quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

À ESPERA DA VERDADE

                                                                     


Revista Fortune revela já em 64 elo entre empresários de SP e embaixada dos EUA para dar golpe

Publicação norte-americana fazia chamado por investimento estrangeiro no Brasil e causou divergência entre conspiradores paulistas e cariocas
    
Apenas cinco meses após o golpe que depôs o presidente João Goulart, a tradicional revista norte-americana Fortune publicava uma longa reportagem narrando a parceria entre o então embaixador dos EUA, Lincoln Gordon, e os empresários paulistas que articularam a conspiração. Enquanto setores civis e militares se armavam e ensaiavam a rebelião, lideranças golpistas foram pessoalmente à embaixada perguntar qual seria a posição de Washington caso fosse deflagrada uma guerra civil no Brasil. “Cauteloso e diplomático, Gordon deixou a impressão de que, se os paulistas conseguissem segurar [o comando da guerra civil] por 48 horas, obteriam o apoio e o reconhecimento dos Estados Unidos”, escreveu a publicação.

Essa é a apenas uma das revelações do artigo publicado por Philip Siekman na edição da Fortune de setembro de 1964, intitulado “When Executives Turned Revolutionaries” (Quando executivos viraram revolucionários), que completava no subtítulo: "Uma história ainda não contada: como os empresários de São Paulo conspiraram para derrubar o governo infectado de comunistas do Brasil". 

A revista dá voz aos empresários "bandeirantes" para mostrar como os executivos se articularam para financiar a conspiração armada que depôs Jango. Embora voltada ao público norte-americano, a reportagem repercutiu no país, acirrou rivalidades entre os golpistas paulistas e cariocas e foi usada como panfleto para incentivar a vinda de investimentos estrangeiros para o país.

Entre os fatos mais reveladores do texto de Siekman, a revista procurou destacar o papel central que o Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e seus líderes desempenharam na conspiração. Primeiro, arrecadando fundos dos principais industriais paulistas e cariocas: “No total, cerca de 400 empresas contribuíram para a instituição; e o fluxo de caixa anual não passava dos US$ 500 mil”. E, mais tarde, ao decidir adotar métodos mais diretos: “Células de vigilância começaram a se equipar com armas leves, instalar fábricas clandestinas de granadas de mão, e escolher um local para levar a cabo operações de guerrilha na guerra civil que consideravam inevitável e iminente”. O Ipês foi fundado em 1961 "oficialmente" para defender a livre iniciativa e a economia de mercado; a entidade uniu acadêmicos conservadores, empresários e militares para desestabilizar o governo Jango.

A partir de um ponto de vista do empresariado paulista, Fortune traça o panorama do cenário político, econômico e social do Brasil, concluindo que, sem a intervenção, a situação só poderia ter levado o país ao caos. “De repente e quase milagrosamente”, diz Fortune, eles haviam salvado a nação, interpreta a publicação. Se antes a revista só imaginava duas possíveis saídas para o Brasil — um “Estado totalitarista dominado por comunistas” ou uma “guerra civil sangrenta e complexa” —, os “Paulistas” teriam forjado a terceira via: uma revolta que durou dois dias, pôs Jango no exílio e seus simpatizantes na cadeia. É por isso que, de acordo com a revista, o levante deveria ser merecidamente chamado de “a Revolta dos Paulistas”.

A revista Fortune foi fundada em 1930, meses após o crash da bolsa de NY, pelo editor Henry Luce — o mesmo que criou as icônicas Life e TIME. Pioneira ao especializar-se em finanças e negócios, a publicação existe até hoje e faz parte de um dos maiores conglomerados de mídia do mundo.
Leia também: Conspiradores fizeram pesquisa de opinião antes de decidir pelo golpe de 64

Os principais nomes: Ayres, Mesquita e Resstel

O jornalista Philip Siekman reconta os pormenores da conspiração utilizando como personagens alguns líderes ipesianos e expoentes militares do golpe. Três deles tiveram, segundo a Fortune, papel central: Paulo Ayres Filho, representante da indústria farmacêutica; Júlio de Mesquita Filho, diretor-proprietário do jornal O Estado de S.Paulo; e o coronel Rubens Resstel, responsável pelo planejamento da mobilização civil-militar em São Paulo.


