Noam Chomsky e David Barsamian
«Há uma manobra de diversão em curso, talvez como resultado natural das tendências da figura na boca de cena e aqueles que trabalham nos bastidores. O que é preciso é que a atenção se desvie do que está a acontecer nos bastidores. Aí, longe dos holofotes, a ala mais radical do Partido Republicano vai cuidadosamente avançando políticas que têm como objectivo enriquecer o seu verdadeiro eleitorado.»
Esta entrevista foi extraída do livro Global Discontents: Conversations on the Rising Threats to Democracy, o novo livro de Noam Chomsky e David Barsamian que será publicado em Dezembro.
David Barsamian: Falou da diferença entre as palhaçadas de Trump, que têm uma permanente cobertura mediática, e as políticas que procura na realidade levar por diante, que recebem menos atenção. Acha que ele tem uma agenda coerente do ponto de vista económico ou de política interna ou externa? O que é que Trump conseguiu verdadeiramente alcançar nos seus primeiros meses como presidente?
Noam Chomsky: Há uma manobra de diversão em curso, talvez como resultado natural das tendências da figura na boca de cena e aqueles que trabalham nos bastidores.
Por um lado, as artimanhas de Trump garantem que a atenção se foca nele, pouco importa como. Quem é que hoje sequer se lembra da acusação de que milhões de imigrantes ilegais haviam votado em Clinton negando àquela figura patética uma vitória retumbante? Ou da acusação de que Obama teve a Trump Tower sob escuta? Estas alegações, por si só, nada importam. O que é preciso é que a atenção se desvie do que está a acontecer nos bastidores. Aí, longe dos holofotes, a ala mais radical do Partido Republicano vai cuidadosamente avançando políticas que têm como objectivo enriquecer o seu verdadeiro eleitorado: o eleitorado do poder privado e da riqueza, os “donos do mundo”, para usarmos a expressão de Adam Smith.
Estas políticas irão prejudicar a população global, irrelevante para eles, e devastar gerações futuras, mas isso pouco preocupa os Republicanos. Eles têm tentado impor legislação igualmente destrutiva desde há anos a esta parte. Paul Ryan, por exemplo, vem de há muito apregoando a sua ideia de praticamente eliminar o governo federal, excepto o serviço prestado ao eleitorado – apesar de, no passado, ter embrulhado as suas propostas em folhas de cálculo, de modo a parecerem sofisticadas aos comentadores.
Agora, enquanto a atenção se foca nas últimas loucuras de Trump, o gangue de Ryan e o ramo executivo forçam legislação e dão ordens que ameaçam os direitos dos trabalhadores, lesam a protecção aos consumidores e prejudicam seriamente as comunidades rurais. Procuram destruir programas de saúde, revogando os impostos que os pagam de modo a enriquecer o seu eleitorado, e eliminar o Acto Dodd-Frank, que impôs alguns constrangimentos muito necessários no sistema financeiro predatório que cresceu durante o período neoliberal.
Isto é apenas uma amostra de como a destruição está a ser conduzida pelo Partido Republicano com o seu novo poder. De facto, este já não é um partido político no sentido tradicional. Os analistas políticos conservadores Thomas Mann e Norman Ornstein descreveram-no como uma “insurgência radical”, que abandonou a política parlamentar convencional.
Muito disto tem sido levado a cabo às escondidas, em reuniões privadas, tão longe do conhecimento do público quanto possível. Outras políticas republicanas são mais conhecidas, como a retirada do Acordo de Paris, que isolou os EUA como um estado à parte, que recusa participar nos esforços internacionais para confrontar a ameaça de desastre ambiental. Pior ainda, têm a intenção de maximizar o uso de combustíveis fósseis, incluindo os mais perigosos; desmantelar as regulações; e cortar radicalmente o investimento na pesquisa e desenvolvimento das fontes de energia alternativa, que dentro de pouco tempo serão necessários a uma sobrevivência digna.
As razões por detrás destas políticas são diversas. Algumas são simplesmente serviço ao eleitorado. Outras preocupam pouco os “donos do mundo”, mas são concebidas para agarrar segmentos do eleitorado que os Republicanos têm conseguido manter, já que as políticas republicanas se têm desviado tanto para a direita que as suas propostas não atraem eleitores. Por exemplo, acabar com o apoio ao planeamento familiar não é serviço ao eleitorado.
