações artísticas não refletem apenas o que somos (ainda que em grande parte o façam), mas o que podemos ser a partir do que somos. Nossa arte que se pretende revolucionária deve expressar, necessariamente, nosso drama de ser de uma ordem mercantil e se levantar contra ela e na defesa da humanidade, entendida como a recriação humana das circunstâncias humanizadas contra e para além da ordem da mercadoria e do capital. Mas, dá para viver disso sem se corromper pagando as contas com poesias?
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Mas essa não é uma contradição específica dos artistas. Se não tomarmos cuidado assume a forma de um dilema puramente pequeno burguês, aí pobre de mim que sou poeta e sensível, dividido entre dois mundos, aquele em que vivo e aquele que sonho. Cantemos, então, com Álvaro de Campos:
Coitado do Álvaro de Campos!
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Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco
Aquele pobre que não era pobre que tinha olhos tristes por profissão.
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco
Aquele pobre que não era pobre que tinha olhos tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
(…)
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Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma! (Poema “Sou Lúcido” de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa)
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma! (Poema “Sou Lúcido” de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa)
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Assim somos todos nós, proletários que não temos como viver a não ser vendendo nossa força de trabalho por que nos expropriaram de nossos meios de produção e de expressão. Neste sentido, o que os trabalhadores tem a dizer aos artistas é: bem vindo ao mundo em que nós já estamos faz muito tempo e que vocês se negavam a ver.
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O que podemos, então exigir do Estado burguês? Por analogia falemos da educação. Quando Lassale pedia “educação popular geral e igual a cargo do Estado”, Marx (em Crítica ao Programa de Gotha) respondia: “isso de educação popular a cargo do Estado é completamente inadmissível”. E propunha que o necessário seria estabelecer por meio de uma “lei geral”, os recursos para o funcionamento das escolas e capacitação e remuneração dos professores, zelando, entretanto, para “subtrair da escola toda a influência por parte do governo e da Igreja”, e completava: não queremos o Estado como educador do povo. Algo assim deveríamos exigir para que possamos viver (e pagar as contas) como trabalhadores da cultura, produzindo arte nesta sociedade e contra ela.
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Por fim, tenho um agradecimento a fazer: meu poema “Quando os trabalhadores perderem a paciência” (publicado em Meta amor fases, São Paulo: Expressão Popular, 2011), virou palavra de ordem nas bocas impacientes daqueles que vivem para a cultura e são trabalhadores. Para um poema que saiu da vida, voltar a ela pelas mãos de quem luta é a melhor homenagem. Obrigado.
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Sugestões de leitura:
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MARX, K. Crítica ao Programa de Gotha [1875]. São Paulo: Boitempo, no prelo.
_________. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
LUKÁCS, G. Introdução aos estudos estéticos de Marx e Engels. In, Arte e sociedade: escritos estéticos 1932-1967. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009.
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas
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