quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

À espera de Trump: a crise sistémica global e alguns golpes

                                                                           

 Jorge Beinstein  

Enquanto a desglobalização segue o seu curso, as elites dominantes do planeta procuram desesperadamente preservar as suas posições, acentuam as suas disputas internas, começam a produzir salvadores pragmáticos de todo o tipo. Foi assim que irrompeu uma personagem grotesca como Donald Trump. Ou os neofascismos europeus emergentes e os já instalados na América Latina. 

Trata-se de tentativas ilusórias de recomposição de sistemas decadentes que aprofundam ao mesmo tempo o saque, a dinâmica parasitária já vista ao longo da história humana acompanhando e acelerando os declínios imperiais.

A partir da vitória de Trump, os meios de comunicação hegemónicos lançaram uma avalanche de referências ao “proteccionismo económico” do governo imperial e, por consequência, ao possível início de uma nova era de “desglobalização”. Na realidade, a tomada de posse de Trump não será a causa dessa anunciada desglobalização, mas antes o resultado de um processo que deu o seu primeiro passo com a crise financeira de 2008 e que acelerou desde 2014, quando o Império reentrou em recessão.

Do ponto de vista do comércio internacional, a desglobalização avança desde há aproximadamente cinco anos. Segundo dados do Banco Mundial, na década de 1960, as exportações representaram uma média de 12,2% do PIB, na década seguinte passaram a 15,8%, nos anos 1980 chegaram a 18,7%, mas, até finais dessa década, o processo acelerou e, em 2008, alcançou o nível máximo, quando atingiu 30,8%. 

A crise desse ano assinalou o tecto do fenómeno a partir do qual se produziu uma descida suave, que se acentuou desde 2014-2015 (1). A propaganda que dizia que as economias se internacionalizavam cada vez mais, condenadas a exportar porções crescentes da sua produção, foi desmentida pela realidade desde 2008 e agora a globalização comercial começa a reverter-se.

Mas as duas décadas de globalização acelerada foram principalmente um movimento de financeirização, de hegemonia total do parasitismo financeiro sobre o conjunto da economia mundial. O seu centro motor encontra-se nos EUA, estendendo as suas praças-fortes até ao conjunto do Ocidente e ao sócio oriental, o Japão. 

Os chamados “produtos financeiros derivados”, negócios especulativos altamente voláteis, verdadeiro coração do sistema, chegavam, no ano de 1999, a uns 80 biliões (milhões de milhões) de dólares (2), aproximadamente duas vezes e meia o Produto Bruto Mundial, logo essa massa expandiu-se vertiginosamente e, em 2008, um pouco antes do desastre financeiro, tocava os 683 biliões de dólares, quase 12 vezes o Produto Bruto Mundial desse ano. 

Ali alcançou o seu tecto histórico, cresceu depois muito pouco em termos nominais, de tal maneira que, até finais de 2013, chegava aos 710 biliões de dólares (9,3 o Produto Bruto Global desse ano), foi o começo da queda, já que, em Dezembro de 2015, havia caído para 490 biliões (6,6 vezes o Produto Bruto Global de 2015). A oligarquia financeira havia entrado em declínio, o que acentuou o seu canibalismo interno e as suas tendências depredadoras, não apenas na periferia, mas também no centro do sistema.

A esses processos económicos juntou-se uma profunda crise geopolítica, o expansionismo político-militar do Império foi travado no seu principal território de operações: a Ásia. Os dois rivais estratégicos do Ocidente, a China e a Rússia, estreitaram a sua aliança e foram arrastando para o seu espaço grandes, médios e pequenos estados da região: desde a Índia até o Irão, passando pelos países da Ásia Central. 

As recentes viragens da Turquia e das Filipinas, afastando-se da influência norte-americana e aproximando-se do espaço chino-russo marcam desde o Mar Mediterrâneo e desde o Oceano Pacífico, nos dois extremos da Eurásia, o declínio do domínio periférico do imperialismo ocidental. O fracasso dos EUA na Síria assinala o princípio do fim da sua omnipotência militar.