De facto, esse grupo pode na sua maioria prover o planeamento familiar. Mas esses cortes apelam à sua base de apoio entre os Cristãos Evangélicos – eleitores que fecham os olhos ao facto de estarem na realidade a apoiar um maior número de gravidezes indesejadas e, portanto, aumentando a frequência do recurso ao aborto em condições prejudiciais e até mesmo letais.
Nem todos os estragos poderão ser imputados ao charlatão que nominalmente está ao comando das operações, à sua agenda extravagante ou às forças do congresso que desencadeou. Alguns dos mais perigosos desenvolvimentos que se têm verificado com Trump têm raízes em iniciativas de Obama – iniciativas aprovadas, certamente, sob pressão do Congresso Republicano.
A mais perigosa quase não foi reportada. Um estudo muito importante no Bulletin of Atomic Scientists, publicado em Março de 2017, revela que o programa de modernização das armas nucleares de Obama aumentou “o poder destruidor das forças de mísseis balísticos existentes nos EUA num factor de aproximadamente 3 – e cria exactamente o que esperaríamos ver, se um estado com armas nucleares planeasse ter o poder de travar e vencer uma guerra nuclear desarmando os inimigos com um primeiro ataque-surpresa.”
Como apontam os analistas, este novo poder ameaça a estabilidade estratégica de que depende a sobrevivência da espécie humana. E o registo arrepiante de momentos próximos da catástrofe e de comportamentos irresponsáveis por parte de líderes em anos passados demonstra quão frágil é a nossa sobrevivência. Neste momento, este programa está a ser levado avante sob o comando de Trump. Estes desenvolvimentos, em conjunto com a ameaça de desastre ambiental, ensombram todo o resto; e pouco se discutem, enquanto a atenção se dirige às performances do artista na boca de cena.
Não é claro que Trump tenha noção do que ele e os seus acólitos estão a preparar. Talvez ele seja autêntico: um megalomaníaco ignorante cuja única ideologia é ele mesmo. Mas o que está a acontecer sob o comando da ala extrema da organização Republicana é muito claro.
DB: Vê alguma actividade encorajadora no lado dos Democratas? Ou é tempo de começar a pensar num terceiro partido?
NC: Há muito que considerar. A característica mais notável da eleição de 2016 foi a campanha de Bernie Sanders, que mudou o padrão estabelecido por mais de um século de história política dos EUA. Um corpo substancial de investigação em ciência política atesta de forma convincente que as eleições são sem dúvida compradas; o financiamento das campanhas é só por si um factor de previsibilidade eficaz no que toca à elegibilidade, quer para o Congresso, quer para a Presidência. Também permite prever as decisões das entidades oficiais eleitas.
Do mesmo modo, uma maioria considerável do eleitorado (os mais baixos na escala de rendimentos) estão de facto marginalizados, na medida em que os seus representantes ignoram as suas preferências. Nesta perspectiva, é pouco surpreendente a vitória dum bilionário estrela de TV, com apoio substancial dos média: apoio directo do principal canal de cabo, a Fox, de Rupert Murdoch, e de programas de rádio muito influentes de direita; apoio indirecto mas generoso por perto do resto dos maiores meios de comunicação, seduzidos pelas artimanhas de Trump e as receitas de publicidade que entraram.
A campanha de Sanders, por outro lado, cortou radicalmente com o modelo dominante. Sanders era pouco conhecido. Quase não tinha apoios nos principais meios de financiamento, foi ignorado ou achincalhado pelos média e identificou-se com a assustadora palavra “socialista”. Ele é agora a mais popular figura política no país por uma larga margem.
No mínimo, o sucesso da campanha de Sanders mostra que se podem fazer muitas opções mesmo dentro do quadro redutor dos dois partidos, com todas as barreiras institucionais que impedem que nos libertemos dele. Durante a Administração Obama, o Partido Democrático desintegrou-se ao nível local e estatal. O Partido já tinha abandonado a classe trabalhadora anos antes, ainda mais com as políticas comerciais e fiscais de Clinton, que minaram a produção dos EUA e o emprego estável que esta proporcionava.