Para ilustrar o artigo, revista Fortune traz foto de Júlio de Mesquita Filho (centro), diretor-proprietário do Estadão

Anticomunista ferrenho, Ayres Filho é descrito como um dos idealizadores do Ipês e principal incentivador da função marqueteira do instituto: por meio de panfletos, cartilhas liberais, peças publicitárias e vídeos “educativos”, o Ipês deveria influenciar a opinião pública.
                                                                
Segundo a revista, o diretor do Estadão, Júlio de Mesquita Filho — “um dos recrutas mais proeminentes” e “líder nominal do grupo” —, teve papel fundamental no setor logístico da conspiração, sobretudo às vésperas do golpe, quando as células civis já começavam a se preparar para o confronto. “O grupo Mesquita sozinho gastou cerca de US$ 10 mil em armas, incluindo uma série de metralhadoras”, relata a publicação.

O coronel Rubens Resstel, por sua vez, é caracterizado como o elo essencial entre os civis ipesianos e o Exército. Militar graduado e egresso da tropa que lutara na 2ª Guerra Mundial, Resstel teve a função de convencer os altos comandos e a jovem oficialidade de militares que permaneciam céticos e legalista.

Também são citados na matéria como importantes conspiradores civis: Gilbert Huber (proprietário das Listas Telefônicas Brasileiras), Adhemar de Barros (governador de São Paulo), e os advogados João Adelino Prado, Luiz Werneck e Flávio Galvão (jornalista e advogado do Estadão).
                           
                                                           
É difícil dizer se a revista Fortune de fato “sensibilizou” o público-alvo norte-americano e contribuiu para melhorar a imagem dos “revolucionários” brasileiros no exterior. Mas uma coisa é certa: além de repercutir na política e na imprensa nacional, a publicação da reportagem causou reações distintas nas fileiras do Ipês; tanto massageou egos dos empresários paulistas, quanto desagradou seus rivais cariocas.

O historiador e cientista político René Armand Dreifuss, em seu livro 1964: a conquista do Estado, relata a insatisfação das lideranças ipesianas do Rio de Janeiro com a publicação da reportagem e a exposição dos empresários paulistas. Um dos documentos que encontrou em sua pesquisa foi um telegrama endereçado a João Baptista Leopoldo Figueiredo (presidente do Ipês-SP e primo-irmão mais velho do futuro presidente do país), enviado por Harold Cecil Polland, líder do Ipês-Rio. Nele, Polland comenta a “questão muito séria” e “prejudicial”: “Fomos desagradavelmente surpreendidos pelo artigo da Fortune sobre a Revolução, comprometedoramente comentado pela Tribuna da Imprensa e Última Hora”.

No dia 19 de setembro de 1964, o jornal Última Hora, de Samuel Weiner, também repercutiu a reportagem em uma nota na primeira página: “’Fortune’ e a História Secreta da ‘Revolução’”. O jornal destacou as revelações sobre o embaixador Lincoln Gordon, pedindo esclarecimentos a ele e ao governo Castello Branco, o primeiro presidente do regime civil-militar. “É uma história inteiramente diferente da que tem sido contada em discursos e entrevistas dos participantes do movimento, e até mesmo nas reportagens mais indiscretas que se publicaram em nosso País”, escreveu o jornal.

Logo no início do artigo, o jornalista Philip Siekman já havia dado o tom do problema brasileiro: o ceticismo dos investidores estrangeiros em aplicar seus dólares no Brasil seria uma questão de falta de comunicação. “A história da revolução brasileira, com todos seus aspectos encorajadores, não tinha sido, até o momento, totalmente contada na imprensa norte-americana”.

Ao finalizar a reportagem, Siekman volta a se dirigir aos mesmos investidores, defendendo que, como os industriais paulistas haviam feito a parte deles, os norte-americanos teriam de fazer a deles. “Se o Brasil não morrer na mesa de cirurgia enquanto os novos homens tentam curar as mazelas, o país vai precisar de polpudas infusões de ajuda exterior.” 

Mais adiante, Siekman incentiva os executivos internacionais a vencerem o ceticismo em relação ao Brasil, mostrando que o governo Castello Branco até já revisara as leis de remessas de lucros, “abrindo as portas para um fluxo normal das filiais à matriz”. “Para os investidores”, diz Siekman, “distância é sinônimo de objetividade, mas também dificulta previsões”.

“No ano que vem, os diretores de uma empresa norte-americana vão ter dificuldades em explicar a seus acionistas por que investiram no Brasil em 1964. Daqui a dez anos, podem vir a achar ainda mais difícil explicar por que não investiram nada”, arremata a revista. (Com Opera Mundi)

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