É com profunda emoção que escrevo esta apresentação do livro de Memórias de Gregório Bezerra. Quando penso em Gregório, vejo diante de mim o povo brasileiro, os milhões de homens, mulheres e crianças do nosso país, maltratados e sofridos durante séculos de exploração e opressão.
Gregório é a legítima expressão desse povo, no que ele tem de mais autêntico e verdadeiro. É a genuína personificação dos explorados e oprimidos da nossa terra – jamais dos poderosos, dos exploradores. Estes sempre lhe dedicaram um indisfarçável ódio de classe, ódio dos opressores, conscientes do perigo, para os interesses dominantes, das “ideias subversivas” difundidas por homens como ele.
Na grande trincheira da luta de classes, Gregório sempre esteve do lado dos trabalhadores, dos desvalidos e dos oprimidos. Justamente por isso suportou constantes perseguições policiais, atrozes torturas e um total de 23 anos de cárcere em diversos presídios do Brasil. Teve de suportar a feroz campanha que os meios de comunicação a serviço dos interesses dominantes sempre moveram contra ele e contra os comunistas.
Conheci Gregório há muitos anos. Em 1946, eu tinha apenas nove anos de idade quando ele, eleito deputado federal por Pernambuco na legenda do Partido Comunista do Brasil (PCB), foi morar conosco, na casa de meu pai, Luiz Carlos Prestes. O partido havia conquistado a legalidade e elegera para a Assembleia Nacional Constituinte uma bancada comunista composta de um senador, Luiz Carlos Prestes, e catorze deputados, entre os quais Gregório Bezerra. Em nossa casa, além da família, moravam vários camaradas do PCB.
Bancada comunista na Assembleia Constituinte de 1946:
Gregório Bezerra, na fila superior, o 4º da esquerda para a direitaGregório destacava-se, dentre todos, pela dedicação ao partido e à causa revolucionária que abraçara ainda jovem, mas sobretudo pelo humanismo que irradiava de sua pessoa. Ele sabia compreender os problemas de todos que o cercavam e relacionar-se bem e de maneira afetuosa tanto com as crianças quanto com os idosos, com pessoas importantes ou humildes, com homens ou mulheres. Gregório não incomodava; ao contrário, sempre ajudou em nossa casa e era capaz de manter permanentemente um convívio agradável com todos que o rodeavam. Lembro como minhas tias observavam que, de tantos companheiros que passaram por nossa casa, nenhum deixara tão boas lembranças e tantas saudades quanto ele.
Se Gregório sabia conversar com os adultos, também o sabia com as crianças, como era meu caso. Eis a razão por que guardo gratas lembranças dessa convivência que durou apenas dois anos, pois em 1948, após o fechamento do PCB pelo governo Dutra e a cassação dos mandatos dos parlamentares comunistas, ele foi sequestrado em pleno centro do Rio de Janeiro e levado clandestinamente para a Paraíba, onde, por meio de grosseira provocação policial, seria acusado de incendiar um quartel.
Mais tarde, eu já adulta, nossos caminhos, os meus e os dele, cruzaram-se algumas vezes na vida partidária. Foram, entretanto, encontros fugazes. Mas Gregório continuava sendo o mesmo companheiro atencioso, afável, amigo. Sempre acompanhei sua trajetória de dedicado militante comunista nos mais diversos pontos do país para onde o partido o enviava, seja na legalidade, seja na clandestinidade.
Foi com horror e indignação – como tantos outros brasileiros e também democratas de todo o mundo – que tomei conhecimento de sua prisão em Pernambuco, após o golpe militar de abril de 1964, e das bárbaras torturas a que fora submetido. Sua foto sendo arrastado seminu pelas ruas de Recife chocou a todos. Mas Gregório resistiu, apesar de já contar então com 64 anos de idade. Naquela ocasião, foi condenado a 19 anos de detenção. Mas então, em setembro de 1969, teve lugar no Rio de Janeiro o sequestro do embaixador norte-americano, promovido por organizações da esquerda armada. Em troca da vida do embaixador, os dirigentes desses grupos exigiram a libertação de quinze prisioneiros políticos que deveriam ser enviados para o exterior – entre eles estava o nome de Gregório Bezerra. Embora discordando desse tipo de ação, ele aceitou a libertação, divulgando, ao mesmo tempo, uma “Declaração ao povo brasileiro”, na qual explicava suas razões. Dizia então:
- Por uma questão de princípio, devo esclarecer que, embora aceite a libertação nessas circunstâncias, discordo das ações isoladas, que nada adiantarão para o desenvolvimento do processo revolucionário e somente servirão de pretexto para agravar ainda mais a vida do povo brasileiro e de motivação para maiores crimes contra os patriotas.