Não há falta de propostas políticas progressistas. O programa desenvolvido por Robert Polli no seu livro Greening the Global Economy constitui uma abordagem muito promissora. O trabalho de Gar Alperovitz sobre a construção de uma democracia autêntica baseada na autogestão dos trabalhadores é outra. A implementação prática destas abordagens e ideias relacionadas está a tomar forma de muitas maneiras diferentes.
Organizações populares, algumas delas resultado da Campanha de Sanders, estão activamente envolvidas em aproveitarem as muitas oportunidades que se apresentam.
Ao mesmo tempo, o quadro estabelecido de dois partidos, apesar de respeitável, não está de modo algum gravado na rocha. Não é segredo que, em anos recentes, as instituições políticas tradicionais têm estado em declínio nas democracias industriais, sob o impacto do que é designado “populismo”. O termo é usado muito livremente para referir a onda de descontentamento, raiva e desprezo pelas instituições que tem acompanhado o assalto neoliberal da última geração, que conduziu à estagnação para a maioria e, ao mesmo tempo, uma concentração de riqueza nas mãos de uns poucos.
A democracia funcional vai-se desgastando como efeito natural da concentração do poder económico que se traduz rapidamente em poder político por meios que conhecemos, mas também por razões mais profundas e fundamentais. A pretensão da doutrina é que a transferência do poder de decisão do sector público para o “mercado” contribui para a liberdade individual, mas a realidade é diferente. A transferência ocorre das instituições públicas, nas quais os eleitores têm uma palavra, tanto quanto a democracia funcionar, para as tiranias privadas (as corporações que dominam a economia), nas quais os eleitores não têm qualquer palavra a dizer. Na Europa, há um método ainda mais directo de ameaçar a democracia: colocar decisões cruciais nas mãos duma troika não eleita (o FMI, o BCE, a Comissão Europeia), que ajuda os bancos da Europa do Norte e os credores, não o eleitorado.
Estas políticas têm como objectivo fazer com que a sociedade deixe de existir, a famosa descrição que Margaret Thatcher fez do mundo tal como o percepcionava – ou, mais exactamente, como esperava criá-lo: um mundo onde não existe sociedade, apenas indivíduos. Esta foi uma paráfrase involuntária de Marx e da sua amarga condenação da repressão em França, que deixou a sociedade como um “saco de batatas”, uma massa amorfa, que não funciona. No caso em questão, o tirano não é um líder autocrático (no Ocidente, pelo menos), mas concentrações de poder privado.
O colapso de instituições centristas de governo foi evidente em eleições: em França em meados deste ano, e nos EUA, alguns meses antes, onde os dois candidatos que mobilizaram as forças populares foram Sanders e Trump – embora Trump não tenha perdido tempo para demonstrar a fraudulência do seu “populismo” garantindo rapidamente que os elementos mais severos do velho establishment estariam firmemente acomodados no poder no “pântano” luxuriante.
Estes processos podem levar à quebra do rígido esquema norte-americano de ter uma regra de um partido com duas fracções a competir entre si, com blocos de eleitorado que vão variando com o tempo. Pode ser uma oportunidade para a emergência de um verdadeiro “partido do povo”, um partido cujo eleitorado sejam de facto as pessoas, cujos valores mereçam respeito.
DB: A primeira visita de Trump ao estrangeiro foi à Arábia Saudita. Que significado vê nisso e o que significa para a política no Médio Oriente num sentido lato? E o que pensa do estado de espírito de Trump em relação ao Irão?
NC: A Arábia Saudita é o género de lugar onde Trump se sente em casa: uma ditadura brutal, miseravelmente repressiva (notoriamente no caso dos direitos das mulheres, mas também em muitas outras áreas), o principal produtor de petróleo (agora a ser ultrapassado pelos EUA) e com muito dinheiro. A viagem resultou em promessas de vendas massivas de armamento, animando o seu círculo próximo, e vagamente insinuando outras ofertas sauditas. Uma das consequências foi que os amigos sauditas de Trump receberam luz verde para aumentar as suas horríveis atrocidades no Iémen e para disciplinar o Qatar, que se tem revelado demasiado independente dos senhores sauditas. O Irão também é um factor nesta questão. O Qatar partilha um campo de gás natural com o Irão e tem relações comerciais e culturais com ele, de que os sauditas e os seus associados, profundamente reaccionários, não gostam.
