domingo, 11 de janeiro de 2015

Eu sou todos os Charlies

                                                                     


Soares Novais [*]


Eu sou Charlie; 

Eu sou todos os Charlies; 

Eu sou cada um dos 360 jornalistas e outros trabalhadores que a Controlinveste e o Belmiro despediram no Diário de Notícias, no Jornal de Notícias, na TSF, na Notícias Magazine, no 24 Horas e no Público; 

Eu sou a senhora Ana que, aos 84 anos, é um dos mil sem-abrigo que vivem nas ruas de Lisboa; 

Eu sou o tradutor checo, que passa os dias na biblioteca e a quem pela calada da noite roubam os livros na casa que habita numa das artérias da Capital [NR] ; 

Eu sou todas as operárias e operários que viram as suas vidas desfeitas por capitalistas sem coração e sem pátria; 

Eu sou a puta que, para alimentar os filhos, se vende na berma da estrada; 

Eu sou cada um dos milhares de desempregados que faz fila nos chamados Centros de Emprego; 

Eu sou cada um dos pensionistas e reformados a quem pagam 200 euros depois de uma vida inteira de trabalho; 

Eu sou cada um dos emigrantes, brancos e pretos, a quem obrigam a trabalhar de sol a sol por um salário de merda; 

Eu sou cada um dos milhares de jovens licenciados a quem um imbecil, travestido de governante, mandou emigrar; 

Eu sou cada um dos pescadores a quem a União Europeia proíbe de pescar sardinha, condenando-os à fome; 

Eu sou cada um dos pequenos e médios agricultores a quem a grande distribuição condena a dar aquilo que produzem; 

Eu sou cada um dos pequenos e médios produtores de leite a quem os hipermerceeiros esmagam; 

Eu sou cada uma das mulheres e homens vítimas de violência doméstica; 

Eu sou cada um daquelas velhas e velhos que abandonamos; 
  
Eu sou a criança que morre nos braços,  leves, ressequidos, famintos. da mãe; 

Eu sou cada um daqueles que nos últimos dias morreram por falta de assistência médica nos ... hospitais; 

Eu sou um dos milhares de trabalhadores a quem o Estado penhorou o salário por uma dívida de 1 euro; 

Eu sou cada uma das milhares de crianças refugiadas e que a essa condição foram condenadas pelos poderosos do mundo; 

Eu sou cada um dos palestinianos que atira pedras contra o muro que há na Faixa de Gaza; 

Eu sou cada um dos negros que a polícia norte-americana mata nas ruas; 

Eu sou cada um dos milhares de sem-terra que no Brasil lutam por uma vida digna; 

Eu sou cada um dos milhares de africanos mortos pelos vírus de ébola e a quem virámos as costas por isso ser doença de pretos; 

Eu sou cada um dos milhões de pessoas a quem violência de Estado, tão má e criminosa quanto a violência religiosa, quer enterrar  vivos. 

Eu sou Charlie. 

Eu sou todos os Charlies.

[NR] Referência a reportagem passada na TVI 24.   O dito tradutor é apoiado pela equipa de rua da Junta de Freguesia de Arroios.   Segundo ele, com "o fim do comunismo" deixou de ter emprego como professor e tradutor e arribou a Lisboa – onde não encontrou melhor sorte.   Passa os dias na Biblioteca Nacional e dorme na rua.   Ali, segundo disse, roubam-lhe os livros e a comida que lhe dão. 

[*] Jornalista e escritor, searadeletras@sapo.pt 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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