E adiante acrescentava:
- Não quero que, nesta hora, minha atitude ponha em risco a vida dos demais presos políticos a serem libertados. Nem desejo, como humanista que sou, o sacrifício desnecessário de qualquer indivíduo, ainda que seja o embaixador da maior potência imperialista de toda a história. Luto, por princípio, contra sistemas de força. Não luto contra pessoas, individualmente. Só acredito na violência das massas contra a violência da reação.
É uma declaração reveladora da personalidade de Gregório Bezerra: militante comunista dedicado e consequente, de firmeza inabalável na defesa de suas convicções revolucionárias e, por isso mesmo, insigne humanista. Reencontrei Gregório em Moscou, em 1973, onde ambos estivemos exilados, juntamente com outros compatriotas. Embora fisicamente alquebrado, como consequência das torturas a que fora submetido nos cárceres da ditadura militar, ele mantinha intacta a postura de profunda dignidade humana e as convicções de revolucionário comunista que sempre marcaram sua personalidade.
Forçado a viver no exílio, mesmo cercado do respeito, da admiração e do carinho dos companheiros soviéticos, assim como de exilados brasileiros e de outros países que então residiam na União Soviética, Gregório tinha seu pensamento permanentemente voltado para o Brasil. Sua maior aspiração era regressar à pátria e poder continuar lutando pelos ideais revolucionários a que dedicara toda sua vida.
Foram dez anos de exílio, até a conquista da anistia no Brasil, em agosto de 1979. Gregório seria um dos primeiros a regressar à terra natal, onde foi recebido com entusiasmo e carinho pelos trabalhadores, companheiros e amigos.
Durante os anos de exílio, Gregório, assim como Prestes, não deixou de contribuir para a luta pela anistia em nosso país. Viajou por diferentes países denunciando os crimes da ditadura militar. Com seu prestígio, tratou de mobilizar os mais diversos setores da opinião pública mundial em campanhas de solidariedade aos presos e perseguidos políticos no Brasil. Participou de congressos, conferências, seminários e entrevistas, sempre empenhado na luta pela democracia, contra o fascismo e por um futuro socialista para toda a humanidade, pois ele era também um militante internacionalista, para quem a luta do nosso povo não poderia jamais estar dissociada da luta dos trabalhadores do mundo inteiro.
Ao mesmo tempo, dedicou-se nesses anos a escrever suas Memórias, cuja nova edição em boa hora nos é proporcionada pela editora Boitempo. Sou testemunha de que Gregório escreveu seu livro sozinho e à mão. Companheiros residentes em Moscou naquela época se revezavam na datilografia das páginas já redigidas por nosso talentoso autor.
Gregório soube produzir um relato de sua vida, em linguagem simples e direta, sem qualquer afetação literária. Descreveu a vida de um camponês nordestino miserável, que se transformou em operário e soldado e, nesse processo, ingressou no Partido Comunista. Um militante que dedicou sua vida aos ideais comunistas, arcando com todas as consequências de tal escolha, sem jamais perder as características de grande figura humana.
Sou também testemunha do espírito de solidariedade e de companheirismo de Gregório durante aqueles difíceis anos de exílio, quando muitos companheiros entravam em desespero ou perdiam a perspectiva revolucionária. Gregório animava a todos que o procuravam, encorajava a quem estava abatido ou angustiado. Mostrava-se solidário com aqueles que precisavam de uma palavra ou de um gesto de amizade e de carinho. Seu apartamento em Moscou era um recanto aconchegante, onde se podia saborear algum prato da cozinha brasileira, por ele muito bem preparado, e de onde se saía reconfortado e confiante num futuro melhor.
Gregório era um otimista e infundia otimismo em todos que o procuravam, incluindo os jovens brasileiros que estudavam na URSS. Aos jovens, ele se esforçava por transmitir sua experiência e seus conhecimentos do Brasil para que, quando regressassem à pátria, estivessem preparados para enfrentar o futuro. A trajetória de vida de Gregório Bezerra é exemplar e deve servir de inspiração para os jovens de hoje, para aqueles que estão empenhados na realização de transformações profundas em nosso país que abram caminho para um futuro de justiça social e liberdade para todos os brasileiros. Futuro que, como nos ensina Gregório Bezerra, da mesma maneira que José Carlos Mariátegui, Fidel Castro, Che Guevara, Luiz Carlos Prestes e tantos outros revolucionários latino-americanos, só poderá ser alcançado com a revolução socialista. Gregório foi um comunista que jamais se dobrou diante das dificuldades e soube “endurecer sem jamais perder a ternura”, na feliz expressão cunhada por Ernesto Guevara.
Esperamos que a publicação desta nova edição das Memórias de Gregório Bezerra pela Boitempo constitua um estímulo à formação de jovens revolucionários em nosso país e em nosso sofrido continente latino-americano.
(*) Presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes, Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Filha de Olga Benario e Luiz Carlos Prestes.