De facto, a decadência do Ocidente não implica a ascensão segura dos capitalismos de estado russo e chinês como novos donos do mundo, a crise está a chegar à China, o seu crescimento está em desaceleração, a Rússia está em recessão, ambas as potências são afectadas pelo declínio dos mercados ocidentais e do Japão, os seus principais clientes. 

Tratam então de compensar essas perdas estendendo os seus negócios e acordos políticos até à periferia, especialmente até ao espaço asiático. Talvez o mais ambicioso projecto chinês seja a “Nova Rota da Seda”, gigantesca massa de investimentos em infraestrutura e sistemas de transportes terrestre e marítimo distribuídas na Ásia, apontando à integração comercial do espaço euroasiático atingiria uns 890 milhões de dólares, segundo o Financial Times (3). Essa cifra poderia ser comparada com a do Plano Marshall que, em valores actuais, representaria cerca de 130 milhões de dólares, a China estaria empurrando para essa zona investimentos equivalentes a mais de seis planos Marshall. 

O problema é que todas essas economias que a China procura integrar estão a ser flageladas pela crise, a queda dos preços das matérias-primas deprime o conjunto da periferia, encurrala a Rússia, o Irão, as repúblicas centro-asiáticas… enquanto a Europa declina. A crise é global, obedece à dinâmica do capitalismo enquanto sistema planetário, à sua degeneração parasitária que degrada tanto os países centrais como os periféricos, emergentes ou não. 

A América Latina é agora vítima dessas trocas. Na sua retirada para o pátio das traseiras da história imperial, os EUA executam ali uma estratégia flexível e esmagadora de reconquista e saque que, em poucos anos, conseguiu deslocar os governos das Honduras, do Paraguai, do Brasil e da Argentina, encurralar a Venezuela e pôr de joelhos a cúpula da insurgência colombiana. 

De facto, essa reconquista tem lugar no quadro da crise económica, social-institucional, cultural e geopolítica do Ocidente que leva até ao pântano os regimes lacaios do continente. As vitórias direitistas do Paraguai, Argentina ou Brasil anunciam crises profundas de governabilidade. Onde os seus “governos”, na verdade, bandos de salteadores, geram com as suas acções grandes destruições do tecido económico e inevitavelmente a ascensão de protestos sociais massivos e crescentes. 

Dito de outra maneira, a actual investida direitista não é o começo da reconversão colonial da região, da instauração de uma nova ordem elitista, mas uma etapa de desordem, de revoltas populares ameaçando as elites dominantes. Enquanto a desglobalização segue o seu curso, as elites dominantes do planeta procuram desesperadamente preservar as suas posições, acentuam as suas disputas internas, começam a produzir salvadores pragmáticos de todo o tipo.

Foi assim que irrompeu uma personagem grotesca como Donald Trump procurando combinar xenofobia, concentração de rendimentos, reindustrialização e recomposição do esquema geopolítico global. Ou os neofascismos europeus emergentes e os já instalados na América Latina. Trata-se de tentativas ilusórias de recomposição de sistemas decadentes que aprofundam ao mesmo tempo o saque, a dinâmica parasitária já vista ao longo da história humana acompanhando e acelerando os declínios imperiais.

(1) Banco Mundial, “World development Indicators”, 17 de Novembro de 2016.
(2) Nos EUA, no entanto, um bilião equivale a um milhar de milhões, ou seja, 1 000 000 000, bem como para os países que adoptaram a designada escala curta, por oposição à escala longa, com os seus doze zeros, efectivamente um milhão de milhões, ou seja, 1 000 000 000 000 [Nota do tradutor].
(3) James Kynge, “How the Silk Road plans will be financed”, Financial Times, 9 de Maio, 2016.

Tradução de André Rodrigues

(Com odiario.info)

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