O Irão é de há muito visto pelos líderes dos EUA e pelos comentadores norte-americanos como extraordinariamente perigoso, talvez o país mais perigoso do planeta. Isto é muito anterior a Trump. De acordo com a doutrina do sistema, o Irão representa uma dupla ameaça: é o principal apoio do terrorismo e os seus programas nucleares representam uma ameaça de existência para Israel, se não mesmo para todo o mundo. É tão perigoso que Obama teve de instalar um avançado sistema de defesa aérea perto da fronteira com a Rússia para proteger a Europa das armas nucleares do Irão – que não existem e, em todo o caso, os líderes iranianos apenas usariam se estivessem possuídos por um desejo de serem imediatamente incinerados em resposta.
Esta é a doutrina do sistema. No mundo real, o apoio do Irão ao terrorismo traduz-se no apoio ao Hezbollah, cujo grande crime é ser a única força que impede outra invasão israelita do Líbano e, para o Hamas, que ganhou uma eleição livre na Faixa de Gaza – um crime que instantaneamente suscitou pesadas sanções e levou o governo dos EUA a preparar um golpe militar. Ambas as organizações, é verdade, podem ser acusadas de actos terroristas, embora estejam longe do terrorismo que advém do envolvimento da Arábia Saudita ma formação e acções das redes de jiadistas.
Em relação aos programas de armas nucleares do Irão, os serviços de informação dos EUA confirmam o que qualquer pessoa pode perceber por si mesma: se eles existem, fazem também parte da estratégia de dissuasão do Irão. Também há o facto, nunca mencionado, de que qualquer preocupação com as armas de destruição massiva iranianas (ADM) poderia ser resolvida simplesmente acatando o apelo do Irão para criar uma zona livre de ADM no Médio Oriente. Tal zona é fortemente apoiada pelos estados árabes e a maioria do resto do mundo, e é bloqueada em primeiro lugar pelos EUA, que pretendem proteger o poder de Israel no que diz respeito a ADM.
Uma vez que o sistema vigente não é inspeccionado, resta-nos a tarefa de encontrar as verdadeiras razões para a atitude dos EUA face ao Irão. Rapidamente surgem possíveis razões. Os EUA e Israel não toleram uma força independente numa região que consideram ser deles por direito. Um Irão com uma capacidade nuclear dissuasora, para estados desonestos que querem agitar o Médio Oriente a seu bel-prazer. Mas há mais. O Irão não pode ser perdoado pelo derrube do ditador instalado por Washington num golpe militar em 1953, golpe que destruiu o regime parlamentar do Irão, com a sua crença inconcebível de que o Irão poderá ter algum direito sobre os seus próprios recursos naturais. O mundo é demasiado complexo para qualquer descrição simples, mas parece-me ser este o essencial da história.
Também é bom lembrar que, nas últimas seis décadas, Washington esteve quase sempre a atormentar o Irão. Depois do golpe militar de 1953, veio o apoio norte-americano a um ditador descrito pela Amnistia Internacional como um dos maiores infractores dos direitos humanos essenciais. Logo a seguir ao seu derrube, veio a invasão do Irão por Saddam Hussein, apoiada pelos EUA, o que não foi coisa de pouca monta. Centenas de milhares de iranianos foram mortos, muitos por armas químicas. O apoio de Reagan ao seu amigo Saddam foi tão extremo que, quando o Iraque atacou um navio dos EUA, o USS Stark, matando 37 marinheiros norte-americanos, recebeu apenas uma ligeira repreensão como resposta. Reagan também procurou culpar o Irão pelos horríveis ataques com armas químicas aos curdos iraquianos.
Os EUA acabariam por intervir directamente na Guerra Irão-Iraque, levando à capitulação amarga do Irão. Depois disso, George H.W. Bush convidou engenheiros nucleares iranianos para irem aos EUA para terem treino avançado na produção de armas nucleares – uma extraordinária ameaça ao Irão, muito diferente das suas outras implicações. E claro, Washington tem sido a potência dominante por trás das duras sanções contra o Irão que continuam até ao presente.
