quinta-feira, 16 de julho de 2020

No Brasil, sério mesmo é o carnaval


  
                                                                                                                    O Globo

Festa alienante que priva o povo da razão e do progresso?

À turma da folia ficou reservado o apreço pela pesquisa científica e pela vida 

Leandro Vieira (*)

Manifestação artística e cultural de valor intangível. Gerador de milhares de empregos. Impactos positivos no turismo. Milionária movimentação econômica no Rio de Janeiro. Evidentemente, chegaria a hora em que esta cidade precisaria falar do carnaval.

Produzida e organizada com antecedência — não há espaço para o “jeitinho” —, a mais importante atividade artística da cidade entra na pauta das incertezas que cercam os eventos em meio à pandemia. É motivo de orgulho e celebração o fato de os organizadores das tradições carnavalescas da cidade terem condicionado o futuro do carnaval, ou melhor, um carnaval futuro, à existência da vacina. 

Com olhar incrédulo, temos visto cariocas ocupando as praias, amontoados nas mesas de bar e o futebol ávido de torcida nos estádios. Eu temia que, na esteira da banalização, esse festival de irresponsabilidades se tornasse o argumento que maus cariocas se valeriam para legitimar a fluidez natural do calendário da cidade.

Dou graças que ainda existam bons cariocas; e festejo dobrado por perceber que há bons cariocas fazendo carnaval. Decidir esperar, postergar, avaliar cenários, deixar essa discussão para um momento aonde as certezas serão maiores (ou não); creditar à ciência o caminho para nos encontrarmos numa festa futura que exorcize essa maré braba; isso equivale a dizer que a vida coletiva está em primeiro lugar.

Mas, ora, não é o carnaval o ópio brasileiro? A galhofa nacional? A festa alienante que priva o povo da razão e do progresso? Quem pensa assim vai ter que enfrentar a sensatez da turma do ziriguidum. Os trompetes da turma do Cordão da Bola Preta e do Boitatá estão em compasso de espera. Na Mangueira, na Zona da Leopoldina, na Serrinha, na Vila Vintém e em Nilópolis, os sambistas estão como ensinou o mestre Martinho: “Devagar, devagarinho”.

Ao decidirem não entrar na onda do “morra quem morrer”, a turma do samba mostra que o carnaval não é festa da alienação. No Brasil da “terra plana” e da “gripezinha”, a postura oficial naturaliza a morte e despreza a ciência. À turma da folia ficou reservado o apreço pela pesquisa científica e pela vida. O carnaval mantém intacta a prática lúdica de inverter a dura — às vezes ignorante — realidade do mundo. A máxima de que, no Brasil, sério mesmo é o carnaval, nunca foi tão verdadeira.

É certo que haverá um próximo carnaval. Quando? Não sabemos. Mas a turma do samba já mandou avisar que só será possível quando álcool for para beber aos goles e a máscara for de pirata ou arlequim.

(*) Leandro Vieira é artista e vai assinar os próximos carnavais da Mangueira e do Império Serrano

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