Trump, por seu turno, juntou-se aos mais duros e repressivos ditadores que gritam imprecações ao Irão. Aconteceu que houve eleições no Irão durante a viagem extravagante de Trump ao Médio Oriente. Uma eleição que, com todos os seus defeitos, seria impensável no país dos seus anfitriões sauditas, que são a fonte do islamismo radical que inquina a região. Mas a animosidade dos EUA contra o Irão vai para além do próprio Trump. Inclui aqueles que são vistos como os “adultos” na Administração Trump, como James “Mad Dog” Mattis, o Secretário da Defesa. E recua muito no passado.
DB: Quais são os problemas estratégicos no que concerne a Coreia do Norte? Pode fazer-se alguma coisa para aliviar o conflito crescente?
NC: A Coreia do Norte tem sido um problema doloroso desde o fim da II Guerra Mundial, quando a esperança dos coreanos pela unificação da península foi bloqueada pela intervenção das grandes potências, sendo os EUA os principais responsáveis.
A ditadura norte-coreana pode ganhar o prémio para a brutalidade e repressão, mas procura e, até certo ponto, consegue desenvolvimento económico, apesar do enorme fardo de um sistema militar imenso. Esse sistema inclui, claro, um arsenal em expansão de armas nucleares e mísseis, que colocam a região sob ameaça e, a longo prazo, a outros países – mas a sua função é ser um entrave, função que o regime norte-coreano não deverá abandonar enquanto se mantiver sob ameaça de destruição.
Hoje, é-nos dito que o grande desafio que o mundo encara é como obrigar a Coreia do Norte a congelar estes programas nucleares e de mísseis. Talvez devêssemos recorrer a mais sanções, guerra cibernética, intimidação; à instalação do sistema antimísseis Terminal High Altitude Area Defense (THAAD) [1], que a China considera como uma séria ameaça aos seus próprios interesses; talvez devêssemos mesmo recorrer ao ataque directo à Coreia do Norte, que, naturalmente, provocaria retaliação de artilharia em massa, devastando Seul, e grande parte da Coreia do Sul, mesmo sem o uso de armas nucleares.
Mas há outra opção, que parece ser ignorada: poderíamos simplesmente aceitar a oferta da Coreia do Norte para fazer o que estamos a exigir. A China e a Coreia do Norte já propuseram que a Coreia do Norte congelasse os seus programas nucleares e de mísseis. A proposta foi, no entanto, rejeitada de imediato por Washington, tal como fora dois anos antes, porque inclui um quid pro quo: apela aos EUA para que parem os seus ameaçadores exercícios militares nas fronteiras da Coreia do Norte, incluindo as simulações de ataques nucleares por B-52.
A proposta chinesa-norte coreana é razoável. Os norte-coreanos lembram-se bem de que o seu país foi literalmente terraplanado pelos bombardeamentos norte-americanos, e muitos poderão lembrar o modo como as forças dos EUA bombardearam grandes barragens quando não havia outros alvos. Houve relatos entusiásticos, em publicações militares norte-americanas, sobre o excitante espectáculo de uma enorme inundação a varrer os campos de arroz de que “os asiáticos” dependem para sobreviver. Vale muito a pena lê-los, são uma parte útil da memória histórica.
A oferta para congelar os programas nucleares e de mísseis da Coreia do Norte em troca pelo fim das acções altamente provocadoras na fronteira da Coreia do Norte poderiam ser a base para negociações mais ambiciosas, que poderiam reduzir radicalmente a ameaça nuclear e talvez mesmo pôr termo à crise da Coreia do Norte.
Ao contrário de muitos comentários inflamados, há boas razões para pensar que tais negociações poderiam ter sucesso. E, no entanto, apesar de que os programas norte coreanos são constantemente descritos com sendo talvez a maior ameaça que enfrentamos, a proposta chinesa-norte coreana é inaceitável para Washington, e é rejeitada pelos comentadores dos EUA com impressionante unanimidade. Esta é outra entrada no vergonhoso e deprimente registo de opção consciente pela força quando opções pacíficas poderão estar disponíveis.
As eleições de 2017 na Coreia do Sul podem oferecer um raio de esperança. O recém-eleito presidente Moon Jae-in parece ter a intenção de reverter as duras políticas de confronto do seu antecessor. Ele apelou a opções diplomáticas e a que se se dêem passos para a reconciliação, o que será sem dúvida uma melhoria em relação à atitude belicista que poderá levar a um verdadeiro desastre.
DB: No passado, expressou preocupação acerca da União Europeia. O que acha que acontecerá à medida que a Europa se tornar menos ligada aos EUA e ao Reino Unido?
NC: A União Europeia tem problemas fundamentais, nomeadamente a moeda única sem união política. Também tem muitas características positivas. Há ideias razoáveis que têm como objectivo salvaguardar o que é bom e melhorar o que é prejudicial. A iniciativa DiEM25 de Yanis Varoufakis para uma Europa Democrática é uma abordagem promissora.
O Reino Unido tem sido um substituto dos EUA na política europeia. O Brexit poderá encorajar a Europa a tomar um papel mais independente nas questões globais, um curso que pode ser acelerado pelas políticas de Trump que cada vez mais nos isolam do mundo. Enquanto ele grita e agita um enorme bastão, a China poderá tomar a liderança nas políticas enérgicas globais enquanto expande a sua influência para o Ocidente e, em última instância, para a Europa, com base na Organização para a Cooperação de Xangai e a Nova Rota da Seda.
Que a Europa se possa tornar uma “terceira força” independente tem constituído matéria de preocupação para responsáveis nos EUA desde a Segunda Guerra Mundial. Tem havido discussões de qualquer coisa como uma concepção gaulista da Europa desde o Atlântico até aos Urais ou, em anos recentes, a visão de Gorbachev duma Europa comum, de Bruxelas a Vladivostok.
O que quer que aconteça, a Alemanha deverá reter um papel dominante nos assuntos europeus. É bastante surpreendente ouvir uma chanceler alemã conservadora, Angela Merkel, a dar lições ao seu homólogo norte-americano sobre direitos humanos e tomar a dianteira, pelo menos por algum tempo, para confrontar o problema dos refugiados, a profunda crise moral da Europa.
Por outro lado, a insistência alemã na austeridade e a paranóia sobre a inflação e a sua política de promover exportações limitando o consumo doméstico não têm qualquer responsabilidade pelos problemas da economia europeia, em particular a situação apertada das economias periféricas. Na melhor das hipóteses, contudo, e não está fora de questão, a Alemanha poderia influenciar a Europa para se tornar uma força positiva em questões globais.
DB: O que acha do conflito entre a Administração Trump e as comunidades de informação dos EUA. Acredita no “Estado Profundo”?
NC: Há uma burocracia da segurança nacional que persiste desde a Segunda Guerra Mundial. E os analistas da segurança nacional, dentro e fora do governo, têm-se mostrado estarrecidos com muitos dos ataques violentos de Trump. As suas preocupações são partilhadas pelos peritos, bastante credíveis, que adiantaram o relógio do Juízo Final para dois minutos e meio antes da meia-noite, mal Trump entrou em funções – mais perto do que alguma vez esteve do desastre terminal desde 1953, quando os EUA e a URSS fizeram explodir armas termonucleares. Mas não vejo muitos sinais, para além disso, de que haja uma conspiração do “Estado Profundo”.
DB: Para concluir, à medida que se aproxima o seu 89º aniversário, pergunto: tem uma teoria da longevidade?
NC: Sim, na realidade é simples: se estiver a andar de bicicleta e não quiser cair, tem que continuar a andar, e rápido.
[1] O Terminal High Altitude Area Defense (THAAD), anteriormente chamado de Theater High Altitude Area Defense, é um sistema de mísseis antibalísticos do Exército dos Estados Unidos projectado para abater mísseis balísticos de alcance curto, médio e intermédio [Nota da tradução].
- Noam Chomsky é Professor Emérito no MIT, publicou vários livros e artigos sobre assuntos internacionais, em particular sobre Israel e a Palestina. O seu último livro, Global Discontents: Conversations on the Rising Threats to Democracy, será publicado em Dezembro de 2017.
- David Barsamian é o Director da Alternative Radio em Boulder, no Colorado. (www.alternative radio.org).
(*)Nota do Editor: Este artigo foi originalmente publicado em TomDispatch.com
Tradução de André Rodrigues P. Silva
(Com odiario.info)
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